Rectângulo amoroso.
O minimalismo tem sido usado como direcção de design em grande parte dos jogos independentes na última década e ainda assim são raros os que o utilizam eficazmente, como algo mais que um atalho e sem qualquer valor artístico. Thomas Was Alone usa o minimalismo como abordagem estética, no refinamento dos seus puzzles, e surpreendentemente, na forma como nos desarma com a sua força narrativa.
É um jogo de puro design de níveis, apresentando-nos a essência visual do que um jogo de plataformas e puzzle pode ser. Mas o seu foco sobre as “essências” não fica por aqui. É no equilíbrio entre o seu minimalismo estético e as mecânicas narrativas que Thomas Was Alone se destaca, um exemplo de como a pureza de um conceito pode ter grande impacto sobre o jogador. No seu âmago, os jogo oferece-nos as típicas mecânicas de plataformas, com inversão de gravidade e outras mudanças de paradigma de jogo a que já nos habituamos em outros títulos do circuito independente. A grande diferença está na história que o jogo nos conta, e em que nos vemos envolvidos como jogadores.
Thomas, o nosso personagem, começa o jogo sozinho, tal como nós. Mas cedo a ele se juntam inúmeras outras formas de jogar e de olhar o mundo. Confusos? Thomas não passa de um rectângulo vermelho, tão simples como isto. Os seus companheiros e companheiras são também eles quadriláteros, cada um com um modo diferente de saltar. Chris, Claire, John ou James, são os nomes de algumas das formas que controlamos, e o mais incrível é nos referirmos a elas como “personagens”. Isto porque em Thomas Was Alone o minimalismo não é impedimento para que o jogador estabeleça identificações com os agentes que controla, se ria com as situações e pensamentos de cada personagem ou até deixe escapar uma lágrima. Irei mais longe ao considerar que é por esse minimalismo, pela excelente escrita e narração que o jogo tem, e pela nossa capacidade humana em criarmos relações entre as coisas, que Thomas Was Alone nos consegue envolver.
A vida de várias formas.
O jogo interage connosco e nós com ele em várias frentes: no desafio cerebral e de puro design que temos à nossa frente; no sempre presente texto que acompanha os personagens; na narração desse mesmo texto; e finalmente, na extraordinária composição musical que acompanha o jogo de uma ponta a outra. É desarmante como atribuímos qualidades, defeitos, ânsias, desejos e até ideais a um conjunto de rectângulos e quadrados, pelo simples facto de as ouvirmos narradas enquanto jogamos, mas também porque a própria jogabilidade e controlo dos “personagens” são o reflexo desses conceitos humanos. Chris é um quadrado resingão que não consegue saltar tão alto como Thomas; Claire, um ostracizado quadrado gigante e lento, que descobre a maravilhosa capacidade de flutuar na água e considera-se a partir daí uma super-heroína com o dever de ajudar os outros; Laura tem um terrível segredo e sofre por ser usada e descartada logo a seguir, isto por ser um fino rectângulo sobre o qual as outras personagens podem saltar mais alto e mais longe.
O modo como cada personagem é controlado, a sua habilidade, é um espelho da sua forma geométrica e das interacções que tem com os outros. Relembremos que estamos a falar de quadriláteros, em puzzles de design fino e concreto, onde alternando cada personagem e interagindo entre si, teremos que chegar até um portal. Thomas Was Alone é um jogo sobre amizade, sacrifício, cooperação e formas geométricas com as quais nos identificamos como se fossem seres pensantes. É clara a forma como o jogo faz uso da nossa tendência inata de estabelecer ligações e padrões, em atribuirmos significados a símbolos, em espelharmos num objecto ideias e conceitos de abstracção superior. Fazemos isso em todos os jogos, mas raramente sobre um personagem tão minimal como um rectângulo.
Em termos de desafio, Thomas Was Alone é exigente sem ser frustrante. Cada puzzle está trabalhado ao pormenor, com uma solução específica, em que temos de fazer uso das personagens para alcançar cada um dos portais correspondentes. Existe uma história subjacente ao jogo que, e sem querer estragar a experiência, envolve um conjunto de inteligências artificiais que ganham agência. É no fundo um jogo com uma temática de libertação, de fuga e companheirismo. A narrativa é recheada de humor e é impossível ficar indiferente ao excelente trabalho do actor Danny Wallace, a fonte de humanidade de cada uma das pequenas formas geométricas. Para além do salto, de usar as personagens como plataforma umas das outras, oferece ainda uma variedade de mecânicas que trazem grande frescura a toda a experiência, nunca se tornando aborrecida ou repetitiva. O jogo consegue uma dinâmica perfeita entre as mecânicas de cada personagem, a história e a sua personalidade, casando a narrativa e a jogabilidade de uma forma elegante e bela.
Existem situações em que podemos sentir pequenos problemas, concretamente ao nível do posicionamento da câmara, que às vezes pode esconder o texto que está a ser narrado. É possível sentir alguma confusão quando controlamos muitas personagens ao mesmo tempo e as seleccionamos, mesmo com o seu ícone no canto inferior do ecrã. Mas de um modo geral, as pequenas imperfeições não mancham o excelente trabalho de Mike Bithell na construção pormenorizada de todas as situações labirinticas por onde levamos os nossos pequenos heróis, com variedade o suficiente para que nunca sintamos fadiga, e com a omnipresença do narrador, pequenos detalhes visuais e a poderosa música de David Housden.
O melhor: bom design de níveis, com puzzles desafiantes mas acessíveis; consegue interligar o seu minimalismo com uma força narrativa fantástica; o modo como nos consegue fazer sentir investidos sobre o destino de formas geométricas; a elegância como as personalidades de cada elemento são reflectidas na resolução dos puzzles; a narração e a música.
O pior: posição da câmara pode esconder o texto em algumas ocasiões, ou oferecer visibilidade limitada; alternar entre as personagens é por vezes confuso;
Thomas Was Alone é uma experiência narrativa singular, em que o excelente trabalho de narração se interliga de forma elegante com a experiência de jogo, as diferentes mecânicas de cada personagem e a sua interacção na resolução dos puzzles. É um jogo de estética minimalista e foco sobre o design de níveis que consegue preencher essa simplicidade com conceitos como a cooperação, a amizade e a liberdade. Para nos ligarmos a um jogo não precisamos de expressões faciais realistas, que acabam por nos fazer distanciar perante sua falta de profundidade. A proximidade envolve muito mais do que o olhar, mas antes uma compreensão das pequenas coisas que mexem connosco, como a personalidade de alguém. Thomas Was Alone consegue-nos aproximar dos seus personagens pela forma como reagem ao mundo e aos outros, e como reflectem as acções do jogador. O facto de o fazer de uma forma simples torna-o num jogo extremamente belo.
Análise da versão Windows. Disponível também para Mac
Comments (2)
[…] receberam aqui no galinheiro. Quando testámos pérolas como Hotline Miami, Little Inferno ou Thomas was Alone elevámos esses mesmos jogos à categoria de cânone: aqueles que ficam na história como faróis […]
[…] uma delícia em ilustração. Estes juntam-se a outros da lista de indies, como Retro City Rampage, Thomas Was Alone e […]