Quem meteu ácidos no meu videojogo?
É rara a ocasião em que sentimos que um videojogo está vivo e consciente das nossas acções, pois normalmente o jogo em si é apenas uma plataforma onde se desenrolam narrativas e/ou tiros e/ou porrada. Mas de vez em quando aparece um jogo que ao jogá-lo sentimo-nos observados e analisados, sentimos que o jogo foi programado para nos responder passo-a-passo.
Uma experiência quase universal da juventude airada são aqueles dias em que nos calha na rifa termos que ir buscar a bola de futebol que caiu dentro do quintal daquele vizinho particularmente velho e embirrante, quando na altura nem temos bem a certeza se ele é humano – pois para um criança é inconcebível alguém ter tamanha amargura para com a vida – mas não temos outro remédio se não saltar para o seu quintal e ir buscar o raio da bola. Quando estamos no quintal sentimo-nos perpetuamente observados, mesmo que tenhamos visto o vizinho a sair de casa há dois minutos. Há sempre uma comichão na parte de trás dos olhos que nos leva a pensar que algo está errado, e que é só uma questão de tempo até o vizinho saltar de trás de algum arbusto. Esta é a sensação que temos ao jogar Antichamber.
Antichamber é um jogo que consiste na aglomeração de puzzles impossíveis e irracionais, obrigando o jogador a sair das leis do mundo racional e a entrar nas leis próprias do jogo. Foi desenhado e desenvolvido por Alexander Bruce como um trabalho de paixão, tendo a banda sonora sido fornecida por Siddharthe Barnhoorn (não, não é o Buda).
Todo o ambiente do jogo é minimalista e todas as cores têm um significado próprio. Nada neste jogo está por acaso ou para enfeitar, tudo foi pensado, e se o jogador conseguir descodificar este código cromático é meio caminho andado para resolver o jogo. O jogo parece em grande parte ter sido desenvolvido por um designer gráfico, só o simples facto de todas as paredes serem brancas é genial, pois sempre que existe um objecto com o qual devemos interagir nós vamos instintivamente ter com ele, uma vez que parece-nos fora do sitio no meio de um enorme corredor incolor. Outro factor que contribui para esta teoria é a maneira como Alexander consegue fazer o jogador absorver informação subconscientemente que virá a ser útil no futuro.
Esta ambiência faz-nos sentir completamente perdidos num mundo mutável e imprevisível e o mundo de Antichamber é literalmente mutável. É frequente o jogador olhar para trás e aperceber-se que o corredor onde se encontra mudou radicalmente, ou mesmo repetir a mesma ação que não teve efeito anteriormente mas agora tem – sem razão aparente.
Existe algo de assombroso neste jogo, uma sensação estranha de que estamos a ser mais jogados do que a jogar. A sensação é a de estamos a jogar à apanhada num edifício industrial abandonado e de repente nos apercebermos que o edifício também está a jogar… e a ganhar! Por vezes o jogo parece uma volta naquelas casas assombradas das feiras populares, em que coisas gratuitas estão a acontecer só para o criador mostrar domínio sobre o jogador, mas mais frequentemente parece que existe uma pessoa do outro lado a controlar o edifício que está a desfrutar da nossa frustração. Um exemplo perfeito da segunda situação é quando entramos numa curva com mais de 360º e que aparenta não ter fim, passados alguns minutos de andar ás voltas e do jogador se sentir fisicamente tonto na vida real é que chegamos a uma saída completamente arbitrária deste loop.
Agora dêem-me espaço para especular um pouco, afinal de contas quando um jogo destes aparece não é essa a intenção do autor? Então vamos lá…
No subtítulo desta análise falo-vos de drogas alucinogénias, e isto não é sem sentido. Nos anos 50 a psicoterapia ajudada por alucinogénios tornou-se popular, o que levou à subsequente popularização do LSD nos anos 60 e esta introdução duma droga severamente alucinogénia na cultura pop afectou-a radicalmente. Esta cultura de um estado de mente elevado manifestou-se em praticamente todos os meios criativos, desde as longas e repetitivas músicas psicadélicas ao cinema experimental – contribuindo até, segundo consta o mito, para a grande popularização do filme “2001: A Space Odyssey” de Kubrick.
Antichamber parece-se mais com uma manifestação dessa cultura psicotrópica, o que seria histórico, pois é uma das primeiras nos videojogos e, provavelmente, a mais popular até à data. Propositadamente ou não, o que quero dizer é que reflete um estado de mente muito associado ao uso deste tipo de substâncias, no qual as regras do mundo real se diluem em regras absurdas que têm um sentido coerente entre si, acompanhado de um sentimento de paranoia e perseguição. Antichamber é uma trip.
O melhor: Puzzles maioritariamente bem desenhados, num mundo absurdo de assombrações minimalistas, como é que se pode recusar uma proposta destas? A ausência de narrativa leva o jogador a especular, tornando-se também num puzzle só por si.
O pior: O absurdismo do jogo inspira muita a tentativa e erro, subsequentemente alguns puzzles são resolvidos por acaso e o jogador nunca chega a perceber qual era de facto a lógica por trás do desafio. A ausência de narrativa leva o jogador a perder alguma motivação, pois não tem objectivo.
Antichamber é um jogo com uma duração razoável que desafia a nossa percepção da realidade, faz-nos sentir desconfortáveis, observados, tontos, desconfiados e paranoicos, e cada segundo do jogo é recompensante. Não há nada como intervalar desafios progressivamente mais alucinantes com puzzles de lógica para nos fazer sentir perdidos e confusos. O jogo manipula-nos com grande estilo e nós deixamo-nos ser manipulados pelo gozo que nos dá desafiar o jogo em si. Este título é como uma casa assombrada do futuro, branca e estéril mas com uma tonelada de espíritos de cientistas revoltados com sua a morte lá dentro, a tentar dificultar-nos a vida e a observar-nos a cada passo.
(Antichamber é um exclusivo PC)