Um universo de puzzles.

Cinco anos de espera. Um dos mais aguardados indie darling dos últimos anos caiu de rompante sobre o Xbox Live Arcade. Um Hype de vários anos é o suficiente para matar qualquer jogo, e os jogadores têm constatado isto mesmo pois estão na linha da frente e são das principais forças motrizes do crescimento de expectativas, e potenciais vendas. Como é que FEZ se aguenta após tantos anos de antecipação?

Quando foi anunciado em 2007, rapidamente se tornou num estandarte de um movimento indie que rebentou pelas costuras no ano seguinte, tendo obras como Braid, Flower ou World of Goo mostrado ao mundo que os “pequenos” jogos eram coisa séria. FEZ mostrava uma mecânica de jogo aliciante e inovadora, de mudanças de perspectiva à lá Paper Mario, juntamente com jogabilidade semelhante a Echocrome, em que o espaço de jogo real existe em função da dessa mesma perspectiva, de influência Escheriana.

O mundo de FEZ é tridimensional mas é-nos apresentado em perspectiva 2D, fazendo do jogo um platformer puro em termos de mecânicas de controlo de movimento. Controlamos Gomez, um rapazote branquinho e cabeçudo da mesma maneira que o típico jogo de plataformas: corremos, saltamos e subimos escadas. No entanto, Gomez cedo descobre que o seu mundo é muito mais do que parece à primeira vista, e após falar com um misterioso habitante da sua aldeia, o pequeno herói entra em contacto com uma forma geométrica nunca antes vista. Um cubo!

Parece 2D, mas não é.

 

A partir deste momento, Gomez compreende que existem dimensões para além das que estava habituado a ver. O mundo tem volume, e não apenas área. Cubos e não apenas quadrados. Porque o jogador tem a capacidade de rodar a perspectiva de jogo, e se um objecto se encontra ao alcance de Gomez em perspectiva, então o jogador é capaz de o alcançar, mesmo que na realidade se encontre mais ao fundo. A perspectiva bi-dimensional leva a que a ilusão óptica das distâncias se torne no caminho jogável pelo jogador.

Esta mecânica é essencial para que o jogador percorra o mundo de jogo em busca de cubos. Para completar a história é necessário apanhar 32 cubos. Para além destes, existem ainda mais 32 anti-cubos, uma versão azul ainda mais difícil de encontrar, 9 mapas de tesouro e 4 artefactos. FEZ é um jogo de pura exploração, e após apanharmos 32 destes cubos (amarelos ou azuis) o jogo acaba, mas o seu conteúdo não. E ao começarmos a jogar começamos a perceber que FEZ é maior que a soma das suas partes, que é um obra digital feita de atenção ao pormenor, e claramente um jogo de autor. Compreendemos que a espera valeu a pena.

FEZ é um mundo circular e é difícil vos tentar explicar isto sem estragar a experiência com spoilers. Jogando, sentimos como se este mundo existisse dentro da nossa consola. Muitos outros mundos de jogo oferecem esta sensação, mas existem sempre alguns artifícios de design que quebram o nosso investimento enquanto jogadores. Coisas como menus, loading e login screens ou outros jogadores a falar em chats. Mas em FEZ o próprio menu de jogo inicial é parte integrante da experiência, todos os zeros e uns que compõe o código são parte de um todo, do estranho mundo de Gomez.

A transição entre ilhas (ao fundo) é fantástica.

 

O jogador terá de levar Gomez por este mundo, apanhando cubos completos ou pedaços, de modo a abrir portas. Pouco nos é explicado do porque desta aventura. Sabemos simplesmente que o universo está em perigo e que o pequeno herói é o único que o pode salvar devido ao seu chapéu mágico, o Fez, que lhe permite rodar o mundo e aceder a locais que nunca poderia imaginar estarem presentes num mundo 2D. Os cenários de jogo são em 3D e as personagens em 2D, no entanto a renderização e as texturas conseguem um fantástico efeito 2D, com uma estética retro de cores vivas e de pequenos pormenores, num mundo com transição dia-noite em tempo real, que muda de forma maravilhosa o aspecto visual dos níveis. FEZ é composto por dezenas de pequenas ilhas verticais, algumas rodeadas de liquido, outras suspensas em pleno ar, de diversas dimensões e que escondem em cada um dos seus cantos inúmeros segredos para além dos cubos. Algumas dessas estruturas são simples, com pouco espaço navegável, enquanto outras são imensas tanto em altura como em largura e funcionam como plataforma central de determinadas zonas de jogo.

Falar de níveis em FEZ é muito relativo. O seu universo está interligado por portais e portas, muitas delas secretas e que funcionam como atalhos. Em muitas instâncias do jogo podemos ver no horizonte ilhas para onde determinada porta nos pode transportar nesse momento, uma forma engenhosa de conseguirmos planear para onde queremos ir sem ser necessário consultar o mapa. É comum começar a explorar uma zona do jogo para alguns minutos mais tarde termos descoberto outras zonas e nos afastado de onde pretendíamos explorar. Esta forma de mundo aberto pode ser por vezes confusa, principalmente ao inicio quando ainda não dominamos o mapa mundo, em si uma estrutura complexa e tridimensional no meio do universo e que marca os locais onde já estivemos, em que secções já apanhamos todos os itens e que tipos de objectos colecionáveis temos acesso. O mapa pode ser rodado ou perscrutado de mais de perto. Apesar de inicialmente confuso, após compreendermos a sua forma de navegação, torna-se imensamente útil.

Ou estamos nos esgotos ou voltámos aos finais de 80.

O elemento exploratório de FEZ é uma das características que mais o define, e para um jogo de mecânicas tão simples, consegue oferecer muita variedade na forma como as implementa na resolução de puzzles, com o auxilio de pequenos elementos de jogo como válvulas que sobem ou descem a água, plataformas que se movem temporizadamente, bombas que possibilitam explosões em cadeia controladas através da rotação do mundo ou plataformas rotativas que mudam a perpectiva sem o controlo do jogador. Nunca em nenhum momento estes elementos são usados em demasia e é por isso que o jogo se consegue manter fresco durante toda a experiência. Não existem praticamente inimigos e o jogador apenas morre se cair de determinada altura ou for esmagado, por exemplo. No entanto morrer não acarreta uma punição significativa já que Gomez simplesmente renasce no último local onde estava e de forma bastante rápida, o que torna a experiência bastante tranquila e dá ao jogador todo o tempo e calma para pensar e experimentar sobre a resolução dos puzzles.

Para conseguir apanhar todos os cubos, Gomez terá de desbloquear algumas áreas seladas que necessitam de chaves. Estas chaves estão guardadas em arcas de tesouro que se encontram espalhadas pelo mundo e constituem um dos muitos segredos que o jogo nos oferece. A gestão de quais as portas que queremos abrir está inteiramente a cargo do jogador. Para além das arcas, poderemos ainda resolver puzzles por forma a apanhar artefactos, mapas de tesouro ou os anti-cubos. São nestes puzzles que FEZ começa a dar-nos volta à cabeça, e começamos a compreender a forma diabólica como está desenhado. Como já referi, não necessitamos de resolver todos os enigmas ou apanhar todos os itens para completar a história principal, mas o seu final é ao mesmo tempo desapontante e entusiasmante. Poderemos ficar desapontados porque o jogo nunca responde directamente às questões que possamos ter em relação à história, mas ao mesmo tempo concluímos que há vida para além do suposto termino da aventura.

A rotação e iluminação dos cenários.

 

FEZ segue uma linha em termos de apresentação de história que é o inverso da exposição. Em vez de nos aborrecer com explicações, a história pode ser compreendida através de elementos espalhados pelo mundo. Quadros nas paredes das casas dos seus habitantes, pinturas rupestres de uma civilização antiga (num dos níveis mais originalmente simples de todo o jogo) ou a simbologia que decora diversos dos níveis, são alguns dos elementos que dão muita profundidade e caracterizam o mundo de uma forma simples, mas que dão a FEZ uma essência que falta em muitos jogos, tanto indies como AAA. Ter consciência de ser um jogo não é característica exclusiva dos jogos independentes, mas talvez a demonstração do amor e respeito por esta forma de arte interactiva é algo que os indies conseguem muito bem e FEZ não é excepção.

É reconfortante e inspiradora a forma como o videojogo é celebrado em FEZ, e se algum jogo é homenageado esse jogo é Tetris com, entre outras, as suas formas geométricas a servir de constelações do espaço sideral. Também Zelda é uma influência, na clássica forma como abrimos as arcas de tesouro e apanhamos os itens.

A constelação Pajitnov.

 

FEZ oferece-nos um mundo aberto pronto a ser explorado e descoberto. Gomez é acompanhado por um pequeno cubo que serve não só de guia, mas também oferece algumas dicas que ajudam o jogador a resolver alguns dos puzzles. No entanto é importante ressalvar que apesar de alguns dos desafios serem bastante simples, completar o jogo na sua totalidade implica um investimento considerável por parte do jogador, pois alguns dos enigmas são bastante impercetíveis e “fora” daquilo que esperamos de um jogo do género, ou mesmo da experiência que temos enquanto o jogamos. Muitas vezes dei por mim a entrar numa sala onde sabia estar um segredo, não fazendo a mínima ideia de como o descobrir, já que alguns destes puzzles seguem paradigmas de resolução diferentes dos outros, o que pode fazer os jogadores se sentirem desamparados. Como já afirmei, estes puzzles podem não ser resolvidos para se alcançar o fim relativo do jogo. Talvez o maior desafio de jogo seja a estranha linguagem que existe no mundo de FEZ, mas disso não falarei. Ficará a cargo do leitor compreender o seu significado.

Será este tipo de design demasiado abstracto ou impercetível para a forma como jogamos actualmente? Não concordo. FEZ tem a capacidade de nos surpreender na forma como um jogo aparentemente tão simples pode conter em si mesmo uma vastidão de conceitos e ideias, uma experiência exploratória que é em tudo superior ao maior mapa de jogo de um típico sandbox. É daqueles jogos que continuam connosco mesmo quando desligamos a consola e nos levam um pouco atrás, a outras gerações de gaming. Ao jogar FEZ lembrei com saudade uma época em que jogava consolas 16 bits de forma inocente e maravilhado com a experiência, momentos que certamente são partilhados por muitos dos jogadores.

Um estranho símbolo na parede.

FEZ é um jogo sólido em termos de visão, com alguns soluços aqui e ali. Na minha experiência senti algumas variações de framerate, principalmente com o passar das horas e em determinadas zonas mais avançados. Alguns glitches e bugs podem ser ocasionalmente encontrados, se bem que por vezes possa ser difícil de perceber se realmente é um glitch ou parte integrante do jogo. Updates ao código continuam a ser desenvolvidos mas nunca encontrei um problema que me impedisse de continuar as minhas sessões de jogo, e estou certo que os problema de polimento que possa ter serão resolvidos a seu devido tempo. No departamento sonoro, FEZ é absolutamente mágico. Foi com satisfação que descobri que a música é da responsabilidade de Disasterpeace (Rich Vreeland), um promissor músico que apesar de bastante prolífico e de ter outros jogos no seu curriculum, continuava até agora relativamente desconhecido. As suas composições chiptune conseguem não só solidificar em FEZ a sua estética retro como criar uma aura de mistério e deslumbramento que complementa em muito o que os jogadores poderão sentir ao percorrerem o universo de Gomez. Os efeitos sonoros são simples e com raízes notórias na realidade 8-bit, mas são perfeitos para o estilo visual e a ambiência que o jogo procura criar.

Gomez segue as pisadas do velho ancião.

FEZ é um jogo acima de tudo consistente, e isto é o primeiro passo para se tornar num clássico. Desde os seus visuais, à música e efeitos sonoros, passando pela atenção ao pormenor e pequenos detalhes que vestem todas as áreas de jogo, o mundo de Gomez é um local de exploração e maravilhas insondadas. É um jogo que nos trás à memória outros pequenos grande jogos, talvez da nossa infância, quando jogar era sempre sinónimo de descoberta, em contraste com a tendência actual de explicar em demasia o modo como devemos jogar, ou ensinar como nos devemos divertir. Essa flexibilidade em termos de exploração pode levar alguns jogadores a se sentirem perdidos ou confusos, especialmente perante um mapa mundo que pode ser por vezes inteligível. Cabe ao jogador decidir se está disposto a se render ao mundo de FEZ e a aceitar essa imensidão, partindo à descoberta dos cantos e recantos deste universo.

Ao jogar não pude deixar de pensar na forma como um pequeno grupo de pessoas conseguiu resistir a 5 anos de desenvolvimento, num projecto com inúmeros prémios ganhos (como o grande prémio Seumas McNally no Independent Games Festival este ano) e um enorme hype, e só por isso FEZ é um vencedor. O facto de ser uma obra de consistência fantástica em termos de design, de puzzles engenhosos e de visão abrangente, é ainda mais impressionante. FEZ é sincero na forma como nos cativa e brilhante nos momentos em que nos surpreende, mesmo com alguns soluços pelo caminho. Valeu a pena esperar por Gomez? Sem dúvida. Um jogo que toca fundo no nosso coração de gamers e sério candidato a indie do ano.

(Disponível no Xbox Live Arcade)

9

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