Quem só chegou agora à festa e tem paciência para me aturar, fica desde já a saber que me alonguei anteontem sobre o Mass Effect 1, e ontem divaguei sobre o Mass Effect 2. Diz a lógica que hoje analisarei o Mass Effect 3, mas vou começar esta análise pelo meio, ou seja, pelo multiplayer e pelo Kinect, para depois poder falar sem interrupções do que é o Mass Effect 3 como história e como single player (que todos reconhecerão sendo a essência fundamental da saga).

Mal arrancamos com o jogo, temos um indicador de Galactic Readiness no ecrã inicial que é extremamente importante se quisermos ter acesso a um leque mais vasto de opções no jogo propriamente dito. Essa Galactic Readiness só consegue atingir os 100% através de apps de iOS (um processo bastante mais lento) ou jogando em multiplayer (mais rápido, mas pelo menos na Xbox requer uma conta paga), e a percentagem está sempre a decrescer se não formos continuando a insistir. Pela primeira vez num Mass Effect, temos a opção multiplayer. Jogar neste modo significa termos um bocadinho mais de meia dúzia de localizações, três tipos de inimigos, três tipos de dificuldade e um não acabar de possíveis personagens e equipamento. Começamos com humanos de diferentes classes e vamos adquirindo (com créditos que ganhamos no jogo ou, se preferirmos, com pontos Microsoft ou Bioware) mais classes e raças em carteirinhas de cromos virtuais que, além de personagens, podem trazer armas e outras modificações interessantes, com raridades diferentes. Quem já tiver jogado Collectible Card Games saberá do que estou a falar – a mim fez-me lembrar os meus tempos de Vampire: the Eternal Struggle. As missões levam até quatro jogadores (sempre em co-op, não há PVP aqui), os personagens atingem o nível 20 e deixam de subir, podendo depois ser “promovidos” a recursos para a nossa Galactic Readiness e voltar a nível 1. Terminar missões com sucesso é outra das situações que nos faz subir a Galactic Readiness e, felizmente, a uma velocidade bastante respeitável. O sistema mostra o total de pontos (a soma de todos os níveis de personagens que alguma vez jogámos em multiplayer) ao lado do nosso nome, e para kickar um jogador é preciso que todos os outros o queiram fazer. Isto, por vezes, leva a abusos e já vi jogadores recentes a tentarem entrar em grupos de dificuldade gold (e normalmente a serem expulsos, até porque desequilibram o grupo e podem conduzir a que falhe a missão para todos), mas também já vi jogadores muito experientes a kickarem de um silver alguém com um nível perfeitamente adequado, só porque eram bastante mais fortes e queriam alguém como eles.

Fim-de-semana-sim, fim-de-semana-não, há missões especiais com objectivos globais que uns dias depois de terminarem granjeiam carteirinhas mais raras a quem nelas participou e atingiu os tais objectivos (outras são só de participação, mas essas não trazem nada de especial). Os dois DLC para multiplayer que existem, Resurgence e Rebellion, são gratuitos e trazem mais itens, raças e mapas. No global, o multiplayer parece-me bem conseguido apesar de ter alguns bugs, mas não lhe vou dedicar muitas horas da minha vida. Já em relação ao Kinect, “bem conseguido” não seria o termo que escolheria para o descrever. É desesperante. Pode ser muito bom – será inequivocamente muito bom – num futuro onde o reconhecimento de voz esteja melhor desenvolvido, mas no presente é de arrancar cabelos. Para começar, não recomendo a ninguém que o ligue sem estar sozinho em casa – todas as conversas paralelas, por vezes noutras divisões, vão ser desculpa para o Aparelhinho Negro da Frustração fazer com que os nossos personagens usem poderes que ninguém pediu, troquem de arma ou saltem por cima de um segmento importante da conversa. Dei por mim a virar a câmara sempre que iniciava um diálogo até já não conseguir ver o (a) que me permitia passar à frente, não fosse o diabo tecê-las e o telefone tocar. Finalmente, a mais de metade do jogo, resolvi desligá-lo e a única sensação que ficou foi um alívio avassalador de poder jogar em paz sem ter um deus omnipotente e arbitrário a controlar os personagens – para isso basto eu.

Bolas, Shepard, tinhas prometido que não voltavas a sacar aleatoriamente da arma, nem a interromper-me a meio da conversa!

 

Agora sim, depois de dois dias a falar sobre os primeiros capítulos da saga Mass Effect, chega a vez do jogo que me levou a escrever este testamento: o Mass Effect 3. Anos de espera pelo culminar da série para quem a iniciou quando saiu, em 2007 (para mim, que não lido bem com cliffhangers, felizmente que não chegou a dois anos) terminam finalmente. E o quanto gostamos do jogo vai depender muitíssimo das nossas expectativas. Se há algo que o ME2 nos tentou ensinar é a não esperarmos diferenças demasiado grandes no que toca a nuances de história. Já diziam os nossos antepassados que todos os caminhos vão dar a Roma, e a saga Mass Effect vive disso; talvez não fosse realista querer que adicionassem ainda mais conteúdos nos DVD’s, que pagassem mais horas de gravações de voz, de animações, de renderizações. Tudo porque alguém poderia ter escolhido a opção de beijar a prima elcor, do vizinho do drell, amigo do hanar do Presidium no primeiro jogo; talvez a perfeição, ou o que se lhe assemelha na minha cabeça, requeresse uma inteligência virtual para lidar com a miríade de opções e repercussões que se espalham e multiplicam, qual infestação de bolor com pretensões a teia de aranha, do primeiro ao terceiro capítulo da saga. E se percebermos, entre a tecnologia que temos no presente e o orçamento da Bioware, que tal não é possível, então vamos conseguir apreciar um belíssimo jogo. Com esta advertência em mente podemos importar o save (venha ele do primeiro ou do segundo Mass Effect, desde que o/a nosso/a Shepard do ME2 ainda seja vivo/a), ou podemos criar um/a Shepard totalmente novo/a. Seja import ou personagem novo, o/a nosso/a Shepard pode ser qualquer uma das seis classes que já nos são familiares e pode manter a cara que tinha ou alterá-la outra vez. Um alerta para quem instalou o jogo e não se voltou a ligar à internet com ele: havia um bug detestável que fazia com que não se conseguisse importar o aspecto de alguns/algumas Shepards que viessem do primeiro ME, mas a Bioware corrigiu o problema. Portanto, se tiverem este erro, cancelem o import, façam a actualização do jogo e deliciem-se (ou horrorizem-se, conforme o caso) com o aspecto que tiverem escolhido.

“We will add your biological and technological distinctiveness to our own. Resistance is futile”. Ah, espera, universo errado!

 

Começamos com o mesmo nível com que tínhamos terminado o ME2 (que não ia a mais de 30), podendo chegar até nível 60, e o sistema de poderes, apesar de inicialmente parecer semelhante, está muito mais satisfatório com especializações de cada poder a partir do nível 4. Já podemos correr sem nos cansarmos, as nossas piruetas estão ainda mais graciosas e o combate está ainda mais sólido e polido. “Polido” é talvez a palavra-chave no que toca a comparar o sistema de combate do Mass Effect 3 com o 2; se do 1 para o 2 as diferenças foram profundas, do 2 para o 3 a Bioware arranjou maneira de melhorar sem alterar – “polir”, portanto. Uma excepção à esta regra do não alterar especificidades é a introdução do sistema de peso, que faz com que possamos equipar as armas todas que nos apetecer à custa de sacrificarmos a velocidade de regeneração de poderes. Muito bem conseguido, este sistema fez com que a minha Adept pudesse passar o jogo quase todo só com uma pistolinha, a regenerar poderes à velocidade da luz e a usá-los para limpar o chão com os inimigos. As armas, a propósito, já podem ser alteradas outra vez. Ah, além de esmurrar os inimigos, podemos agora esfaqueá-los.

Outra inovação é a introdução de diferentes estilos de jogo – roleplay, action e story – para diferentes tipos de jogadores. Roleplay é o Mass Effect como sempre foi, com a capacidade de escolher todas as opções de diálogo e com o combate a um nível interessante; Action, como o próprio nome indica, é para quem gosta do combate e não liga muito à conversa, com o/a Shepard a dar automaticamente respostas pré-definidas nas cutscenes; e Story é para quem se quer embrenhar na história sem se preocupar demais com a possibilidade de morrer. Com o universo inteiro em risco de ser aniquilado, o/a Shepard já não se dedica à extracção de minerais. Em vez disso, explora a galáxia com a ajuda de um radar (que pode chamar inadvertidamente a atenção dos Reapers em sectores já ocupados) e o que encontra são recursos para a guerra ou objectos que alguém, algures, precisa mesmo de ter. Se neste último bocadinho de frase pareci depreciativa, é porque o sistema de quests… enfim. Passamos num lado qualquer, ouvimos a conversa alheia, vamos buscar o tal objecto e somos recompensados. Não sei quanto a vocês, mas se eu estivesse a falar com um amigo sobre ter de ir ao talho e me aparecesse um herói condecorado, armado com dois quilos de bifes do lombo a dizer que os tinha encontrado algures e que se tinha lembrado de ouvir que eu precisava de ir ao talho, ia fazer-me imensa confusão. Provavelmente, ia ter medo de os comer, o que seria um enorme desperdício de bifes do lombo.

Fica aí quietinho para te acertarmos como deve de ser, está bem?

 

No que diz respeito à história, começa como seria de esperar: com um ataque dos Reapers. É extraordinário que toda a gente fique muito surpreendida com o facto de o/a pobre coitado/a do/a Shepard andar há anos a tentar alertar a galáxia para essa realidade. A Terra está cercada, o Universo precisa desesperadamente do/a Shepard, e aqui vamos nós outra vez. Uma das primeiras coisas contra as quais vociferei, parte de algumas conversas com os nossos companheiros por já não serem interactivas – chegamos, clicamos neles, e nem sempre temos opções de diálogo. Um terço de jogo volvido e já tinha mudado radicalmente de opinião, porque percebi que essas conversas não interactivas não vieram à custa das outras, mas além delas. Os nossos companheiros já não estão confinados a um bocadinho de Normandy – de missão para missão podemos dar com eles em zonas diferentes da nave, muitas vezes em (nem sempre amena) cavaqueira com outros membros da party ou da tripulação. Este tipo de interacção entre os personagens, sem ter de passar pelo/a Shepard, está excelente e ajuda muitíssimo a relembrar porque é que o Mass Effect é um RPG, dando àqueles que nos acompanham uma dimensão muito mais real – ia dizer humana, mas alguns são aliens.

Tal como no 2, nem todos os personagens e romances estão escritos com a mesma qualidade, e nota-se que a maneira como lidaram com quatro dos seis romances que vinham do segundo capítulo foi apressada, mesmo deselegante. Falando em romances, há que tirar o chapéu à Bioware porque, finalmente, temos opções homossexuais para ambos os sexos. Não é que isto só por si fosse digno de nota – já o deveriam ter feito desde o primeiro capítulo, havendo também conteúdo inacabado no disco do ME1 – mas é-lo precisamente porque o deveriam ter feito antes e não o fizeram. Teria sido tão mais cómodo não incluírem essas opções agora e refugiarem-se na ideia de que não fazia sentido só as porem no último jogo, ter-lhes-ia poupado tantas queixas acérrimas (vindas de jogadores que, inexplicavelmente, se sentem ameaçados por outros jogadores ao terem opções que eles próprios não são obrigados a tomar) que tenho de lhes dizer: obrigada Bioware, por não terem caído na armadilha do fácil em detrimento do correcto. E obrigada também em nome de um dos meus Shepards, solteiro e apaixonadíssimo pelo Kaidan desde o primeiro ME. É bom não ter de se ser celibatário quando se enfrenta a aniquilação da galáxia.

Os três da vida airada. Ela está de trombas porque lhe estragaram o planeta favorito.

 

O objectivo deste terceiro jogo é conseguir que as raças parem de implicar umas com as outras durante tempo suficiente para se unirem e tentarem derrotar os Reapers. Um pouco como dizer a um grupo de crianças de 5 anos que têm de se unir contra o papão, com a diferença que as crianças, especialmente depois de terem visto o papão a devorar uma delas, seriam muito mais inteligentes e rápidas a fazê-lo que estes políticos no Mass Effect. Isto, a propósito, não é uma crítica negativa a este ponto do jogo – até é capaz de ser assustadoramente realista a abordagem da Bioware. Ainda assim, conseguimos com mais ou menos sucesso, dependendo de escolhas anteriores e actuais, reunir uma quantidade razoável de raças dispostas a tentar sobreviver.

E depois, finalmente, chega o momento da verdade, o momento pelo qual esperámos anos. Descobrimos que a prometida variedade de finais do Mass Effect é uma mudança de tom, como quem faz madeixas no cabelo. Santa paciência, era assim tão complicado terem pelo menos gravado animações diferentes para cada um dos finais? Resta-me o consolo por saber que neste verão vamos ter direito a extended cut dos finais, de preferência sem que isso signifique que também vão estar disponíveis em roxo, cor de rosa e amarelo para acrescentar ao vermelho, azul e verde que vimos no final do Inverno. E isso nem sequer é o problema mais grave do final do jogo, mas já é conversa para outro artigo.

Comecei a análise anterior a citar-me de uma forma assumidamente esquizofrénica, e terminar esta da mesma maneira parece-me apropriado. Escrevi: “É o facto de o Mass Effect ser, a meu ver, daqueles jogos que transcende o bom ao pequeno almoço, que esbate facilmente a fronteira entre jogo e obra de arte interactiva que apela às nossas emoções, que me faz ser tão crítica com ele. Porque tudo o que é excelente tem responsabilidades maiores a cumprir, e reconhecer essa excelência não é ficar cega em relação aos defeitos[…]”. Mantenho cada palavra. O Mass Effect 3 é excelente. É magnífico. Mas é apesar do final, e se isto não é uma ode a quão bom o resto do jogo é, então não sei o que será.

(Versão analisada: Xbox 360. Também disponível para PC e PS3)