Por onde andaste tu, Lara Croft?
A pergunta é justificada: Por onde andou a Lara Croft? Ou melhor, reformulando: Por onde andou esta Lara Croft? Uma Lara Croft que tem medos e receios; uma Lara Croft que sofre e que treme face às intempéries; uma Lara Croft que é ao mesmo tempo menina e mulher mas, acima de tudo, uma pessoa. Esta Lara nunca existiu antes. Onde antes tínhamos uma boneca insuflada, agora temos uma jovem que cresce, e esse crescer é a melhor parte de um enorme conjunto de peças bem afinadas neste recomeçar de uma das melhores séries da história dos videojogos.
É o crescimento que define este jogo de uma ponta a outra. É uma história de sobrevivência e de quão longe podemos ir quando nos colocam em perigo numa ilha repleta de perigos naturais e humanos. Não é uma estória perfeita. Este género de narrativas é a cama perfeita para momentos de tensão emocional muito fortes e para o uso de uma profundidade dramática disruptiva mas a Crystal Dynamics não quis desbravar terreno demasiado virgem e preferiu jogar pelo seguro com uma estória com a dose essencial de tensão mas geralmente bem comportada. No entanto, abraçou a componente do crescimento e transição de Lara em Lara Croft, de uma jovem insegura a uma mulher de armas, e aplicou-a como mecânica ao longo de toda a campanha desta aventura na terceira pessoa.
Ao contrário da maior parte dos jogos que aproveitam os primeiros momentos de jogabilidade como tutorial para nos ensinar e demonstrar todas as capacidades dos nossos heróis, em Tomb Raider a nossa heroína vai aprendendo as suas capacidades ao longo de literalmente toda a campanha, e existem atributos e características que só surgem já perto do final do último acto. Não é uma questão de desbloqueios que vamos adquirindo. Esses também existem. É um conjunto de possibilidades do que a Lara é capaz, que o próprio jogo decide a partir de quando nos vai ensiná-las. É normal darmos por nós a remoer insultos à produtora, enquanto no calor do combate não podemos utilizar técnicas de combate corpo a corpo, para elas acabarem por surgir quase a chegar ao final da primeira metade do jogo. Isto deixa-nos alerta e começamos a entender que tal como Lara, também nós iremos crescer como jogadoras e jogadores ao longo da campanha. Esta é a maior e melhor de todas as ideias do novo Tomb Raider.
O próprio interface de jogo está construído de forma a ser o menos intrusivo possível e ajudar a transmitir a ideia de estamos a desbravar terreno desconhecido e a tentar sobreviver. A sua integração na imagem resume-se apenas às peças essenciais. Não há mapa presente, não existem indicadores de direcção, as nossas munições aparecem apenas por breves momentos quando são recarregadas ou mudamos de arma, existindo sempre uma preocupação de deixar o ecrã o mais limpo possível. Isto não só permite uma maior sensação de imersão como também deixa todo o ecrã disponível para uma das melhores direcções artísticas de todos os tempos.
Tomb Raider é o jogo mais deslumbrante desta geração de consolas, ultrapassando em vários níveis tudo o que já se fez graficamente até hoje. Ao longo de toda a campanha sentimos que estamos perante um jogo da próxima geração de máquinas e não da actual. Da primeira visão da praia e do horizonte quando começamos o jogo, na qual a luz é quase inacreditável até ao enorme cemitério de navios à beira-mar; ao pó que cai nas grutas e cavernas que tremem, onde as estátuas estão esculpidas nas paredes; às florestas onde a noite é cortada pelos raios das lanternas; das montanhas, às cascatas passando pelas cidades perdidas; tudo é de uma intensidade que dá vontade de ficar parado a olhar em redor. Numa configuração inteligente que faz com que cada zona da ilha seja um cenário completamente distinto de todos os outros, os elementos são trabalhadas com cuidado peça a peça. Aqui não existe repetição de construções e parece que tudo foi trabalhado cuidadosamente à mão. Não parece um cenário de jogo, parece um cenário que poderia existir no mundo real. Com a ajuda do impressionante trabalho de desenho de som, com o vento a soprar entre as árvores, com as madeiras que pisamos a ranger, sentimos que estamos a visitar um lugar vivo.
O problema é que não podemos ficar muito tempo a apreciar a paisagem, pois mais cedo ou mais tarde uma bala vai ter o nosso nome. O combate de Tomb Raider é frenético e algo caótico. Os inimigos avançam rapidamente sobre nós ou tentam constantemente tirar-nos do nosso espaço de protecção fazendo com que a estratégia de esconder, esperar e atirar seja aqui quase impossível. O facto de durante grande parte da aventura não existir combate corpo a corpo faz com que as secções de combate nos coloquem os nervos em franja e que estejamos muitas vezes a terminar um combate disparando à queima-roupa. Isto no entanto conduz a momentos memoráveis como recuar em fuga enquanto se puxa a corda do arco e deixar uma flecha na testa de um inimigo quando este está a um metro de nos atingir.
Tanto no combate como na movimentação, Tomb Raider pede emprestado a muitos outros jogos. Esta é uma das críticas ao jogo, o facto de também aqui se manter em território seguro e não tentar criar nada de novo. Talvez possamos aplaudir o sistema de cobertura o qual é automático e não dependente de botões mas enquanto isto pode ser um dos pontos positivos para quem quer uma experiência mais real, pode também ser um ponto negativo para quem gosta de uma experiência mais mecânica com transição entre obstáculos, aqui impossível.
A escalada de paredes, a descida por cordas, a transição entre buracos utiliza mecânicas às quais já estamos habituados, associados a um conjunto de armas que também parece saído de outros jogos concorrentes. É inevitável referir Uncharted, o jogo onde Tomb Raider vai buscar mais mecânicas (por sua vez também ele um jogo inspirado em Tomb Raider). Curiosamente, este Tomb Raider é aquilo que Uncharted deveria ter sido no seu terceiro jogo, o menos bem equilibrado (e jogável) da série. No entanto, embora Tomb Raider não traga grandes novidades a este género de jogos, tudo o que faz, faz bem. Todas as mecânicas estão extremamente afinadas ao ponto da perfeição no seu uso e só alguns pequenos problemas de câmara nos finalizadores de combate a corpo enlameiam o que em contrário seria um conjunto de mecânicas sem um único defeito.
Outra das novidades à série é a introdução de pequenos toques de RPG na evolução da personagem que se estão a tornar obrigatórios em qualquer género. Não podemos verdadeiramente falar de skill trees, mas sim de upgrades às capacidades de Lara e às suas armas. Há no entanto decisões a serem tomadas ao longo da campanha e podemos chegar ao final com cerca de 90% de upgrades desbloqueados, o que faz com que não existam escolhas demasiado vincadas por um estilo definido de personagem como nas verdadeiras skill trees.
O que não é novidade mas sim um regresso são os puzzles nas catacumbas, cavernas e outros. Longe de alguns dos melhores momentos deste género de puzzles, os que este Tomb Raider nos traz são no entanto bons momentos se bem que demasiado fáceis e algo iguais entre si. A utilização do vento num dos puzzles roça a genialidade mas um uso mais intensivo deste género de jogo terá de esperar por títulos futuros. Tomb Raider tenta equilibrar os sistemas de jogo mas é claramente assumido como um jogo de acção orientado para o combate e a exploração do cenário. Essa era uma das maiores preocupações dos fãs, temendo que o jogo fosse uma panóplia de eventos jogáveis em tempo real (QTE’s). Na realidade, existem muitos desses momentos no jogo mas nunca estes foram tão jogáveis como em Tomb Raider. Mais do que esperar para carregar em botões, aqui sentimos que estamos verdadeiramente a jogar estas sequências.
Estaremos então perante o jogo perfeito? Longe disso. Estamos perante um jogo extremamente sólido e bem executado. O jogo não resiste no entanto em abusar no último terço da aventura da repetição de momentos de acção blockbuster que retiram algum realismo à estória e, infelizmente, o elenco de personagens é fraco, principalmente os vilões, o que não deixa a narrativa solta para a maior profundidade que merecia.
A componente multijogador de Tomb Raider vem introduzir maior longevidade no jogo. Bem executada e muito similar ao multijogador de Uncharted é uma experiência mais divertida e menos competitiva que nos FPS. A introdução de algumas variações deliciosas ao género de captura de bandeira, que envolvem uma equipa a colocar sinais de socorro enquanto a outra rouba as pilhas, ou a tentar transportar dezenas de caixas de primeiros socorros enquanto a outra equipa tenta decidir em quem se concentrar primeiro (pois é impossível ir a todas) introduzem variações curiosas a este modo de jogo. A isto junta-se a possibilidade de activar várias armadilhas no terreno onde os outros jogadores se podem queimar, electrocutar, empalar entre outros tratamentos de estética radical interessantes, e eventos massivos nos cenários como tempestades de areia ou a destruição de várias estruturas durante a ronda. O multijogador está carregado de gente e os combates são quase imediatos na formação de equipas.
A longevidade de Tomb Raider está porém também presente nos muitos colecionáveis e isto é algo que aconselhamos a desbloquearem na totalidade. Fazê-lo implica visitar toda a ilha no final do jogo, já sem inimigos. Sem ser um mundo verdadeiramente aberto, cada área é suficientemente ampla para permitir exploração. Atravessar calmamente a ilha depois de completar o jogo é uma viagem merecida e deslumbrante que jamais vão esquecer.
O melhor: A afinação perfeita das mecânicas; A jogabilidade dos eventos em tempo real; O deslumbre visual; A variedade e originalidade de cenários de jogo; O sistema de cobertura para quem gosta de uma experiência mais fluida; Os comentários e conversas dos NPC inimigos.
O pior: A falta de inovação em sistemas que parecem saídos de outros jogos do género; A câmara no combate corpo a corpo; Personagens secundários e vilões pouco fortes; Não resiste a abusar de momentos blockbuster; O abandonar da importância da caça.
Tomb Raider, longe de ser o jogo perfeito, é um dos jogos mais bem executados e equilibrados de sempre, afirmando-se não só como o melhor momento da série mas como o início de um futuro próspero. Falta-lhe inovação e falta-lhe deixar a estória assumir a maior profundidade que merecia mas, com um combate viciante, mecânicas de jogo afinadas na perfeição e os cenários mais deslumbrantes desta geração de consolas, Tomb Raider proporciona alguns dos melhores momentos de acção jogável dos últimos tempos. O facto de o jogo evoluir ao longo da campanha acompanhado o crescimento e surgimento da heroína é a melhor conquista da Crystal Dynamics. Esta série, no futuro, arrisca-se a ser perfeita. Lara não está de volta. Esta é outra Lara. Uma Lara muito melhor.
(versão analisada: Xbox 360. Também disponível em PlayStation 3 e PC)
Comments (1)
[…] intuito escrever uma análise de Tomb Raider, porque já o fizemos aqui no Rubber Chicken e podem ler aqui. O intuito é entender o que Tomb Raider: Definitive Edition trouxe de novo para a nova geração […]