Porque, às vezes, aparece alguma coisa que estilhaça a noção errada de que os jogos não são nem podem ser arte.
Praticamente desde a sua génese que os videojogos têm travado longas e duras batalhas para que sejam vistos pela sociedade de uma maneira diferente. Estamos numa altura onde infelizmente continua a ser comum serem vistos como “meros brinquedos para crianças”, “incentivos a comportamentos violentos” ou “produtos desprovidos de qualquer valor cultural ou intelectual”. É interessante observar o seu percurso até aqui e ver o quão se assemelha ao de outros tipos de média mais antigos como, por exemplo, o cinema ou a banda desenhada, desde a sua própria origem até serem aceites como uma forma válida de expressão artística. A verdade é que a nossa indústria ainda está na sua infância e ainda não atingiu todo o seu potencial como meio de comunicação interactivo. O percurso será longo e árduo mas aqui e ali vão surgindo títulos que nos fazem acreditar, que nos dão esperança, que nos mostram que existe uma vontade em abraçar esta mudança. Se este percurso for como uma estrada, então Journey é certamente um dos blocos que a pavimentam.
Correndo o risco de parecer incoerente após esta introdução, custa-me definir Journey como um “jogo” pois é tudo menos uma abordagem tradicional ao meio e o seu objectivo é o de o jogarmos pela experiência em si. É também por isso que é único, cativante e com uma cereja no topo do bolo – uma direcção de arte que verdadeiramente favorece e eleva a obra para um outro patamar.
Muito à superfície, assumimos o papel de uma misteriosa figura entrapada enquanto esta deambula por um vasto deserto em direcção de uma montanha no horizonte. Parece vago? É porque o é. Em termos de mecânicas, podemos andar e deslizar pela areia ou emitir um som que serve para interagir com algumas partes ou criaturas do mundo. Ao interagirmos com os pedaços de tecido que flutuam pelo mundo, carregamos o nosso lenço com uma energia que nos permite voar, servindo como uma espécie de “armazenador de energia”. O tamanho do lenço pode também ser aumentado através da colecção de runas escondidas pelo mundo, de maneira a podermos manter-nos no ar durante mais tempo. São mecânicas bastante simples mas lhe conferem aquele feel a videojogo que normalmente falta nos chamados art games – aqueles jogos um tanto pretensiosos que deitam fora coisas como jogabilidade ou entretenimento em troca de oferecerem uma experiência “profunda” mas que não tem consideração pelo jogador. Embora possa também ser considerado um jogo artístico com a sua narrativa abstracta e subjectiva e com a sua falta de informação assumida, Journey compreende perfeitamente o meio que está a usar e tira o maior partido dele para criar uma experiência interactiva que não só nos faz pensar, como também nos diverte simultaneamente.
Isto é sobretudo um jogo sobre descoberta e comunicação, onde não só exploramos um mundo desconhecido e procuramos maneiras de interagir com ele, como também nos podemos descobrir a nós mesmos. Refiro-me àquilo que mais me surpreendeu nesta experiência – a sua interpretação de co-op. Em Journey, a qualquer momento um outro jogador online pode vir parar ao nosso jogo e cruzar-se connosco no deserto, mas sem termos hipótese de os identificarmos pela Playstation Tag nem de comunicar com eles através de chat (nem eles a nós). Ou seja, neste co-op as pessoas são verdadeiros estranhos para os outros jogadores e, no entanto, sentimos necessidade de nos mantermos juntos. Foi no meio daquele deserto às aranhas (e após uma boa meia hora a sentir-me verdadeiramente sozinho) que encontrei uma outra figura entrapada igualzinha a mim, também limitada a comunicar através de um único botão que emite o tal som de que já vos falei. Rapidamente percebemos que existe uma mecânica que encoraja os jogadores a manterem-se juntos mas não é de todo essencial, o que quer dizer que não somos forçados a continuar juntos. O curioso aqui é que, apesar de tudo isto, sentimo-nos compelidos a continuar juntos e se por alguma razão nos perdemos um do outro, o sentido de perda é devastador. Na minha primeira sessão, acabei o jogo em conjunto com um outro jogador e nunca antes tinha tido uma experiência de co-op tão gratificante quanto esta – senti um elo de ligação forte com um completo desconhecido à medida que percorríamos terras desconhecidas lindíssimas.
E quando digo “lindíssimas”, não falo apenas no sentido metafórico – é que a direcção de arte de este jogo é simplesmente fenomenal! Empregando um estilo muito próprio, lembrando uma pintura de aguarela com uma mistura de uma paleta de cores garridas mas com um acabamento meio sépia, senti vontade de ficar parado simplesmente a absorver todo aquele esplendor paisagístico, à medida que o vento passava pelas inúmeras dunas, desenhando rastos novos a cada segundo e deixando a minha figura coberta de grãos de areia. As animações da nossa personagem são também muito boas, cheias de movimentos subtis e com os comportamentos do tecido que nos envolve a serem gerados em tempo real, o que lhe confere um aspecto muito realista. Tão importante quanto a experiência em si é a sua excelente banda sonora, agarrando com muita naturalidade o papel essencial de transmitir e guiar o jogador nesta jornada de emoções maioritariamente muda, preenchida ocasionalmente pela melodia emitida tanto pela nossa personagem como pelas outras criaturas feitas de tecido que habitam neste mundo.
A única coisa que poderia apontar de menos agradável com Journey seria a sua curta duração, levando cerca de 2 a 3 horas no máximo para chegarmos ao fim. Mas até isso é questionável quando faz todo o sentido que tenha sido desenhado de propósito para ser completado numa só sessão contínua e sem quebras, onde o jogador experiencia os pontos altos e baixos da narrativa de uma só vez. Nem todos os jogos têm de ser compridos e, custando um quarto do preço de um jogo de consola normal, penso que ninguém se sentirá defraudado do seu dinheiro de forma alguma.
Eu gostava de partilhar mais das minhas experiências com vocês mas, infelizmente, corria o risco de vos estragar algumas surpresas e de não conseguir fazer justiça ao que é jogarmos este título. Este é um daqueles jogos que simplesmente têm de ser jogados e se estivermos sozinhos ainda melhor. É a experiência da descoberta em si que interessa, não é a história ou qualquer descrição que vos possam fazer. Recomendo este jogo para todos, sendo que os menos apaixonados por exploração talvez se sintam um pouco aborrecidos mas mesmo assim sugiro que experimentem! Posso dizer-vos que é por coisas como esta que eu me apaixonei por este meio e pelo seu potencial como veículo para contar histórias de maneiras a que não estamos habituados. Journey não é simplesmente um jogo. Journey é arte interactiva.
(Journey é um exclusivo PS3)