China in your hand.

O dia 22 de Junho de 2011 foi um mau dia para Eric Hirshberg, o CEO da Activision. Não sabemos se dormiu mal importunado por insónias, se furou um pneu a caminho do escritório ou se entornou o café da manhã por cima da gravata oferecida pela mulher. Sabemos que uma decisão sua nesse fatídico dia tornar-se-ia um grande erro, a de cancelar True Crime: Hong Kong, o terceiro jogo da série True Crime. Nas palavras de Hirshberg, se True Crime não tinha a possibilidade de se tornar um campeão de vendas como Grand Theft Auto, não deveria continuar a existir e a competir com a milionária série da Rockstar. NOT!

Felizmente a Square Enix tinha uma ideia completamente diferente das potencialidades de True Crime: Hong Kong e comprou os direitos do jogo para o transformar em Sleeping Dogs, um jogo de acção na terceira pessoa em mundo aberto, um “polícias e ladrões” que em alternativa a tornar-se mais um clone de GTA ganhou a liberdade para crescer e de amadurecer o género. Durante toda a aventura percebemos que a produtora United Front recebeu carta-branca para se afastar dos estereótipos e deixar de tentar competir directamente com os jogos similares. O resultado foi um jogo muito mais adulto e com uma forte personalidade.

Por vezes é necessário não correr atrás dos outros e seguir o nosso próprio caminho.

 

Como já é tradição na série, Sleeping Dogs coloca-nos do lado da lei controlando desta vez as acções de Wei Shen, um nativo de Hong Kong que após alguns anos como polícia nos Estados Unidos regressa à China para se infiltrar no seio das tríades, como um novo membro, e tentar assim descobrir os segredos a partir do interior. Se este cavalo de Troia não é novidade narrativa, o escritor Adam Foshko consegue criar uma estória notável com uma densidade psicológica muito forte assente na ambiguidade de um polícia à paisana que, quanto mais tempo passa no seio do mundo em que se infiltra, mais se vai tornando parte integrante desse mesmo mundo. Com um leque de personagens trabalhadas por forma a fugirem a estereótipos, contidas mas memoráveis como a senhora Chu, a silenciosa mas nada pacata mãe de um dos chefes, e com diálogos amadurecidos bem representados por um conjunto de actores de topo orientais e ocidentais, Sleeping Dogs configura uma estória imprevisível que eleva ao patamar seguinte um género demasiado habituado a recriar clichés do cinema.

Este cuidado contagia-se na representação da cidade de Hong Kong, algo positivo mas também negativo. As zonas deste mundo aberto fogem à representação demasiado simbólica e figurativa dos pontos de referência da metrópole chinesa, o que confere maior realismo à cidade mas em contrapartida torna a mesma num borrão homogéneo. Isto é, embora existam muitos elementos cénicos diferentes, existe também uma clara dificuldade em identificar ou ganhar familiaridade com o traçado do mapa. Os exageros arquitectónicos de outros jogos do género ou as claras separações de zonas por ambientes acabam por nos fornecer guias visuais de memória ao longo das nossas viagens. A ausência de nomes de ruas e de mais estruturas marcantes em Sleeping Dogs faz com que o mapa tenha sempre de ser a nossa forma de nos sabermos deslocar e como não existem veículos aéreos, acabamos por não conseguir construir uma imagem mental definida do desenho urbano.

Dois cheese, um bacon e uma caixa de asinhas de frango.

 

Não se entenda com isto que o mundo de jogo não tenha zonas memoráveis. As vielas apertadas entre ruas principais, os tuneis nas montanhas ou o mercado repleto de feirantes são zonas do mapa que recompensam as visitas sucessivas mas são muito poucas num jogo que nos coloca mais tempo a atravessar o cenário em vias rápidas do que por caminhos e ruas características. O facto da única câmara de jogo estar demasiado baixa também não ajuda a absorver a dimensão da cidade, com um horizonte demasiado perto da estrada que não permite enquadrar o topo dos prédios no nosso ângulo de visão.

Este campo visual limitado potencia no entanto a noção de velocidade quando conduzimos um veículo pelos traçados disponíveis onde a presença de trânsito é muito elevada. Os veículos de Sleeping Dogs não pretendem representar marcas famosas nem procuram o realismo na sua condução. O controle é afinado para uma condução divertida e menos para uma física realista. Isto faz com que todos os carros sejam divertidos de conduzir, inclusive os menos potentes, mas o exagero levado ao extremo com os carros mais potentes torna-os demasiado toscos e irrealistas. É nas motos que o jogo brilha, as mais recompensadoras no comportamento e as que provocam sensações vertiginosas de velocidade. Conduzir duas rodas potentes na noite molhada de Hong Kong é uma das experiências mais fantásticas deste título.

Motociclos – 1, Carros – 0

 

O mapa utiliza o habitual sistema de rotas desenhadas por GPS que nos guiam a um objectivo escolhido mas introduz sinalizações transparentes nos locais em que devemos mudar de direcção. Esta boa implementação no sistema de navegação permite-nos conduzir muito mais tempo a olhar para a estrada e a prestar atenção aos elementos do cenário do que com a atenção focada no pequeno mapa do interface. A presença da polícia é assinalada nas ruas do mapa assim como mais tarde podemos desbloquear a indicação dos locais para as missões secundárias e extras do jogo como as caixas de dinheiro ou os altares que nos vão aumentando a energia total, permitindo tentar atingir os 100% de jogo sem termos que recorrer a guias externos. Um inteligente sistema de garagens espalhadas pelo mapa permite ainda aceder rapidamente a todos os veículos que já adquirimos.

O melhor das mecânicas de condução são os abalroamentos e o assalto a outros veículos em movimento. O abalroamento permite que o nosso carro atire outros para fora da estrada, principalmente a polícia em perseguição, deixando-os imobilizados, enquanto o assalto em alta velocidade permite saltar de um veículo para o tejadilho de outro e roubar viaturas com muito estilo. Os combates com armas de fogo a partir do interior de veículos são momentos cinemáticos onde é fácil disparar para os pneus dos outros carros e motociclos provocando capotamentos em câmara lenta, momentos com um enorme impacto visual que nunca nos cansamos de repetir.

Yippee ki-yay..

 

Mas é com os pés assentes no chão que Sleeping Dogs mostra as suas melhores cores, seja nas perseguições a pé ultrapassando obstáculos urbanos ou no combate corpo a corpo que é o ponto mais forte do jogo. Muito similar ao combate de Assassins’s Creed ou de Batman Arkham City, o sistema de luta introduz a novidade de utilizar elementos do cenário para desferir golpes extremamente violentos. Rebentar enormes aquários com a cabeça de um inimigo, electrocutá-los em caixas de electricidade ou pendura-los em ganchos do talho são apenas algumas das muitas possibilidades de colocar um ponto final numa discussão. O combate permite intercalar com fluidez ataques e contra-ataques em combinações cada vez mais poderosas à medida que vamos subindo de nível. Existem três formas de evoluir as técnicas, através de pontos de polícia ou de tríade conseguidos nas missões ou através da colecção de um conjunto de estátuas de Jade que permitem desbloquear novos golpes. O combate corporal é tão fantástico que o jogo renega, e bem, as armas para um papel muito secundário.

As armas brancas como facas ou bastões só são utilizáveis para um ou dois inimigos sendo a seguir descartadas para o chão e as armas de fogo são raras no jogo e só aparecem em determinadas missões, não existindo lojas onde as comprar. A utilização de pistolas, metralhadoras e caçadeiras está no entanto bem implementada com um sistema de cover que só peca por não permitir uma melhor transição de obstáculos mas com momentos de câmara lenta recompensadores. A produtora foi muito inteligente em perceber que tinha um dos melhores combates corporais do género e renegou a utilização das armas para a necessidade mínima.

… motherfucker!

 

Um variado conjunto de missões principais, missões secundárias, roubo de viaturas ou detenções proporcionam uma longevidade muito grande ao jogo, mas o mais importante é a diversidade de missões que para além das habituais perseguições, assaltos ou intimidações, incluem também lutar contra monges budistas, desafinar num karaoke, perseguir um bolo de noivado ou perturbar o equilíbrio Feng Shui de um apartamento. A crítica frequente na repetição de missões em jogos como GTA não pode ser apontada a este jogo. Outras das melhores implementações de Sleeping Dogs são as mecânicas de abrir cadeados, colocar microfones escondidos ou hackear computadores e sistemas de vigilância, com interfaces perfeitos que imprimem um realismo físico à execução destas acções.

O jogo é deslumbrante na sua versão PC, principalmente se instalarmos o pack gratuito de texturas de alta resolução. Já nas consolas, sofre de demasiados problemas com os elementos em plano secundário, o que é especialmente problemático nas secções de condução com o horizonte transformado num borrão gráfico. No entanto, na versão PC que testámos, a direcção artística do jogo recebe o tratamento visual devido, com especial destaque para as personagens, das suas peles cobertas de tatuagens aos tecidos das roupas. Certas zonas, como o mercado à noite, são de uma enorme beleza estética mas para desfrutar de todo este detalhe adicional é necessário ter uma máquina bem potente.

Pediu o prato número 33?

 

As tradicionais rádios proporcionam horas de música, recorrendo ao catálogo de editoras independentes de qualidade superior como a 4D, a Ninja Tune ou a Warp, a artistas da cena urbana chinesa e, sublinhando a maturidade de Sleeping Dogs, até uma rádio exclusivamente de música clássica que nos permite apreciar um “Claire de Lune” de Debussy  enquanto nos preparamos para saltar para cima de um camião. A estratégia foi fugir a licenciamentos musicais demasiado dispendiosos mas conseguir um catálogo eclético de boas faixas. Como tudo o resto no jogo, uma decisão inteligente.

 

O melhor: a narrativa inteligente com um conjunto de personagens muito fortes; o combate corpo a corpo; as perseguições a pé; o sistema de garagens espalhado pela cidade; a condução de motociclos; o detalhe visual da versão PC; a enorme quantidade e variedade de missões.

O pior: uma cidade algo homogénea; a condução demasiado irrealista dos carros mais potentes; os problemas e bugs gráficos das versões de consola; as sequências aquáticas.

Sleeping Dogs liberta-se dos estereótipos do género para criar uma estória amadurecida e cheia de personalidade, saindo da sombra de GTA e evoluindo o género da acção em mundo aberto para uma fase mais adulta. A aposta no combate corpo a corpo como mecânica de luta principal é acertada, resultando num sistema de combate apetecível e recompensador que deixa para segundo plano a utilização de armas de fogo. Num momento de críticas lançada à concorrência pela linearidade e repetição das missões, este título introduz uma enorme diversidade de missões e actividades secundárias que mantém o jogo fresco ao longo de muitas horas. Não é o jogo perfeito mas a partir de Sleeping Dogs a fasquia do género passa a estar colocada muito mais longe.

 

(versão testada: PC, cortesia Square Enix. Também disponível em PlayStation 3 e Xbox 360).