Anti Anti-Heróis.
Nos últimos 10 anos temos assistido a elevação do shooter como o género de maior potência nos videojogos, para além dos eternos simuladores desportivos. Toda a polémica em torno da violência nos jogos e suas potenciais repercussões na vida real têm igualmente escalado, o que é compreensível quando milhões de pessoas, de todas as idades e géneros, se dedicam à eliminação de inimigos virtuais como passatempo semanal.
Se por um lado considerar que os comportamentos violentos são aumentados pelo uso de jogos violentos é fechar os olhos às verdadeiras causas sócio-culturais desse problema, a verdade é que a violência enquanto comportamento humano pouco tem sido explorada nos videojogos, de uma forma adulta e aguda, como outros meios artísticos têm feito. A consciência da presença humana em frente ao ecrã e o impacto que acções passadas nesse mundo virtual podem ter no jogador, é um terreno explorado primariamente no circuito de jogos independentes.
Mais do que o aspecto visual e sonoro de um videojogo como obra, é a forma como os jogadores se envolvem no jogo, e particularmente a forma como jogam, os principais factores a ter em consideração quando prontamente (muitas vezes demasiado) nos referimos a um jogo como sendo uma “peça artística”. A desconstrução e a subversão de modelos estabelecidos é uma das formas que os videojogos têm de conseguir ter um impacto duradouro sobre quem os joga, e Spec Ops: The Line consegue, em parte, atingir este objectivo.
Deste os primeiro minutos que é clara a influência da obra Heart of Darkness, de Joseph Conrad, e em particular da sua adaptação ao grande ecrã por Apocalypse Now. Ainda assim, Spec Ops segue um caminho singular, com a sua própria visão da descida aos infernos que a premissa estabelecida augura. No menu principal, com a vista desconcertante de um Dubai devastado por uma tempestade de areia apocalíptica, a bandeira dos EUA desgrenhada e a versão desesperada de Star Spangled Banner por Hendrix a acompanhar a cena, sentimos o peso que o jogo tem. Somos parte de uma equipa de reconhecimento do exercito americano, destacada para o Dubai 6 meses depois da catástrofe, e após a recepção de uma mensagem do responsável pela evacuação inicial da cidade, Coronel Konrad, de quem se perdeu o contacto há muito.
Na superfície, The Line é o típico cover-based shooter em que um grupo de três soldados confronta meio mundo e aniquila outro meio, com a obrigatória secção de helicóptero, artilharia pesada, taxonomia típica de inimigos e outros elementos demasiado comuns nos dias de hoje. De facto, o sistema de cobertura nem é dos melhores que já vimos, em termos de responsividade, requerendo alguma habituação, e fonte de momentos de frustração e morte prematura. Em dificuldade normal, o jogo é bastante desafiante e as inconsistências desta mecânica podem, a espaço, provocar alguns suspiros.
É na dinâmica narrativa, e principalmente no foco do jogo sobre a evolução dos personagens, que Spec Ops se destaca dos outros shooters, trabalhando a um nível de consciência de si que o eleva a algo mais do que uma série de tiroteios desmiolados. Se Gears of War nos oferece momentos de acção polida e tremendamente satisfatória, The Line subverte toda a apoteose bélica àquilo que sempre foi: uma power fantasy em que todas as consequências são ignoradas.
Diz-me porque jogas, dir-te-ei quem és.
Não é um jogo agradável, nem tão pouco divertido. Existe um sentimento constante de mau estar ao longo de toda a história, de desconforto dos personagens e com eles do jogador. Oferece escolhas morais que no fundo acabam por ser semelhantes às de jogos como The Walking Dead, em que não são as consequências que mudam, mas a forma como as personagens crescem ou se destroem. Como jogadores, sentimo-nos responsáveis pelas acções do personagem mesmo que não concordemos com elas, e isto tem sido fonte de crítica em relação ao jogo.
Mas parece-me evidente a vontade da Yager em colocar o jogador exactamente nessa situação, em que a progressão do jogo depende das nossas acções, em que as escolhas acabam por não o ser verdadeiramente, como na maioria dos shooters, em que temos de eliminar fazer A ou B para avançar no jogo. A questão é que em Spec Ops toda a glória de ser um soldado invencível acaba por fazer ricochete sobre o jogador. E a única forma de fugir a essa dissonância é justificar de alguma forma as nossas acções, ou simplesmente não jogar: a subversão daquilo que um videojogo é.
A evolução de Walker enquanto personagem é trabalhada no jogo de forma sublime, reflectindo-se inclusive sobre as vocalizações que faz e as escolhas que obriga o jogador a fazer. Também nós enquanto jogadores mudamos a nossa forma de olhar para o que se passa no ecrã, e apesar de isto ter muito de pessoal, acabamos por não ter outra escolha senão fazê-lo. Spec Ops é exímio em colocar situações semelhantes sob luzes diferentes. Foi talvez o primeiro shooter em que senti grande desconforto ao longo da maior parte do jogo, pela dúvida, pela ambiguidade e confusão que podemos sentir perante o que se passa no ecrã. Enquanto na maioria dos jogos do género sabemos exactamente sobre quem disparar e porquê, em Spec Ops essa linha é difícil de estabelecer.
Um Dubai engolido por areia é uma localização que consegue oferecer novidade. Apesar de ter elementos estéticos comuns aos shooters modernos, acaba por equilibrar essa familiaridade com a aura de loucura, mantendo-se fiel à premissa que estabeleceu. Os resquícios da ostentação e excesso que outrora radiava do local, contrastam com a degradação humana, polvilhada pelas interacções que vamos tendo ao longo do jogo com os outros personagens, ao som de bandas como Deep Purple, Mogwai, The Black Angels ou Hendrix.
Existe ainda um modo multijogador que não deveria de existir. A própria Yager demonstrou o seu desagrado na presença desta opção, que acaba por diminuir a qualidade do pacote final que Spec Ops oferece. Infelizmente o mercado acaba por obrigar a este tipo de comprometimentos, com um selling point que aproxima o jogo dos seus contemporâneos pelas piores razões, quando existe uma polarização tão evidente em termos narrativos. No entanto, a 2K Games acaba por estar de parabéns, apesar do multiplayer, pelo risco tomado na publicação de um jogo cujo design narrativo se encontra muito para além do shooter comum.
Existem bastante semelhanças entre Silent Hill 2 e Spec Ops: The Line, não enquanto produto jogável, mas na forma como abordam cada um dos géneros. Ambos constroem uma experiência narrativa mais madura e de forte impacto sobre o jogador. Ambos sofrem de imperfeições em termos de jogabilidade e têm raízes num design mais clássico das respectivas mecânicas de jogo. E com opiniões mistas em relação à sua qualidade geral, ambos são marcos na forma como o respectivo género foi elevado em termos artísticos. Acredito que Spec Ops no futuro próximo, seja laureado como um marco no género do shooter, assim como Silent Hill 2 o é no género do terror psicológico.
O melhor: o design narrativo e a sua envolvência; a forma como transforma as personagens e com elas, a postura do jogador perante o jogo; Desconstroi o shooter moderno, trazendo uma nova perspectiva àquilo que enquanto jogadores fazemos neste tipo de experiências.
O pior: multiplayer básico e despropositado; cover-system com alguns problemas de controlo, requer alguma habituação; pode tornar-se difícil e frustrante em algumas secções do jogo; Alguns soluços na AI dos NPCs.
Spec Ops: The Line constitui um passo importante na transformação do shooter em algo mais do que uma galeria de tiro em que controlamos carcaças musculadas armadas até aos dentes. Consegue de forma arriscada e determinada, criar uma ligação de contra-identificação entre o personagem do jogo e o jogador que o controla, através da desconstrução do shooter moderno. Em termos de jogabilidade pura, Spec Ops não difere muito dos seus contemporâneos, o que acentua ainda mais o impacto que a narrativa tem sobre nós, quando as acções que já fizemos vezes sem conta neste tipo de jogos são colocadas sobre uma perspectiva diferente e desconcertante. Não esperem um final feliz. O shooter amadureceu e já não era sem tempo.
Análise da versão PlayStation 3
Comments (2)
O unica coisa que posso falar desse game é que ele foi o melhor shoter de 2012… pena que ele não foi tão apreciado como seus grandes rivais.
Carlyson, acredito que se torne numa referência em termos narrativos, apesar das falhas que tem. Ainda bem que gostou :)