Sangue e Neon.
Ao chegarmos ao menu principal, com o título de jogo indecifravel, letras pulsantes e cores saturadas, é dificil não nos sentirmos desprevenidos pela “estética de choque” que o jogo apresenta. A música, a paisagem de palmeiras que se deslocam na nossa direcção a alta velocidade como se percorresse-mos uma via rápida, ou talvez apenas o efeito psicadélico de uma substância menos legal, são o primeiro indicio de que nos espera algo de doentio e bizzaro.
Após uma cutscene em que um trio de pessoas com máscaras de cabeça de animal (sendo a galinha uma delas) nos fala com desdém, somos imediatamente colocados no nível tutorial, em que um vagabundo sentado num trono de sacos do lixo nos “ensina a matar pessoas”.
Hotline Miami é um jogo de puzzles, de mecânica top-down shooter/ beat’em up, com grafismo em sprites, e por mais estranho que possa parecer, resulta na perfeição. Consegue combinar a estrutura de puzzle, com a rapidez arcade, viciante e imediata de um Super Meat Boy, e a acção caótica de um beat’em up. Em termos de estilo e ambiência, é como se jogássemos uma versão 8-bits de Manhunt, em qualquer micro-computador dos finais de 80. Foi descrito pelos criadores como um Fuck’em up. Nem mais.
Passado numa Miami alternativa dos anos 80, somos um homem envolvido numa viajem de brutalidade, assassínio e máscaras de animais, despoletados por estranhos telefonemas que recebemos no nosso apartamento. A primeira força de Hotline Miami está na sua estética visual e sonora. É visualmente estonteante, com um ambiente retro saturado ao ponto do hipnotismo. As cores vibrantes e música de batidas pulsantes, conseguem transmitir a sensação de descontrolo, exagero e extremismo visual do que se passa no ecrã, que acaba por ser uma caricatura à época em questão, também ela de extremismo estilístico e estético.
A sobrecarga sensorial do jogo tem um efeito desorientador sobre o jogador e contribui para a sua envolvencia na loucura e no grotesco do que acontece à nossa frente, e do qual somos cúmplices. É um jogo de hiper-violência, representada pelo grafismo retro de sprites trabalhados ao promenor. Todo o tipo de vísceras que possam imaginar estão representadas no jogo, e o impacto dado por este tipo de arte é muito particular, conferindo ao jogo um aspecto mais rudimentar e degradante. A presença visual e sonora de Hotline Miami é única e de uma consistência que coloca este pequeno indie lado a lado com os grandes.
A história é apresentada de forma algo surreal, com personagens bizarras e situações estranhas. Todos os cenários estão repletos de pormenores com impacto narrativo e referências à época, como consolas NES, a decoração ou a presença de um clube de vídeo VHS Palace. Alguns pormenores apenas me despertaram a atenção aquando na minha segunda campanha, que pode ser completada em cerca de 6 horas. É um jogo relativamente curto, mas a experiência preenche…como um murro no estômago.
Na demanda contra o crime organizado (ou não?) temos à nossa frente um conjunto de puzzles, situações em que temos de eliminar todos os inimigos em jogo. Para isso podemos usar dezenas de armas, que vão sendo desbloqueadas à medida que progredimos e somamos pontos ou apanhamos pelos níveis. As formas inventivas como matamos os adversários são fonte de pontos, que disponibilizam mais armas. Desbloqueamos também máscaras com a forma de cabeça de animal e que oferecem modificadores de jogo que podem facilitar ou dificultar a experiência. Tudo depende da forma como jogamos. Ser criativo, arriscar, realizar combos de mortes ou execuções, são sempre fonte de maior número de pontos. Este aspecto de Hotline Miami é profundamente arcade, com os pontos a serem bombeados no ecrã e as cores intensas do cenário a vibrarem enquanto fazemos combos, que resultam invariavelmente em rios de sangue, vísceras e na devastação do ambiente. Que jogo se lembram de poder matar um inimigo dando-lhe com a porta no focinho?
O sistema de pontuações não é muito claro. Não é óbvio que tipo de acções oferecem mais ou menos pontos, mesmo na contagem final do nível, de uma forma reminiscente dos resumos de pontuação típicos dos jogos de design arcade. As armas que usei, os combos que fiz ou a forma mais ou menos furtiva de jogar, dependeu exclusivamente da minha vontade. Joguei como me diverti mais e não necessariamente por tentar realizar melhor pontuação, mecânica que poderia estar melhor implementada, ou pelo menos ser mais concreta.
A forma como jogamos pode ser mais furtiva ou mais agressiva. Disparar alerta os inimigos nas proximidades e existem alguns oponentes que só podem ser derrotados com um determinado tipo de arma. Despachar inimigos é extremamente recompensador e fonte de uma satisfação que pode ser preocupante. Gargantas cortadas, miolos espalhados à paulada, panelas de água quente pela cabeça a baixo, disparos de caçadeira, katanadas, e um sem número de outras formas de fazer mal aos outros, servem de aviso que este jogo não é para estômagos sensíveis, nem para os mais novinhos.
Trocar de arma e tão simples como carregar no botão direito do rato, e existem momentos em que nos sentimos como verdadeiras bestas assassinas, ao realizar combos e ataques dignos do melhor filme de acção; como por exemplo derrubar um inimigo ao abrir a porta, lançar um ferro sobre outro e pegar numa caçadeira, baleando ainda outro. Tudo numa questão de segundos. Sentimo-nos verdadeiros Badass. A possibilidade de deslocar a câmara e fazer lock-on nos inimigos adiciona ainda um elemento de estratégia na resolução de cada desafio, que eleva a mecânica de shooter a algo muito mais cerebral.
Um dos problemas que o jogo tem está directamente ligado à precisão do controlo dos ataques corpo-a-corpo. Hotline Miami pode ser extremamente frenético, e por vezes a precisão da mira não é a melhor. Dezenas de vezes sofri de uma morte prematura por não acertar nos meus inimigos, e continuo a não perceber se foi pela crosshair não estar no sítio certo ou se simplesmente o ataque não acertou no alvo. A crosshair é pouco distinguível do resto dos elementos do jogo, o que dificulta ainda mais o controlo nos momentos em que o jogo é mais caótico.
Por outro lado, alguns problemas AI e detecção de colisões podem causar situações ridículas em que um inimigo está em cima de nós a disparar sem nos acertar, e nós a ele. Ficamos ali abraçadinhos um no outro à espera que alguém se mexa. Felizmente a morte não é muito penalizante, pelo que em segundos estamos a realizar outra tentativa. Basta alguém nos tocar uma vez para morrermos e pressionar uma tecla para rapidamente reiniciar o jogo.
Hotline Miami é viciante, frustrante e refrescante como qualquer bom jogo de arcade. Mas é também o exemplo perfeito de como a expressão artística pode fazer toda a diferença num jogo. É de uma envolvencia única, no seu mundo imundo de crime, violência e loucura, e ainda assim não se leva demasiadamente a sério, com algumas surpresas que nos fazem sorrir e ao mesmo tempo pensar naquilo que estamos a fazer, a colocar em perspectiva o próprio conceito do jogo. É assumidamente indie, mas não é pretensioso, e é corajoso na forma como desenha a experiência, do ponto de vista estético e de jogabilidade.
O melhor: é um puzzle shoot’em up de mecânicas com design elegante, inovador e desafiante. Estética visual e sonora de grande consistência e com impacto emocional. Os puzzles não têm uma forma certa de serem resolvidos, com muitos graus de liberdade para o jogador. Extremamente recompensador, repetir a experiência é muito gratificante. Banda sonora de qualidade.
O pior: Sistema de pontuações pouco claro. Crosshair difícil de ver no meio da acção mais frenética. Problemas de AI e colisões no combate corpo-a-corpo podem resultar em frustração. Impossibilidade de ver as máscaras e armas disponíveis sem iniciar um nível ou ao desbloquear as armas. Não ser possível trocar de máscara após morremos, no decurso de um puzzle.
Com o final do ano a aproximar-se, é sempre bom quando somos surpreendidos pela positiva. Hotline Miami é uma explosão de cor, música e violência, com uma mecânica de jogo que consegue combinar o shoot’em up e puzzle game com grande habilidade. De jogabilidade frenética mas estratégica, dá espaço ao jogador para experimentar e abordar cada puzzle de acordo com o seu ritmo e destreza. É também um exemplo de como não é preciso ter um motor de jogo fabricado pela NASA para ter impacto emocional sobre os jogadores. Apesar da campanha curta e algumas imprecisões no combate que podem resultar em frustração, a facilidade com que retomamos o jogo atesta à sua capacidade de nos prender em frente ao monitor, perante um bailado de sangue, Neon e sintetizadores hipnóticos.
Comments (3)
Jogo suberbo, para mim Indie do ano!!
[…] dos que melhor nota ou boas palavras receberam aqui no galinheiro. Quando testámos pérolas como Hotline Miami, Little Inferno ou Thomas was Alone elevámos esses mesmos jogos à categoria de cânone: aqueles […]
[…] Hotline Miami vem provar que um jogo feito neste engine pode não só ser um sucesso de culto, como também um sucesso comercial. Já a demonstração de Papers Please exibe a capacidade de se programar mecânicas novas e inventivas nesta ferramenta. Gunpoint eleva a fasquia, provando que é possível usar este engine para polir mecânicas de jogo a um nível extremamente afinado. […]