E mais além. Muito mais além.
Lacrimosa dies illa
Qua resurget ex favilla
Judicandus homo reus.
Cheio de lágrimas será o dia
no qual das cinzas renascerá
o homem culpado para ser julgado.
Lacrimosa é uma das passagens mais famosas do texto em latim Dies Irae que se tornou conhecido por fazer parte do conteúdo de marchas fúnebres religiosas, também conhecidas como Requiems. O Dies Irae é o momento que descreve o dia do julgamento final em que os puros serão salvos e os pecadores queimados nas eternas chamas.
Lacrimosa é no entanto muito mais conhecida como uma das mais maravilhosas, porém tristes, passagens do Requiem em D menor de Mozart. É essa música que arranca quando entramos numa sala em homenagem à falecida Lady Comstock em Bioshock Infinite. Uma estátua de uma mulher de pé numa carruagem individual, puxada por um cavalo, segurando um bebé no ar. A impressionante luz volumétrica invade o espaço e todo o conjunto invade as nossas emoções. Isto é o mais frequente no novo jogo da Irrational Games: tirarem-nos o tapete emocional dos pés, frequentemente.
A fasquia para Ken Levine, o director criativo do jogo, estava muito alta. Levine ficou conhecido por revitalizar o género do shooter levando-o mais longe com o Bioshock original. Ainda hoje, muito se discute se o melhor FPS de sempre é Half-Life 2 ou Bioshock, com argumentos ferozes de ambos os lados. Para aqueles que alinham pelo lado de Bioshock é a cidade de Rapture debaixo de água e a sua sociedade degradantemente perdida que elevam o patamar com a sua história de objectivismo e liberdades individuais que descambam no egoísmo individual, luta pelo poder e queda.
A história de Bioshock Infinite também é uma história de poder e de ruptura. Quando começamos a nossa aventura, numa piscadela de olho ao primeiro Bioshock, chegamos de barco a remos a uma pequena ilha com um farol no qual devemos entrar. Na porta uma nota contém a inscrição “traz-nos a rapariga e apaga a tua dívida” e é isso que Booker DeWitt, o nosso personagem fará. Senta-se na cadeira no interior e é transportado pelos céus até à cidade de Columbia, apenas um dos muitos momentos épicos que a aventura nos prepara.
Os nossos primeiros passos pelos interiores das capelas e depois pelos exteriores de Columbia mostram-nos uma das mais deslumbrantes e épicas criações digitais da história dos videojogos. Columbia é uma cidade fundada por Zachary Comstock, um dos muitos antagonistas com os quais nos vamos cruzar, que ao sentir-se traído e com a sua visão ignorada pelos Estados Unidos, à semelhança de Andy Ryan, decide levar no ano de 1893 toda a sua cidade para os céus através de uma tecnologia de física quântica. O resultado é uma cidade inteira que flutua acima das nuvens, onde os prédios parecem barcos na calma da maré, e na qual a cada passo nos apetece parar, olhar em redor e desfrutar. Mais tarde, nas sequências de combate, havemos de esperar frequentemente que a luta se dissipe para que depois possamos apreciar calmamente o lugar onde derramámos tanto sangue.
O sangue é obviamente derramado, ou não fosse este um shooter na primeira pessoa. Cedo se esvai a perfeição de uma sociedade burguesa pedante apostada em conduzir uma vida de correção moral e valores religiosos, para tudo descambar numa luta na qual nos vemos também envolvidos. Era inevitável, pois esta é também uma sociedade de racismo, onde os negros, os irlandeses e outros estrangeiros estão abaixo dos animais, escravizados ao trabalho sem direitos nem liberdades. Esta é uma sociedade envolvida na religiosidade do seu profeta e dos seus rituais e mensagens constantes, espalhadas nos enormes cartazes, nas homéricas estátuas e nas mensagens sagradas dos altifalantes. Era óbvio que isto ia descambar em shotguns e carabinas. O que não era nada óbvio era que tudo fosse feito na companhia da maravilhosa Elizabeth que queremos resgatar, uma das causas pelas quais não somos bem-vindos a Columbia
O nosso primeiro encontro com Elizabeth, a “salvadora” de Columbia confinada contra vontade na sua torre, é preparado ao pormenor numa equilibrada construção de antecipação. Antecipação é outra das preocupações em Infinite e quando uma mudança se aproxima existem pormenores no cenário que nos vão dando pistas para o subconsciente, nem que isso signifique que o vento sopra um pouco mais forte naquele momento. A tensão na subida à torre é a necessária para o primeiro contacto com uma das mais encantadoras personagens de sempre e que nos vai acompanhar, literalmente, ao longo do resto da aventura.
A inteligência artificial de Elizabeth é uma enorme conquista. Por várias vezes tentei apanhá-la em falso: parei a observá-la à espera do momento em que denunciasse o seu ADN feito de linhas de código; tentei colar-me de frente a ela ou enganá-la pelos flancos, mas a tudo resistiu. Observa o cenário com curiosidade, afasta-se e aproxima-se de nós no momento certo, encosta-se à parede quando não há nada para fazer, ou comenta e faz-nos perguntas na sua voz doce. E quando menos esperamos, chega o primeiro momento em que estamos encurralados por um sniper e ela nos grita “apanha” atirando-nos uma sniper rifle para as mãos, tão necessária naquele momento.
Elizabeth não é apenas uma companhia. Elizabeth faz parte das mecânicas de jogo. Procura elementos no cenário que possam ter passado despercebidos, abre cofres e portas, atira-nos munições, saúde ou sais (para os vigors) no calor da batalha naqueles instantes em que mais falta nos fazem. Mas mais importante, Elizabeth sabe abrir portais para realidades alternativas (preparem-se para a maravilhosa surpresa quando o fizer pela primeira vez). Bocados dessas realidades alternativas, fragmentos, estão espalhados nos cenários onde acontecem os combates, visíveis como ténues aparições. Caixas e munições, torres de combate, paredes para cobertura, entre outros, estão apenas à espera de um pedido nosso para que Elizabeth as torne realidades acessíveis. Como se não bastasse, Elizabeth é ainda uma das ferramentas emocionais mais poderosas no contar desta estória, não só pela sua importância na narrativa como pela sua postura e personalidade ao longo da mesma.
O combate resulta da utilização e afinação de tudo o que era melhor nos primeiros Bioshock e da possibilidade de sermos livres para escolher a nossa estratégia de jogo. Ao contrário de uma progressão demasiado linear ao que os shooters nos habituaram, em que inimigos mais fortes correspondem a armas mais fortes, aqui podemos perfeitamente atravessar a aventura com uma espingarda e uma shotgun. Claro que existem muito mais armas, das mais explosivas às mais furtivas, e todas sem excepção afinadas a um ponto que torna perfeita a sua utilização. No entanto, se quisermos afeiçoar-nos a quaisquer duas e gastar o nosso dinheiro a melhorá-las, podemos terminar a campanha com qualquer configuração.
Temos que admitir, no entanto, que os poderes especiais ajudam muito e, sinceramente, por mais gozo e evolução perfeita que seja disparar qualquer das armas do jogo nada ultrapassa o uso dos vigors, as aptidões especiais lançados com a mão esquerda. Desta vez não os injectamos, bebemos, e os efeitos secundários destas bebidas energéticas com esteróides de outros universos não são aconselhados a cardíacos e muito menos aos nossos inimigos.
Os inimigos são variados e, palmas, incluem mulheres nas suas fileiras para acabar com o raio do politicamente correcto. Existem para todos os gostos, dos que alimentam a nossa vontade de cravejar de balas os mais fracos aos que nos causam o pânico e vontade de fugir. O melhor é mesmo a variedade e nunca sentirmos que estamos a receber hordas estereotipadas por zonas. Aliados anteriores podem tornar-se inimigos mais tarde, há humanos, máquinas, aparições sobrenaturais e os dementes que não podiam deixar de estar presentes. E claro, existem aqueles que nos causam calafrios ou não fosse este um Bioshock. Dos Lincolns e George Washingtons motorizados, aos Handyman ou ao terrível(?) SongBird, existem antagonistas desenhados para nos causarem emoções bem diferentes que podem ir do gozo, à raiva, ao pânico ou à tristeza. O único defeito que podemos apontar aos inimigos é que por vezes podem perder a noção de onde nos encontramos e ficam lá de longe ou atrás de um canto a mandar piropos, mas isso não é suficiente para manchar a experiência.
Grande parte das batalhas são momentos épicos, frequentemente em grandes espaços abertos e onde a utilização dos nossos poderes eleva o combate a sequências deslumbrantes. Estes poderes incluem atirar bandos de corvos aos nossos inimigos, agarrá-los e puxá-los com um turbilhão de água, absorver as suas munições com um escudo de energia, levitá-los a todos no ar, ou até possuir os inimigos mecânicos e passá-los para o nosso lado. Mas o melhor é que ao longo da aventura vamos fazendo upgrades a estes poderes e não só os evoluímos como podemos combiná-los. Desde o momento em que passamos a levitar 5 inimigos do chão e depois os electrocutamos em cadeia, ao momento em que os inimigos mortos por corvos se tornam armadilhas geradoras de mais corvos para os novos que as atravessam, a utilização de poderes em Bioshock Infinite leva o combate no género dos shooters bem mais longe, enquanto um corvo bica um inimigo e nós o enchemos de chumbo.
Existem obviamente traços de progressão RPG ao longo da aventura, no que toca a upgrades das armas, poderes especiais e peças de roupa (gears) que nos dão mais poderes e atributos, mas está afinado a um ponto em que não podemos simplesmente acumular e desbloquear tudo mas sim em que temos que fazer as nossas escolhas, como já é habitual na série. Essas escolhas funcionam, sejam quais forem, e permitem que tipos diferentes de jogadoras e jogadores possam abordar o jogo da forma que preferem, enquanto também premeia a repetição da aventura entre 15 a 18 horas com estratégias diferentes.
Uma das novidades no campo de batalha são as ziplines, um sistema de carris ao qual nos podemos agarrar com um gancho especial e atravessar o espaço como se de um monocarril invertido se tratasse. Inicialmente extremamente confusas, ao longo da campanha começamos a aprender a usá-las, a travar e acelerar, a mudar entre elas ou a atacar os inimigos no céu ou no chão a partir das mesmos. Quando dominamos o transporte neste sistema é das mecânicas mais bem conseguidas de Infinite e uma que nos dá um gozo tremendo. Quantas vezes, depois de limpo um campo de batalha, não vamos passear um pouco mais de carril para ver as vistas e apanhar o que pelo cenário estiver espalhado, dos voxophones com gravações, ao dinheiro e munições. Num mundo dominado por Call of Duty com aborrecidas sequências on-rails, não deixa de ser delicioso que o único “on-rails” de Infinite seja este viciante e jogável sistema de transporte.
Todos estes inimigos conduzem a antagonistas finais, um excelente leque de personagens que conta uma das mais extraordinárias narrativas de que há memória nos videojogos. Cornelius Slate, Daisy Fitzroy, Jeremiah Fink ou os inesquecíveis irmãos Lutece são contributos perfeitos a uma viagem emocional que torna Bioshock Infinite uma conquista no reino da capacidade dos jogos mexerem connosco. Curiosamente, não é uma aventura gráfica que faz isto, não é um jogo independente, não é um projecto artístico underground, mas sim um shooter AAA que é o género mais culpado pela formatação da indústria.
Levine e a Irrational levaram tudo muito mais longe com esta estória, estas personagens e esta Columbia. Um conjunto de cenários inesquecíveis onde tudo está trabalhado e modelado ao pormenor e sem repetição. É certo que fiz a análise no modo Ultra do meu portátil, mas não é a volumetria das luzes ou a qualidade das texturas apenas que consegue deslumbrar. É a personalidade de todos os cenários que deixa em nós a sua marca. De Shankytown, à praia, às capelas, às vending machines, à feira, ao hospício, tudo, mas tudo são locais memoráveis que não se esquecem. Podem ver aqui do que estamos a falar.
Grande culpa das emoções fortes que o jogo nos transmite provém obviamente do som e da sua banda sonora e aqui vos deixo um conselho: quando jogarem Bioshock, de quando em vez, fechem os olhos e ouçam apenas. Ouçam a gota de água que pinga, as folhas das árvores ao vento, o rádio que toca, as vozes e os sinos que chegam lá de longe. Não precisam no entanto de fechar os olhos para apreciar a excelente banda sonora que vai da música clássica, à música do século passado e até a toques geniais como “Girls just wanna have fun” ou “God only knows”. Das músicas que se ouvem, às que se cantam e até àquelas que se tocam, a escolha é perfeita para cada momento.
Tudo isto se associa em 40 capítulos que podem mais tarde ser jogados em separado e que felizmente não incluem multijogador. Ken Levine criou uma experiência demasiado forte e memorável para ser destruída por miúdos de 12 anos a gritarem nos nossos headphones. Este jogo não é um jogo para ter o que os outros têm, este jogo serve para levar o género mais longe. Muito mais longe. É verdade que uma análise a um jogo não consegue nunca fugir a um ponto de vista mais pessoal por mais que tentemos distanciar-nos do nosso gosto pessoal. Mas quando um jogo me faz chorar pela primeira vez em 37 anos e se torna o meu novo preferido de todos os tempos é impossível não nos tornarmos um pouco facciosos. Levine e a sua equipa levaram-me a um mundo que me marcou, onde me deslumbrei e surpreendi. Onde senti raiva e vontade de vingança, onde me cruzei com personagens que importaram. Onde conheci Elizabeth. Onde chorei. No final vi todos os créditos passarem por respeito a toda a equipa. Quando acabaram só me apeteceu uma coisa: agradecer.
O melhor: Columbia; Elizabeth; A narrativa densa e emocional; As diferentes estratégias que o sistema de combate nos permite; A variedade e originalidade dos inimigos; As personagens interessantes e relevantes; Os momentos e surpresas que nos tiram o tapete dos pés; O momento em que pegamos na guitarra; O final; A ausência de multiplayer.
O pior: Ken Levine não lançar um jogo todos os anos?
Esperei mais de 30 anos pelo primeiro jogo que me fizesse chorar e nunca esperei que quando esse jogo chegasse fosse um shooter. Ken Levine e a Irrational Games conseguem em Bioshock Infinite criar um jogo perfeito não só levando o género mais longe mas tornando-o um dos momentos emocionais mais fortes que a indústria já presenciou. Curiosamente, num momento em que os shooters multimilionários aborrecem o panorama, Bioshock Infinite prova que o género mais vendido pode ser um dos mais surpreendentes e é por isso que também é tão importante. Dos maravilhosos cenários de Columbia, a Elizabeth, passando pelo sistema de combate ou as escolhas musicais tudo está trabalhado com um bom gosto, qualidade e originalidade únicos. Existem jogos que ficam na história e se tornam no cânone. Este é um deles.
(Versão analisada: PC. Também disponível para PlayStation 3 e Xbox 360. Analisado no modo gráfico “Ultra”, a 1600×900, num Toshiba Qosmio X770, Intel Core i7, 8 Gb Ram, Nvidia Geforce GTX 560M) .
Comments (7)
[…] obra-prima da Irrational Games que obteve a nota mais alta de sempre do Rubber Chicken (podem ler a análise aqui) está cheia de boas referências musicais que estão presentes ao longo de toda a campanha. Estas […]
Instalei o jogo ontem mas infelizmente nao tive tempo de o experimentar… mas depois de ler esta review ainda bem que nao tive… quando joguei o 1º bioshock foi como se tivesse levado uma estalada e acordado para a vida… lembro me ainda de todos os cantos que vasculhei em rapture levado pela curiosidade e lembro me ainda de que quanto mais explorasse, haveria sempre algo pra ver nem que fosse apenas pormenores no cenario… Apesar de estar me ansias para jogar este jogo uma frase nesta review ja pos um sorriso gigantesco na minha cara… “Tudo isto se associa em 40 capítulos que podem mais tarde ser jogados em separado e que felizmente não incluem multijogador” De todas as vezes que pedi nos jogos que mais esperava obrigado… muito obrigado por ter sido neste :D
Excelente Review btw :)
Acabei-o na quarta-feira e até então toda aquela história ainda não me saiu da cabeça. A ver se faço uma segunda playtrough e algo me diz que vai ser tão ou mais fascinante que a primeira. Juntar as peças do puzzle e tal, estilo Shutter Island, lol.
Tenho pena em dizê-lo porque eu próprio queria uma segunda rodada, mas jogar outra vez e escolher coisas diferentes não muda nada o jogo. A primeira escolha nem é uma escolha porque o resultado é sempre o mesmo. No entanto, o fim ficará para sempre na minha vida e se jogasse outra vez era mesmo para reviver esta magnífica experiência.Grande jogo.
A segunda playtrough não é para poder fazer escolhas diferentes, aliás, as escolhas que fazemos não são propriamente escolhas. Servem sim para ilustrar variáveis de algumas constantes no jogo. “As escolhas são uma ilusão”, lembras-te?
Este segunda incursão tem servido para testar possíveis falhas da história e está a ser um delícia descobrir que até agora não encontrei nenhuma. Por enquanto, execução perfeita!
Just bring us the girl and wipe away the debt :P
[…] suficiente para jogarem ou tornarem a jogar este título. Precisam de um empurram extra, leiam a análise do Rubber Chicken. O melhor FPS desde Half-Life […]