Se chegaram a este artigo sem terem lido o que escrevi sobre o primeiro Mass Effect podem querer dar uma espreitadela. Para quem não está para aí virado, o penúltimo parágrafo terminava de uma forma muito esperançosa. Sei que citar-me a mim própria é sinónimo de presunção desmedida (ou de esquizofrenia – mal por mal posso ficar com a esquizofrenia, se fazem favor, porque assim posso pelo menos alegar que a culpa não é minha), mas é exactamente isso que vou fazer, em abono da consistência. Dizia eu que “Ficamos com a sensação que influenciámos de facto o desenrolar dos acontecimentos, que a civilização galáctica é, em parte, o que fizemos dela”. Pois. É então que pegamos no Mass Effect 2 e o resto da nossa inocência se esfuma. Afinal, as tais grandes decisões não alteram em quase nada o jogo porque, de uma maneira ou de outra, a Bioware arranjou maneira de dar a volta ao texto e fazer com que tudo se consiga à mesma, com meia dúzia de linhas de diálogo diferentes para nos apaziguar. Uma das aliens com quem podíamos ser um/a imbecil inqualificável apaixona-se perdidamente por nós se formos homem, mesmo se tivermos escolhido tratá-la abaixo de cão no primeiro episódio da saga. Pior ainda, se formos mulher diz-nos praticamente as mesmas falas, mas não nos deixa iniciar um romance e ficamos com a conversa assim por resolver, para a Bioware poder continuar a insistir que não há conteúdo homossexual no jogo – o que não nos impede aqui de levar a nossa assistente a dar uma voltinha, sejamos homem ou mulher, mas como não é um romance completo, nada como pôr as palas nos olhos e martelar no ceguinho que não, não é nada disso. Homens homossexuais, continuem a ver a nave, se fazem favor. Um dos companheiros que podíamos escolher não recrutar no Mass Effect 1 vai obrigatoriamente fazer parte da party no 2… e vai fartar-se de mencionar as aventuras que viveu com o/a Shepard, mesmo que o import que tenhamos feito não o tenha assinalado como recrutado. Salvámos o Concelho? Não acreditam em nós à mesma. Escolhemos salvar a vida do personagem A em vez da do B? Não faz mal, apesar de terem personalidades completamente distintas até ao momento em que temos de escolher, o percurso de vida passa a ser igual a partir daí, mesmo que inclua coisas que um dos dois faria e o outro não. E ainda por cima simplificaram-nos a maioria dos elementos mais tradicionais de RPG. Não pensem com isto que não gostei do Mass Effect 2 – aliás, adorei-o. Às vezes tenho um certo medo de não deixar transparecer isso como devia; é que, se eu não tivesse gostado mesmo, seria muito mais sintética e fria; se tivesse gostado “bastante” talvez até nem insistisse tanto em salientar as falhas mais a fundo, porque de um jogo simplesmente bom não se espera excelência. É o facto de o Mass Effect ser, a meu ver, daqueles jogos que transcende o bom ao pequeno almoço, que esbate facilmente a fronteira entre jogo e obra de arte interactiva que apela às nossas emoções, que me faz ser tão crítica com ele. Porque tudo o que é excelente tem responsabilidades maiores a cumprir, e reconhecer essa excelência não é ficar cega em relação aos defeitos, não é seguir o exemplo da Bioware e negar o óbvio. É, sim, ser exigente ao máximo sem perder a capacidade de apreciar tudo o que está perfeito só por causa das imperfeições que o rodeiam. É equilibrar espírito critico com mente aberta, exigência com inocência, e paixão com discernimento. Ninguém disse que era suposto ser fácil.

Romances escaldantes, ou uma rapidinha num recanto escuro?

 

Em termos de história, as coisas mudaram bastante para o/a Shepard. Como ninguém acredita que os Reapers vêm aí (nada como um bocadinho de wishful thinking ou O Pior Cego É Aquele Que Não Quer Ver), puseram a Normandy a lutar contra Geth. O jogo abre com uma missão supostamente de rotina, em que a Normandy acaba por ser destruída e o/a Shepard… morre. Pois, essa também me teria apanhado na curva se não fosse o marido ter começado pelo 2. Felizmente, e ao longo de dois anos de tratamentos intensivos, a Cerberus ressuscita-o. Foi isso mesmo que ouviram, a mesma Cerberus que cometeu todo o tipo de atrocidades ao longo do primeiro jogo agora trouxe-nos de volta das portas da morte, deu-nos uma Normandy maior e melhor, e pediu-nos para trabalhar com eles. “Como?”, ouço-vos eu já a dizer, “É impossível, o/a Shepard nunca o faria!”. Acalmem-se os ânimos, porque desta vez a coisa até faz sentido: é que andam a desaparecer colónias humanas inteiras e, para variar, o Concelho não mexe uma palha. O Illusive Man, que é quem comanda as operações todas da organização, é o único disposto a investigar o que se passa. Claro que, pelo meio, vai-nos tentando enfiar pela garganta abaixo uma quantidade impressionante de propaganda pró-Cerberus na qual o/a nosso/a Shepard pode ou não escolher acreditar, mas o cerne da questão é mesmo que mais ninguém está a tentar impedir que as pessoas sejam levadas. Se o primeiro Mass Effect era todo sobre reunir informação para a batalha final do jogo, o segundo é todo sobre preparação para a missão suicida que tem como objectivo. Recrutamos mais companheiros do que temos roupa interior, fazemos missões de lealdade para cada um, resolvemos conflitos entre eles e reforçamos a estrutura da nave. Se conseguirmos fazer tudo isto e, no fim, escolhermos as pessoas certas para cada tarefa – e não é difícil, é só não pedirmos ao mecânico que faça neurocirurgia, ao neurocirurgião que pinte uma obra de arte, e ao pintor que nos arranje o carro – então conseguimos sair da missão suicida com toda a gente sã e salva. Podemos continuar a jogar depois da dita missão suicida, não conseguimos continuar o romance com duas das três personagens possíveis do primeiro porque nos amam muito mas não confiam em nós, e se quisermos fazê-lo com a terceira temos de comprar um DLC. No entanto temos seis romances novos, três para as meninas e três para os meninos, e uma assistente que nos aquece se não tivermos ninguém especial e tivermos frio. Ah, e que nos alimenta os peixes. Alguns dos romances estão decididamente melhores que outros; nota-se que não houve o mesmo nível de preocupação em desenvolver cada um. Acabaram-se os elevadores de load (o que seria bom, não fora o termos perdido, juntamente com eles, as conversas entre os companheiros) e, tal como os romances, os próprios personagens não foram todos escritos com o mesmo cuidado e mestria. O nosso Universo está mais ou menos povoado dependendo de termos ou não jogado o primeiro jogo e, em caso afirmativo, do tipo de personalidade que tínhamos.

Shepard, o rei da purpurina.

 

O sistema de Paragon e Renegade está diferente: em vez de duas barras só temos uma, que dá para os dois lados, para evitar abusos. Ter a barra cheia não é sinónimo de a ter no máximo, e ao que parece é propositado. Esqueci-me entretanto de mencionar que estar morto afectou-nos os poderes e, se tivermos feito um import de um personagem de nível 60, o máximo com que começamos aqui é nível 5. Os sistemas de poderes estão alterados: agora o nível um de um poder custa um ponto, o segundo dois, e por aí em diante. Só é chato porque às vezes terminamos o jogo com um ou dois pontitos que não podemos gastar mas, no global, o sistema está equilibrado e como podemos redistribuir os poderes sempre que quisermos (desde que tenhamos os minerais necessários), não é assim tão detestável. No que toca a dinheiro e recursos, em vez de andarmos de carrinho telecomandado já podemos explorar os planetas a partir do espaço e lançar sondas que recolhem minerais quando o radar nos indica um filão. Não é dinheiro o que procuramos, mas recursos para podermos fazer pesquisa, o que nos leva a upgrades de armas, armaduras e nave. Menos trabalhoso, mas ainda assim repetitivo. O que deixou de ser exasperante e repetitivo foram os achievements de uso de poderes, uma vez que os poderes dos nossos companheiros já contam desde que sejamos nós a seleccioná-los, e não eles a usá- los por livre e espontânea vontade. Já só podemos comprar armaduras para nós próprios, uma arma dá para todos (armas com o dom da ubiquidade, que útil!), podemos manter a classe e a cara que tínhamos ou alterá-las na importação do personagem, e não podemos vender rigorosamente nada. Se a nossa classe não puder usar uma arma, nem sequer a podemos equipar. Os mini-jogos estão mais engraçados, um para fazer hacking a sistemas e outro para abrir portas (e desenganem-se os que se habituaram a espetar medigel em tudo o que mexe e o que não mexe, pois a mama acabou no ME2), mas os cacifos foram substituídos por equipamento atirado para o chão. As armas já não sobreaquecem porque usam clips térmicos para arrefecer, enfim, munições com outro nome. O combate está muito mais intenso; além de podermos rebolar de um lado para o outro com graciosidade – mesmo que estejamos a usar armadura pesada, considerem o/a Shepard uma bailarina de alto gabarito – conseguimos saltar por cima das barreiras só com uma mãozinha (novamente, mesmo que tenhamos equipada a armadura mais pesada da galáxia, além de bailarina somos o incrível Hulk) e escondermo-nos agora dá vantagens muito mais reais. Já sem grande inocência do que possamos vir a afectar no 3 com as nossas decisões, queremos ainda assim jogar o jogo mais do que uma vez com percursos diferentes (e, de preferência, com imports de Shepards diferentes) para podermos viver outras experiências galácticas.

“A menina dança?” ou “Mommy, I can fly!”

 

No final do dia, o Mass Effect 2 é bastante diferente do 1 na maior parte parte das mecânicas, mas retém elementos suficientes em comum para aceitarmos que faz parte da mesma saga. Graficamente é muito superior ao primeiro capítulo, e a maior parte dos sistemas – combate, pontos, exploração – estão melhorados. O sistema de inventário está… diferente. Sentimo-nos perdidos – e mesmo traídos – ao longo da história, mas o/a Shepard sente exactamente a mesma coisa, portanto faz sentido. E, mesmo que a história não seja tão fidedigna ao percurso que fizemos no 1 como gostaríamos, está completamente cativante ainda assim, prestando-se a várias playthroughs para não destoar do predecessor. É mais um RPG (apesar de ter menos características de RPG que o primeiro) digno do termo “imprescindível”.

(Versão analisada: Xbox 360. Também disponível para PS3 e PC)