Disse o Corvo, “Nunca mais!”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais.

As palavras de Edgar Alan Poe, aqui traduzidas na perfeição por Fernando Pessoa, parecem ecoar ao longo de todos os instantes do novo jogo da Bethesda e da Arkane Studios, naquela que é uma declaração de amor ao género de acção furtiva na primeira pessoa. Com traços de inspiração em Thief e Bioshock, Dishonored vai no entanto muito mais longe do que as suas inspirações para se afirmar como o novo standard do género. Tal como o seu protagonista Corvo Attano, Dishonored esperou silenciosamente num beiral de uma janela e, quando menos o esperávamos, atacou-nos com todo o seu talento e originalidade. Sobrevivemos para contar.

Adivinha quem chegou.

 

A primeira hora de jogo de Dishonored desperta em nós um sentimento de novidade que se irá manter ao longo de toda a aventura. Desde os primeiros minutos em que chegamos à cidade de Dunwall por via marítima que o ambiente Vitoriano com pinceladas futuristas se entranha em nós e nos vai desafiando o espanto e a admiração. Da chegada numa enorme plataforma de elevação movida a água, aos primeiros passos pelos jardins e mármores do palácio real, à descida aos ambientes inóspitos da prisão, que nos vamos sentindo parte integrante de um universo de jogo original em que a atenção ao detalhe foi levada ao extremo e em que nenhum pormenor foi descurado.

Dunwall é uma cidade que mistura Orwell com Dickens. A criação de Viktor Antonov, director artístico de Half-Life 2, retrata uma cidade da revolução industrial, numa clara inspiração de uma Londres oitocentista, misturada com uma visão distópica de um regime omnipresente e opressivo com uma forte componente religiosa. Dunwall foi contaminada por uma peste negra que se propaga através das inúmeras ratazanas presentes nos esgotos e calçadas, que está a dizimar a população e quando alguém contrai a doença é abandonado à sua sorte e abatido caso se aproxime de zonas “limpas” da cidade. Todos os dias, os guardas atiram para o mar dezenas de corpos reclamados pela praga.

Desesperada, a Imperatriz envia o seu Lord Protector às cidades vizinhas numa demanda por um pedido de ajuda. Corvo Attano, o nosso protagonista, regressa de mãos vazias uma vez que as outras cidades preferem abandonar Dunwall à sua sorte em vez de arriscarem contrair a peste. É nesta chegada que um misterioso conjunto de assassinos com poderes sobrenaturais aniquila a Imperatriz e rapta a sua filha à nossa frente sem que consigamos defendê-las. O que sobra é um corpo no chão, uma herdeira ao trono desaparecida e a acusação de culpa e sentença de morte aplicada ao nosso personagem. Cabe-nos agora escapar à nossa execução e desvendar quem está por detrás deste plano, encontrar a jovem Lady Emily e restituir a ordem e o nosso bom nome.

Por baixo pelo tabuleiro ou por cima pelas vigas? Decisions, decisions…

 

Dishonored oferece ao jogador a liberdade de escolher a forma como quer atingir estes objectivos e é aqui que reside a sua maior força. Podemos acabar a aventura de mãos limpas ou então completamente manchadas de sangue. O jogo de acção furtiva na primeira pessoa é um género que desde a excelente série Thief deixava saudades. Dishorored é claramente um sucessor espiritual destes jogos mas consegue ir muito mais longe ao introduzir um elemento sobrenatural às mecânicas de combate e intrusão. Os poderes especiais de Corvo permitem-lhe transportar-se instantaneamente entre prédios e varandas, parar o tempo, possuir animais e pessoas ou ver entre paredes. Isto permite escolher entre dezenas de abordagens diferentes à forma como nos deslocamos pelo cenário e como interagimos com os personagens. Podemos atravessar ruas inteiras sem sermos detectados ou avançar de armas de fogo na mão e deixar as ruas banhadas de sangue. Podemos acabar uma missão em 15 minutos utilizando a força bruta ou ficar 3 horas a aniquilar calma e furtivamente cada um dos muitos guardas que patrulham as ruas e prédios de Dunwall.

A campanha principal compõe-se de 9 missões separadas, cada uma numa zona diferente da cidade. Em todas elas temos que aniquilar um alvo principal que pode desaparecer por assassinato ou em alternativa por formas não letais. As opções que tomamos sobre a forma de eliminar os alvos e a quantidade de sangue que vamos derramando pelas ruas têm influência não só na estória como também no ambiente de jogo. Uma abordagem “Modern Warfare” vai resultar em ruas repletas de ratazanas e num número elevado de pessoas infectadas prontas a vomitarem-nos em cima. Já uma abordagem com pezinhos de lã onde colocamos os nossos inimigos a fazer longas sestas resulta numa cidade mais estável e com menos perigos à espreita. As mecânicas de combate adaptam-se a qualquer estilo de jogo e o melhor é a combinação de atributos diferentes.

Oops?

 

A lista de combinações em cadeia é enorme. Por exemplo, a partir dos telhados por cima de três guardas podemos possuir o corpo de um deles e levá-lo a uma zona escondida, para quando sairmos do seu corpo estrangularmos o guarda deixando-o a dormir. De seguida podemos utilizar setas com tranquilizantes para colocar o segundo guarda a dormir e, quando o terceiro guarda vier ver o corpo no chão, podemos parar o tempo, transportarmo-nos para detrás dele e colocá-lo também a dormir. Vamos agora à alternativa letal: transportamo-nos para o chão para que os três guardas nos vejam. Aquele que está mais perto carrega sobre nós mas recebe um contra-ataque com a espada que de seguida é cravejada no seu pescoço com violência. Tentamos utilizar a pistola no segundo guarda mas esta encontra-se sem balas e, enquanto percebemos isto, ele tem tempo de disparar contra nós. É nesse momento que paramos o tempo, o que nos permite não só colocar uma bomba de estilhaços agarrada ao seu corpo como ainda apanhar no ar a bala que ele acabou de disparar. Quando o tempo volta à normalidade o guarda explode num bola de entranhas e sangue, enquanto nós aproveitamos a bala apanhada para disparar um tiro certeiro na cabeça do terceiro e último guarda. Touché.

Não são apenas as armas e poderes que proporcionam variedade. Dunwall conta com um sistema de protecção baseado em barreiras eléctricas que desintegram quem se atreva a atravessá-las, com um sistema que dispara raios à distância e com torres de vigia armadas com explosivos. Podemos desactivar cada um destes sistemas retirando o tanque de óleo de baleia (o combustível principal de Dunwall), mas podemos também inverter os sistemas para que ataquem os guardas. Com as missões secundárias a proporcionarem a forma não letal de aniquilar os alvos principais, todo o jogo está construído em função da liberdade de escolha e das consequências dos nossos actos. Descobrir formas novas de ultrapassar as missões permite que o jogo não regresse à prateleira tão cedo.

Hadouken!

 

Dishorored é um dos maiores feitos artísticos desta geração. Os muitos e diversificados ambientes de Dunwall foram desenhados com uma atenção extrema aos detalhes. Das ruas e vielas da cidade até às zonas portuárias, dos esgotos e distritos inundados à prisão aos palácios, tudo foi criado com uma qualidade raramente experimentada na indústria. Não se verifica a repetição de elementos, não existem zonas vazias e cada missão apresenta uma zona repleta de novidades visuais. Nada é deixado ao acaso, com texturas extremamente detalhadas e variadas e uma iluminação que empresta o tom certo à personalidade de cada momento da aventura. Dishorored conta ainda com excelentes zonas interiores que podemos invadir e pilhar, algumas das quais cenário das execuções principais, como interiores de palácios, apartamentos ou complexos fortificados. Dos quadros dignos de Edward Hopper nas paredes às faces alongadas e estilizadas dos personagens, Dishorored é uma obra de arte quase artesanal.

O som acompanha a excelência do jogo com um conjunto de actores de topo como Susan Sarandon ou John Slattery a pontuarem os diálogos com uma contenção rara e a proporcionarem uma personalidade quase mórbida à forma calma como os personagens se expressam. A forma como as vozes ecoam nas salas, os nossos passos nas telhas dos prédios, o som de uma espada a degolar um inimigo, tudo se soma para tornar a experiência ainda mais perfeita.

Quanto mais alto, maior é a queda.

 

O melhor: As combinações de poderes e atributos de Corvo Attano e a sua utilização em cadeia; a execução artística de todos os ambientes de Dunwall; a fluidez de movimentos do protagonista; as várias estratégias diferentes na abordagem a uma missão.

O pior: Não poder repetir as missões com todos os upgrades já efectuados

Dishorored consegue a proeza de definir um novo standard nos jogos de acção furtiva na primeira pessoa, com uma das maiores surpresas e um dos melhores jogos deste ano. Com uma execução artística brilhante e uma visão distópica digna de Orwell, o melhor de Dishonored é no entanto a liberdade de escolha que oferece ao jogador na forma como atingir os objectivos e as dezenas de combinações possíveis entre as suas mecânicas de combate furtivo que podem ou não ser letais, com armas físicas ou com poderes sobrenaturais. Assim como o Corvo de Edgar Alan Poe, o Corvo de Dishorored entrou nas nossas casas sem se fazer anunciar, mas o espanto e admiração que causa a sua chegada faz com que tenha vindo para ficar.

 

(versão analisada: Xbox 360; também disponível em PlayStation 3 e PC)