Se seguiram o Steam Summer Sale, iniciaram provavelmente um novo hobby, a criação de colónias de borboletas no vosso porta moedas. Maleitas de paixão à parte, certamente constataram a presença firme de um surpreendente candidato a jogo mais vendido desta monção que a Valve nos proporcionou no final de Julho: Arma 2 Combined Operations. O segredo do repentino sucesso de vendas de um jogo de nicho com cerca de três anos está nas mãos de Dean “Rocket” Hall, criador da modificação DayZ.

A Noite da Roupa Interior Branca.

DayZ é um mod criado sobre o simulador militar Arma 2 e a sua expansão Operation Arrowhead, e pode ser descrito como um RPG de sobrevivência numa região assolada por uma catástrofe Zombie. Palavras a que nos habituamos a ouvir nos últimos anos, a excessiva incidência sobre a temática dos zombies seria suficiente para nos fazer revirar os olhos e seguir em frente, e ainda assim a maior parte de nós continua a sentir algum interesse. A temática tem em si algo de morbidamente atractivo e soció-culturalmente relevante, por motivos demais debatidos desde os tempos em que o Senhor Romero libertou sobre o mundo o seu Night of the Living Dead, em 1968.

Mas o que trás DayZ de verdadeiramente novo ao género, suficiente para fazer milhares de pessoas darem entre 15 a 25 euros para jogar uma versão Alpha de um mod repleto de bugs, em servers de estabilidade relativa?

Numa casca de noz.

 

A região de Chernarus é imensa. Atravessar o mapa de Sul a Norte leva bastante tempo e é provável que sejamos comidos por zombies, assassinados por um jogador ou que simplesmente morramos de fome, sede ou fiquemos à mercê do perigo por termos partido uma perna e não conseguirmos mais andar. Imaginem estar no meio de uma floresta, a quilómetros de uma aldeia que não sabem se existe, de pernas partidas a rastejar enquanto o ícone que representa a fome pisca ominosamente, alertando-vos que dentro de pouco tempo irão começar a morrer de fraqueza. DayZ é incondicionalmente brutal como um caloroso aperto de mão de um bandido, antes de meter uma bala na vossa nuca.

Sendo uma modificação de num simulador militar, a dinâmica de jogo assenta sobretudo na sobrevivência do jogador a condições físicas. Não penso que DayZ possa ser considerado um shooter, apesar de podermos controlar o personagem na primeira ou terceira pessoas, e termos à disposição diverso tipo de armamento para nos defendermos. Ao abordar o jogo cedo compreendi que mais do que uma arma de fogo, eram os mantimentos que me iriam manter vivo. Cada personagem tem um conjunto de ícones de status que informam o jogador acerca da fome, sede, temperatura, quantidade de sangue e condições físicas como ossos fracturados, infecções, frio ou choque. Muitos destes estados podem ser despoletados entre si, sendo afectados pela forma como jogamos, condição física e condições atmosféricas. Comer regenera sangue, sendo possível matar animais, tirar a sua carne e cozinha-la em fogueiras para maior recuperação. Fogueiras criadas pelo próprio jogador com auxilio de madeira cortada de árvores e fósforos.

Aposto que há bolachas naquela casa. Com pepitas de chocolate!

 

Jogar durante a noite ou nadar leva a nossa temperatura corporal a diminuir drasticamente, aumentando a probabilidade de infecção. Correr pode aumentar a nossa temperatura, mas faz a nossa sede e fome disparar. Pernas partidas apenas podem ser curadas com um item específico, mas que é pouco provável de ser encontrado noutro local que não seja um centro médico. Choque ou perda de sangue podem originar tremuras, que afectam a visibilidade e precisão da mira. Alguns exemplos da complexidade do sistema de status físico que DayZ oferece e que aumenta ainda mais o ênfase sobre a sobrevivência do jogador.

Ao explorarmos a região de Chernarus teremos ainda de ter cuidado com o som que fazemos e a nossa visibilidade perante o perigo, identificadas em dois ícones situados no interface de jogo. De noite conseguimos movimentar-nos com mais rapidez e menos visibilidade, mas é muito mais difícil percorrer o terreno e encontrar itens. Ligar uma lanterna, usar um flare ou fazer uma fogueira (que também nos aquece) pode ajudar-nos a perceber melhor o meio circundante, mas transforma-nos num farol para zombies, ou pior, para outros jogadores. Nada como gritar sem voz “Hey! Vem cá matar-me e roubar os meus itens. Tu mereces, campeão.”

As cidade e regiões rurais são decoradas por centenas de casas e edifícios, desde residências, celeiros, lojas, bases militares ou castelos. Não é possível entrar na maioria deles o que dificulta bastante as incursões exploratórias e arriscadas aos locais onde provavelmente encontraremos mantimentos. Probabilidade de mantimentos é directamente proporcional a quantidade de jogadores, pelo que ir a uma grande cidade é sempre um enorme risco, para além dos implacáveis zombies.

Here’s Johnny!

 

A interacção humana em DayZ é das mais ambiciosas, recompensadoras e assustadoras que já tive oportunidade de experimentar num videojogo. Os servers funcionam essencialmente como instâncias tal qual o mais típico MMORPG, mas com um número mais reduzido de jogadores. O sistema de chat apenas funciona na proximidade de outros jogadores, seja através de texto ou voz. Para além disto, existem pequenos detalhes de comunicação verbal que permitem perceber se o nosso “novo amigo” tem boas intenções ou nos quer saltar para cima, como sentar, bater continência (Arma 2 é um jogo militar afinal) ou baixar a arma.

Encontrar outro jogador no meio das nossa explorações solitárias é sempre um rush de adrenalina, um misto de contentamento e terror. Se por um lado encontrar um aliado pode ser extremamente útil para a sobrevivência de ambos, por outro corremos sempre o risco de ser mortos e roubados, enquanto que o nosso lado menos humano e oportunista nos lateja que matar aquele homem ou mulher pode trazer recompensas maravilhosas. Como um cantil de água reutilizável ou um precioso mapa.

No entanto matar outros jogadores altera o nosso aspecto, podendo-nos transformar em Bandits. E talvez a seguir aos zombies, o bandido é um dos mais cobiçados alvos a abater, e um dos mais temidos também. [Update] actualmente a skin de bandido encontra-se removida do jogo, pelo que matar outros jogadores já não altera o aspecto do personagem.

Ao jogar DayZ ganhamos um conjunto de momentos inesquecíveis, de histórias que mal podemos esperar para contar aos nosso amigos. O acesso de estupidez que nos levou a tentar roubar o carro de dois jogadores muito bem equipados, e que terminou da pior maneira. O maníaco que entrou pelo contentor militar adentro e de machado em riste, enquanto tentávamos encontrar qualquer coisa de útil; O barco que encontramos para minutos mais tarde ficarmos apeados ao largo da costa e à mercê de snipers, porque não tínhamos gasolina suficiente; e aquela vez que satisfeitos nos concentramos a reunir um pequeno arsenal e sem espaço para mais nada na mochila, para horas depois morrermos famintos no meio da floresta. Tudo situações típicas num dia passado em Chernarus.

Uma bela caminhada na mata. O que poderá correr mal?

 

E os veículos! Espalhados pelos 225 Km2 encontram-se algumas pérolas sobre rodas, desde motas a carros militares, barcos e até 2 ou 3 helicópteros. Escusado será dizer que são verdadeiros tesouros procurados por todos os jogadores, já que não só funcionam como meio de transporte permitindo percorrer grandes distancias e poupar precioso tempo na procura de mantimentos, como ainda são verdadeiras bases móveis onde podemos guardar itens. Mas encontrar um veiculo funcional é muito raro, já que a maior parte deles necessitam de peças e gasolina, espalhadas pelas zonas habitadas de Chernarus. Recordo-me de uma das minhas aventuras, quando encontrei um jogador morto e extremamente bem equipado, com a mochila repleta de peças de automóvel, provavelmente a caminho de um veículo recém encontrado. O pobre coitado foi assassinado antes de cumprir o seu objectivo, e eu não durei muito mais tempo depois desse encontro.

DayZ encontra-se em fase Alpha de desenvolvimentos, com updates e alterações constantes que muitas vezes modificam a forma de jogar. Anteriormente os jogadores iniciavam o jogo com uma pistola, por exemplo. Parece que existe um foco sobre a dificuldade, o que é muito refrescante, mas simplesmente brutal para os iniciados. É também de salientar o paradigma de progressão de DayZ, com semelhanças a jogos como Minecraft ou Terraria, pela forma “livre” como a estrutura de jogo está feita. Essa liberdade de criar a nossa própria progressão pode ser enfastiante para os jogadores menos pacientes ou que não estão dispostos a suportar bugs que podem deitar tudo a perder. Muitas vezes podemos nos sentir injustiçados pela falta de polimento que nos pode sair pela culatra.

Poderão ocorrer Zombies.

 

Os jogadores podem se cansar da desestrutura do jogo, mas ao suportar a dificuldade inicial começamos a compreender as suas regras implícitas e idiossincráticas, a modificar o nosso comportamento, a estabelecer estratégias de acção e sem nos dar-mos conta começamos a sobreviver cada vez por mais tempo, a apanhar cada vez melhores itens, a explorar mais eficazmente. Começamos a progredir. Sem níveis de experiência, sem tabelas de progressão, sem árvores de talentos e sem nenhuma rede para nos apanhar quando deitarmos tudo a perder. Um verdadeiro modo Hardcore à lá RPG mais icónico.

O que corre mal em DayZ? Os zombies tem uma AI que os torna demasiado agressivos, às vezes passam pelas paredes pelo que fechar uma porta nem sempre é sinónimo de segurança, além de presenciarmos estranhos casos de “teleportação” em determinadas instâncias. O inventário de jogo é ainda bastante confuso e pouco prático, pelo que a sua utilização requer alguma habituação até prevenirmos apagar itens ou não conseguir geri-los convenientemente. O uso do inventário pode ser por vezes verdadeiramente penoso.

Uma estrada para lado nenhum.

Os servers apresentam também alguns problemas de estabilidade, com reinicializações ocasionais ou picos de lag. Certa vez parti as pernas a abrir uma porta, outra vez a rastejar junto a uma parede. São tudo bugs conhecidos e listados e que encontram a ser corrigidos. Os controlos são um dos factores menos intuitivos, porque apesar de serem os típicos de um FPS, acabam por ser muito rígidos. Mudar de arma implica parar o movimento, acções como baixar ou levantar são lentas e não alinhadas com a ferocidade dos zombies, o que muitas vezes pode provocar mortes pouco justas. O controlo será certamente mais fácil para quem já jogou Arma 2, mas para os iniciados pode ser confuso e pouco flexível. Actualmente o jogo exige um conjunto de manobras e truques pouco intuitivos para que o seu controlo seja o mais fluído e com menos problemas possível, como um velho e teimoso carro com “manias” próprias.

Uma versão standalone de DayZ encontra-se em desenvolvimento com promessas de lançamento ainda este ano, mas sem qualquer data confirmada e com negociações entre o seu criador e a Bohemia Interactive. Até lá o único modo de jogar é mesmo através da compra de Arma 2: Combined Operations, sendo o mod obviamente gratuito. Se alguma vez tiveram algum interesse em Arma 2, então têm agora mais que nunca uma razão para o adquirir. O pacote encontra-se à venda por cerca de 25 euros, que pode ser um preço elevado para quem apenas deseja jogar DayZ. Além do preço, é necessário compreender que é uma versão Alpha de um jogo muito exigente em termos de dificuldade e provavelmente poderá causar acessos de raiva se não for jogado com a plena consistência de que iremos morrer muitas vezes e perder tudo.

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Apesar de todos os problemas que apresenta e do preço a pagar por uma versão Alpha caso queiramos jogar imediatamente, DayZ é uma das minhas maiores surpresas este ano e dos poucos jogos a que posso chamar verdadeiramente de survival horror, o mais fiel Apocalipse zombie. É ominoso, brutal e muitas vezes com golpes baixos, mas é também das experiências mais emocionantes, pessoais e envolventes que tive nos últimos anos com um jogo multiplayer. DayZ exige de nós enquanto jogadores, mas também enquanto seres relacionais. A dinâmica da interacção entre jogadores é única num jogo deste género e mesmo com o perigo do griefing à espreita, nunca senti que não tinha hipóteses de sobreviver por isso. O jogo caminha sobre a lâmina da permissividade e da intensa dificuldade, e no fim das contas, os jogadores que investem sobre ele acabam por encontrar uma experiência muito satisfatória e mesmo única, com um componente de exploração impressionante. Um vislumbre de um futuro dos MMOFPS que gostava que se concretizasse, num jogo que se irá certamente tornar num modelo comercial a seguir.