Um pequeno bem de pé, nos ombros dos gigantes.

No Clube Português de Canicultura encontra-se nos arquivos o registo LOP nº425409 pertencente a um Labrador Retriever, macho de sexo, amarelo de cor e nascido a 30 de Outubro de 2010. O que tem isto de relevante numa análise de um jogo? Primeiro, o facto de ser o meu cão. Segundo, o facto de estar registado com o seguinte nome: Nathan Drake do Sol d’Arena.

Apaixonei-me pela série de Uncharted desde o primeiro momento em que Drake’s Fortune entrou na minha consola e fui ficando um acérrimo fã enquanto passava vezes sem conta a sua campanha. Quando a minha primeira Playstation 3 (de day one) resolveu finalmente olhar-me nos olhos com uma luz amarela, era Among Thieves que estava lá dentro com mais de um ano de regressos constantes do disco à máquina. Finalmente, mesmo que tenha questionado a falta de liberdade e os momentos on-rails de Drake’s Deception, voltei a recomeçar a campanha assim que pararam de correr os créditos da primeira volta. É muito simples. Eu estou para a Naughty Dog como o Barbas está para o Benfica. Sempre na fila da frente e sempre com o bilhete comprado de antecedência. Daí que o primeiro jogo que corri na minha PS VITA foi, sem qualquer surpresa, Uncharted: Golden Abyss, mesmo com algum receio por o jogo ser desenvolvido por outra produtora.

Ora vamos lá mais uma vez a isto…

 

O novo Uncharted foi entregue aos estúdios Bend, da Sony, responsáveis pela adaptação da série Resistance para a PSP e dos títulos de Syphon Filter a partir de Dark Mirror, também para a Playstation Portable. Aqui reside alguma confiança na produtora, pois Dark Mirror e Logan’s Shadow foram dois dos melhores jogos do catálogo da portátil anterior. O estúdio situa-se na cidade de Bend no Oregon, uma localidade com apenas 76 mil pessoas mas que conta nas redondezas com montanhas geladas, uma floresta a transitar para um deserto e um vulcão extinto. Ou seja, um pequeno rodeado de gigantes e isto foi também o que a Sony pediu à produtora: colocar os gigantes na sua nova pequena.

A escrita da nova estória foi entregue a John Garvin, o escritor responsável por todos os Syphon Filter que soube pegar no universo de Uncharted e criar alguns dos personagens mais bem conseguidos da série. Golden Abyss tem lugar antes de qualquer dos capítulos anteriores da saga, o que dá muito jeito pois faz reset às relações amorosas de Nathan, permitindo introduzir uma nova personagem feminina. Não deixa de ser curioso que no único jogo em que a escritora da série, Amy Hennig, está apenas numa posição de aconselhamento, foi criada a personagem feminina mais bem construída de todas. Marisa (não lhe chamem isso) Chase é a personagem feminina com a personalidade mais forte da série e uma das mais bem conseguidas nos videojogos em geral. Por outro lado, a liberdade de não termos ainda Nathan sempre com Sully nos três jogos da PS3, coloca-nos ao lado de outro caçador de tesouros, Jason Dante, a personagem mais ambígua do universo de Uncharted. Nos títulos anteriores a Naughty Dog brincava com Sully, deixando-nos constantemente na dúvida se estávamos perante um amigo ou um inimigo. Com Dante, este jogo do quem é quem atinge a perfeição de uma ponta à outra do jogo. A Marisa e a Dante junta-se ainda o General Guerro, um ex-revolucionário tornado ditador da floresta, louco e mercenário, que aqui funciona como o nosso antagonista principal e aquele que conta com um exército de grunhos ao seu lado, para a satisfação do nosso gatilho.

Marisa “fica por cima” Chase.

 

A acção do jogo desenrola-se algures na América Central, sem nunca nos ser revelado ao certo onde. Pelas pistas que nos são dadas pode ser Panamá ou Argentina, mas também pode ser Colômbia ou Perú. Após descobrirmos uma escavação com os corpos de um massacre de uma expedição espanhola de há 400 anos atrás, Nathan começa a ligar os pontos que nos vão lançar em mais uma aventura, desta vez para achar a cidade lendária de Quivira, uma das Sete Cidades de Ouro que Frei Marcos de Niza e Francisco Vásquez de Coronado procuraram (e que coloca o México também como possibilidade de cenário). A estória deste Uncharted releva-se muito mais linear e com menos reviravoltas que os capítulos anteriores, o que dá muito mais espaço às personagens para se desenvolverem e, principalmente, muito mais diálogo. Mais linearidade não significa no entanto dimensão reduzida ou repetição, pois aqui contamos com uma enorme campanha com 34 capítulos e vários ambientes completamente diferentes.

O nosso amigo Dante é daqueles que até vende a mãe, isto é, um português à moda antiga.

 

Os cenários ao longo de Uncharted são visualmente magníficos e todos proporcionam uma enorme sensação de imersão. Não é fácil, com um ecrã tão pequeno (quando comparado a um televisor) esquecermo-nos do que está à volta, mas Uncharted consegue fazer isso mesmo, principalmente nos cenários de selva onde sentimos que estamos realmente embrenhados na vegetação densa. Cheguei a temer que o jogo fosse uma repetição e reciclagem destes ambientes, pois ia avançando e mantinha-me nos mesmos. Só depois percebi que a campanha era afinal enorme e ia-me proporcionar muito mais locais. Há favelas no meio da selva, interiores bem conseguidos, rios, grandes ruínas, cavernas gigantes e muitos outros. Dentro de cada cenário, tudo é modelado ao pormenor e é aqui que a VITA nos mostra o seu poder gráfico. Na água das cascatas e rios, na quantidade de árvores e folhagem, na construção de todos os elementos de pedra das ruínas incluindo as estátuas majestosas, no cabelo e nas roupas dos personagens, tudo está com um nível enorme de detalhe gráfico e a correr em tempo real. Digamos que ao nível visual, Golden Abyss está colado a Uncharted 2, mas com cenários mais contidos em dimensão. Os únicos problemas são algum aliasing em algumas arestas mais brilhantes, como os objectos em ouro ou os olhos e dentes dos personagens, mas nada que se compare ao Aliasing da PSP, bem longe disso. Dá a ideia que Uncharted não está ainda a utilizar a resolução máxima de pontos da VITA, embora não acredite que seja por falta de processamento mas sim porque os produtores ainda são virgens com a consola. Este primeiro Uncharted na VITA está graficamente acima do primeiro Uncharted na PS3 e se olhamos para a diferença entre esse e Uncharted 3, então podemos prever um glorioso futuro para a série na portátil.

M****, esqueci-me de pôr o fato de banho na mochila!

 

Ao nível da acção, sente-se que a Bend tentou equilibrar todos os elementos que compõe a série, nomeadamente combate, escalada de plataformas, resolução de puzzles e sequências on-rails. A mecânica é a mesma de sempre, com acção na terceira pessoa, câmara atrás do ombro para o combate de armas e muita escalada. Talvez demasiada escalada. Estamos constantemente a trepar, a subir, a saltar de uma pedra ou de uma viga para a outra, como um macaco de circo. O abuso neste género de exploração é tal que a produtora se viu até obrigada a brincar com isso constantemente, nos diálogos entre as personagens. Pontualmente, a escalada junta-se à mecânica de combate e podemos disparar enquanto estamos pendurados. Era aqui que a Bend podia ter introduzido mais variedade às artes circenses. Diga-se no entanto, que são as fases de escalada que proporcionam alguns dos momentos visuais mais impressionantes, com a câmara a afastar-se e a relevar cenários incríveis. Felizmente, a Bend não abusa dos erros de escalada, como acontecia em Uncharted 3, onde por tudo e por nada Drake falhava constantemente a próxima pedra para se salvar no último segundo. Esses erros de cálculo acontecem aqui, mas com a dose certa e necessária.

Preparem-se para escalar, e escalar, e escalar…

 

O que também não é abusado são as sequências on-rails. Para alguns isto pode ser uma má noticia mas para mim é uma lufada de ar fresco, pois este é um título de Uncharted onde se pode respirar novamente. Os exageros cinemáticos em tempo real de Drake’s Deception são aqui resumidos a alguns apontamentos ao longo do jogo e, na sua maior parte, divertidos de jogar como a sequência de rápidos num rio.

… e escalar, e escalar.

 

O sistema de combate está mais próximo de Uncharted 2, o que é um retrocesso na série. O sistema de cover não permite a fácil transição entre obstáculos e colunas que o último jogo permitiu e a inteligência dos inimigos resume-se a não pararem quietos, embora se mantenham extremamente previsíveis. Já o combate corpo a corpo é constantemente interrompido por eventos em tempo real que não seriam intrusivos se recorressem aos botões da consola, mas que ao necessitarem de movimentos desenhados no ecrã táctil fazem com que evitemos este tipo de luta usado com tanto gozo em Uncharted 3. Mas se os sensores de toque constituem o pior do combate, já os sensores de movimento trazem para Golden Abyss o melhor do jogo.

É simplesmente maravilhoso apontar e disparar em Uncharted. O equilíbrio está em não nos obrigarem a escolher entre utilizar o manípulo analógico direito ou os sensores de movimentos mas em permitirem a utilização de ambos ao mesmo tempo. Na minha primeira campanha consegui 240 headshots e esse número aumentou nas duas campanhas seguintes. A precisão dos sensores é milimétrica, com o mínimo movimento na consola a resultar no mesmo movimento na mira virtual e a poder ser usado com qualquer arma desde pistolas, a shotguns, à Sniper Rifle e a todas as armas habituais na série. Este combate com sensores é o que nos faz não largar este título e voltar a jogar as campanhas. É único, fresco, recompensador e viciante, e vai de certo tornar-se o standard dos jogos de tiros na PS VITA.

Ora deixa cá ver, 2 centímetros e meio ao lado da omoplata esquerda…

 

O resto dos sensores e as capacidades de toque da consola estão a ser usados em todo o título. Era inevitável que Uncharted: Golden Abyss teria de ser uma demonstração tecnológica de tudo o que a Vita é capaz e era aqui que a Bend Studios jogava a carta mais difícil do baralho, pois tinha que equilibrar a utilização dos mesmos sem os tornar intrusivos, naquele que é um título mais hardcore e menos casual. O resultado é quase um sucesso total, pois praticamente todas as funções de toque podem ser executadas com botões normais. Por exemplo, podemos desenhar nas rochas o percurso da escalada, mas também podemos usar o X para ir saltando de pedra em pedra. Podemos usar o painel táctil traseiro para escalar cordas, mas também podemos utilizar o manípulo analógico esquerdo. Podemos tombar a consola para balançar, ou optar por usar os botões para o mesmo efeito. Era esta a fórmula certa ncessária e a produtora foi inteligente. No entanto, existem momentos em que os sensores não oferecem alternativa. Decalcar objectos em papel tem de ser feito com o dedo, assim como limpar a areia de peças que encontramos no chão ou juntar as peças de um mapa rasgado. Mas aqui esse tipo de controlo faz sentido e não é intrusivo, pois constitui uma pausa na acção. Os vários puzzles ao longo do jogo também recorrem ao ecrã táctil e só é pena que não existam mais ao longo do mesmo, pois são uma das peças fundamentais de Uncharted. Como já referimos, é apenas nas sequências de combate corpo a corpo e nos momentos em que Nathan quase cai de uma rocha que as funcionalidades de toque se tornam irritantes. Isto podia ter sido implementado no ecrã traseiro para não nos obrigar a largar os comandos, ou mesmo abandonado de todo. Existem ainda algumas surpresas com os sensores, como um documento em papiro, mas isso fica para vocês descobrirem.

Se ao menos tocasse em mim…

 

Já dizia Elena a Nathan em Ucharted 3 que o problema dele era não se assumir como homem de família e fazer-lhe meninos, em vez de andar obcecado atrás de tesouros (se bem que fazer meninos à Chloe talvez fosse melhor opção). Em Golden Abyss o vício continua bem aceso e temos tesouros para dar e vender. Quer dizer, para vender não, mas para trocar. Os muitos tesouros estão como sempre espalhados ao longo dos níveis, sinalizados pelo já célebre brilho branco, mas desta vez com uma enorme dificuldade em encontrá-los todos. No entanto, mesmo difíceis, tornaram-se agora ainda mais apetecíveis de coleccionar, pois formam conjuntos de páginas no diário de Drake cada uma com uma história ou tema específico como a História da Revolução ou a das Sete Cidades, entre outras. Para ajudar, a Bend disponibiliza na loja um DLC com os mapas de tesouros. No entanto, mesmo a 1 euro, este DLC é uma peça de má-fé, pois apenas consiste numa imagem com a localização do tesouro e que mantém uma enorme dificuldade em achar as peças. Em três campanhas de jogo, uma só para tesouros, apenas consegui ainda encontrar 2/3 dos coleccionáveis. Um DLC útil poderia pelo menos mostrar a posição actual de Nathan no mapa. O que irá acontecer é que estas imagens vão acabar na internet e serem passadas entre os jogadores, pois não valem o preço sugerido. Como sempre, os tesouros são peças de um detalhe magnífico e podemos até contar com uma homenagem genial a Jak & Daxter, se a conseguirem achar (se conseguirem, leiam a descrição do tesouro na versão inglesa e não na versão portuguesa).

Esfregar objectos com o dedo é estranhamente recompensador.

 

Para além dos tesouros espalhados ganhamos ainda outros tesouros ao longo do combate como Cartas de Tarot, peças preciosas, moedas raras e outros. Estes podem ser trocados com outros jogadores através da funcionalidade Near. Este Mercado Negro, peca por só funcionar com os amigos e ser totalmente aleatório. A consola nem precisa de sair de casa e as trocas lá se vão fazendo. Esta podia ser uma forma de fazer novas amizades ou conhecer novos jogadores mas, como tudo no Near actual, por enquanto é uma funcionalidade dispensável.

Resta-nos ainda referir o campo sonoro, onde podemos contar com uma banda sonora fantástica, com o regresso dos temas “hollywoodescos” de Uncharted, assim como com novas composições. Os efeitos sonoros contam também com os mais altos níveis de produção da indústria e estão sempre no equilíbrio perfeito. Das balas a zunirem nos nossos ouvidos enquanto estamos pendurados, à música sul americana que se ouve ao longe nas favelas, tudo está reproduzido com a mesma dose de qualidade e de bom gosto que a série nos habituou. Nolan North regressa para dar voz a Drake e a actriz Christine Lakin consegue a melhor prestação feminina de Uncharted com a sua Marisa (não lhe chamem isso) Chase.

Já a versão portuguesa é simplesmente terrível. Actualmente não basta apenas traduzir e dobrar vozes de forma genérica. Uncharted é uma das séries com mais personalidade da história dos videojogos, algo que se perde por completo na versão portuguesa. Os actores não sabem o tom que devem emprestar às sequências e nota-se que a direcção de actores também não os sabe encaminhar. Nathan Drake parece saído de uma série de animação para adolescentes, Dante não consegue nunca encaixar no tom e só Marisa, em alguns momentos, parece caminhar no bom sentido. Com um general Guerro demasiado estereotipado e com muitas vozes a serem utilizadas por variações perceptíveis de um mesmo actor, o resultado final é algo sem qualquer carisma e contando com muitos erros, como as várias vezes em que Nathan se refere a Marisa como “o Chase”. Este jogo merecia muito melhor.

Uncharted: Golden Abyss é uma porta que vale muito ser aberta por todos.

 

Uncharted: Golden Abyss era o cavalo de batalha da PS VITA, o sim ou sopas do arranque da nova portátil da Sony. O resultado é um jogo obrigatório para qualquer fã da série e uma compra obrigatória para quem adquire a nova portátil, ou para tirar as dúvidas se vale a pena adquirir uma. É um jogo que está em quase tudo equiparado a Uncharted 2 e é a prova que a PS VITA tem realmente um poder de processamento gráfico aproximado ao da PS3 desses tempos. Sem multiplayer, que certamente será implementado nas sequelas, mas com uma campanha enorme e variada, é um título que consegue um bom equilíbrio entre as várias mecânicas de jogo a que a série nos habituou. Se peca no exagero da quantidade de escalada, brilha na contenção nas sequência on-rails, permitindo-nos novamente jogar mais e ver menos. E quando jogamos, os sensores de movimentos aliados à mira das armas fazem-nos regressar ao jogo vezes e vezes sem conta, naquele que será certamente o novo standard de controlo de todos os shooters na VITA e não só. Alguma irritação no combate corpo a corpo não chega para manchar um bom equilíbrio entre as funcionalidades de toque e o uso de botões, permitindo ao jogador decidir como quer abordar a jogabilidade. Este é um jogo que mostra que se isto é que o Nathan já sabe fazer na VITA, então o futuro da série é muito risonho, seja em que consola for.

 

(Uncharted: Golden Abyss é um exclusivo Playstation Vita)