Mais uma vez o impensável acontece. Mais uma vez alguém perde a noção da realidade e a compaixão com o próximo e dispara sobre pessoas. Desta vez o caso assume proporções muito mais difíceis de aceitar emocionalmente pela inocência das crianças mortas e pela noção de um futuro que perderam de forma demasiado violenta. Saber que estas crianças sentiram provavelmente momentos de terror antes de morrer, alterando radicalmente a concepção que tinham de um mundo muito mais simples onde a brincadeira é a prioridade, é para todos nós muito difícil de aceitar. A nossa primeira reacção é óbvia e previsível: raiva.
Nestes momentos, e neste em especial, somos tão abalados nas nossas noções de humanidade que não é condenável a nossa vontade animal em encontrar culpados e bodes expiatórios. Mais uma vez, foram os videojogos os primeiros alvos. Call of Duty foi como sempre o bode de eleição, mas desta vez encontraram-se ligações tão surreais como Mass Effect 3 ou Dinasty Warriors. É certo que os tabloides e os canais de televisão assumidamente conservadores foram os principais responsáveis por estas acusações mas o resto dos media acaba por fazer relações similares, de uma forma menos declarada mas igualmente irresponsável.
A série Call of Duty vendeu mais de 100 milhões de jogos até aos dias de hoje e estão cerca de 40 milhões de jogadores registrados e activos diariamente a jogar as várias versões. Estamos a falar de 40 milhões de pessoas: jovens, homens, mulheres, seniores, etc. É certo que muitas crianças não deviam estar a jogar este jogo, que tem aliás bem visível na capa a indicação maiores de 18 anos (e isto dá um grande debate sobre a responsabilidade que os pais têm nas aquisições dos filhos), mas relacionar o Call of Duty com os massacres que acontecem anualmente é o mesmo que associar às pessoas que andam de metro, ou que compram chapéus vermelhos ou que gostam de correr.
A infeliz verdade é que todos os dias morrem crianças no mundo, indevida e estupidamente, devido a interesses políticos, crenças religiosas ou racismo. Não existe praticamente um dia do mundo moderno sem atentados bombistas, limpezas étnicas ou guerras causadas por lutas de poder. Pela associação de ideias sobre a ligação com os videojogos, a religião, a política e o racismo deviam então ser todos os dias capas de jornal e aberturas de jornal com títulos como estes:
“Hoje morreram 30 crianças por causa da religião”
“Hoje morreram 20 crianças por causa de interesses políticos e financeiros”
“Hoje morreram 10 bebés por causa de racismo étnico”
Claro que também isto são associações demasiado fáceis. Não há respostas simples sobre o porquê do mal existir e sobre qual a razão pela qual nos podemos transformar em monstros sem amor pelo próximo ou por nós próprios. Tenhamos sempre o cuidado de tentar compreender antes do julgamento. Não é fácil e será sempre necessário juntar muitas pessoas. Uma sozinha nunca o conseguirá.
Como forma de respeito, como forma de reflexão, um grupo de jogadores de shooters, a maior parte dos quais os mesmos jogos acusados pelos massacres, decidiu convocar um “cessar-fogo” online. Não estão a querer fazer nenhuma associação dos videojogos ao massacre, pois acreditam que não existe qualquer ligação possível mas sim uma oportunidade de durante um dia podermos pensar nas vítimas do mesmo. Queria sugerir-vos que se juntem e que baixem as armas ao longo desta sexta-feira dia 21 de Dezembro. Não disparem um único tiro virtual e, se possível, larguem o mundo virtual mesmo que seja tão inocente como o de Super Mario. Estejam com os que amam, com os vossos namorados, com os vossos filhos, com as vossas avós. Peçam e partilhem histórias de infância e convivam. Os pais abracem e beijem os vossos filhos, os filhos abracem e beijem os vossos pais. E se quiserem, se for possível emocionalmente, pensem nas vítimas de todos os massacres e de como os seus futuros terminaram antes do tempo. Depois pensem no vosso futuro e como o querem aproveitar.
É que, possivelmente, a melhor forma de compreendermos o mal é tornarmo-nos pessoas melhores. Mais do que um dia para colocar os shooters de lado, este será um dia para colocar toda a virtualidade de parte e passarmos mais tempo com as pessoas que gostamos e amamos. Porque no dia seguinte não sabemos se o poderemos fazer.
Comments (2)
Boas… embora esteja um pouco cansado de estar sempre a ouvir, sempre que uma situação destas acontece, que a culpa é dos videojogos compreendo o porque e respeito a opiniao mas… damn eu jogo desde os 5 anos, tudo e mais alguma coisa, e nunca senti necessidade de andar para ai aos tiros nem a facada a ninguem. Conheco pontapes de gamers mutio ( mas mesmo muito) viciados em gaming online (nomeadamente Call of duty, CS etc) e nunca vi indicios ou casos destes… Antss de começaram a apontar dedos aos jogos, (pelos vistos deve ser o mais facil e pratico de se fazer nestes casos) porque nao começar com um maior controle sobre a venda de armas e a quem sao vendidas? Enfim isto nao é a 1º vez e julgo pelo historial que nao sera, muito infelizmente, a ultima, Ja agora excelente artigo pessoal do rubber, eu farei parte do cease fire!
Thanks Gonçalo. Para mim é um cease fire que se podia chamar cease gaming. Vou desligar as consolas e vou aos baloiços com a minha filha :)