Ou o Portugal de Passos Coelho
Por muito que a canadiana Klei Entertainment não o admita, eu defenderei que todo o conceito em torno de Don’t Starve é uma reflexão sócio-económica da situação geral de Portugal. A figura taciturna, sorumbática, que em breves segundos se dirige a nós sem querer avançar muito do que temos para fazer, ou sequer opinar, para depois desaparecer e permanecer incógnito (quase) todo o jogo, é notoriamente uma metáfora para quem nós sabemos (não vou avançar nomes por causa do processo que decorre agora contra Miguel Sousa Tavares).
Wilson, o nosso protagonista inicial, e qualquer outro personagem de Don’t Starve são figuras metafóricas para o português típico. Porque na prática do que é que trata Don’t Starve? Pois, sobrevivência. Somos abandonados no meio de nada, sem informação nenhuma e temos de subsistir, contra um meio que notoriamente nos quer mal. Quer-nos tanto mal que nos quer rapinar e depois devorar-nos. A outra prova que Don’t Starve é sobre o português típico é a necessidade de desenrascanço. No meio selvagem, sem tutoriais, ensinamentos, ou qualquer informação sobre o que fazer no jogo, o nosso personagem (chamemos-lhe Zé, e retiremos a imagem estereótipada do português típico de bigodaça farfalhuda e palito na boca) tem de conseguir desenrascar-se com o que apanha em mãos. Se com paus e pedras constrói uma tocha, acredito que num dos próximos patches o Zé tenha a possibilidade de criar marquises a partir de metal, meias brancas de raquete para aquecer no Inverno com pele dos animais mortos e com bagas fazer uma pinga boa para aquecer o bucho. E se na teoria o conceito geral do jogo – sobreviver – parece simples, passando por comer, manter-se iluminado durante a noite (das poucas informações que o Zé nos passa), e recolher materiais/construir utensílios, a prática acaba por ser bem mais ingrata.
Se Minecraft abriu as portas a este género de videojogos, o da sobrevivência pela sobrevivência, o primeiro contacto com Don’t Starve demonstra que os seus criadores perceberam o burburinho (e o sucesso) desse jogo, mas decidiram dar o seu próprio condão. E se durante largos meses foi dos videojogos com maior número de pré-reservas no Steam, este sucesso pré-estabelecido em muito se deve ao seu visual. O ambiente visual parece, e muito, saído dos cadernos de esboços de um qualquer filme de Tim Burton como se Don’t Starve tivesse ganho vida nas folhas rasuradas e dobradas das suas grandes produções. A primeira consciência que temos de ganhar é que vamos morrer muito, e de variadas formas. Vamos morrer de forma inesperada e vamos pensar porquê??? Vamos morrer e ver um mínimo de progresso de sobrevivência ser deitado para o lixo. Vamos morrer de formas que nos vão deixar a rir e de outras em que nos vai apetecer amaldiçoar os criadores do jogo com um mau-olhado romani. A morte é definitiva em Don’t Starve (salvo termos conseguido criar uma efígie, ou estarmos em Modo Aventura). E sempre que morremos e começamos de novo, o mundo é aleatoriamente gerado e temos de começar tudo de novo, no dia 1 da nossa sobrevivência, trazendo na nossa bagagem – de jogadores, não do personagem – o que aprendemos com os erros cometidos que conduziram à nossa morte.
A evolução do jogo é marcada por um círculo no canto superior direito que simultaneamente nos diz em que dia da nossa sobrevivência estamos, e que serve de relógio de marcação da passagem do tempo. E assim que vai anoitecendo temos de preparar poiso seguro e iluminado. Se cairmos nas trevas da noite sem qualquer iluminação, morremos instantaneamente. Sabe-se que criaturas da noite atacam-nos se estivermos em perfeita escuridão.
Para quem começou a jogar Don’t Starve ainda na versão beta, compreende o esforço que a equipa de desenvolvimento tem feito para o fazer crescer. Se de início o mundo era relativamente simples (mas mortífero) e as árvores de tecnologia disponíveis para a nossa tecnologia eram relativamente curtas, com o passar das semanas e os patches sucessivos (em que a comunidade deu um input gigantesco aos criadores, dando sugestões que foram sendo integradas no jogo) até à data de lançamento, demonstraram a quem foi jogando, o quanto este mundo sempre aleatoriamente gerado e feroz foi crescendo e ficando mais complexo. Actualmente existem estações do ano que influenciam os recursos disponíveis e os efeitos nefastos no nosso personagem, as árvores de tecnologia vão-se tornando mais complexas patch a patch, assim como novos personagens desbloqueáveis através da experiência ganha pelo número de dias sobrevividos.
Os indicadores dos nossos personagens são simples e esgotados quaisquer deles significa a morte certa: o coração, que significam os usuais pontos de vida, ou seja, o dano que podemos sofrer de criaturas e/ou outras fontes, o cérebro, que representa a sanidade, ou seja, a nossa sagacidade e sangue-frio perante um ambiente inóspito, e o estômago, que…bem..o título do jogo diz tudo.
Se o modo Sandbox é aquele em passamos grande parte do jogo, foi introduzido no último patch o Modo Aventura, o mais próximo de um modo de história que existe e que dá algum fundamento a tudo aquilo pelo qual estamos a passar. Para tal, dentro da nossa Sandbox temos de conseguir encontrar a porta de Maxwell que nos levará para o dito Modo de Aventura, que consiste em 6 mundos predefinidos. As duas particularidades deste modo é que se morrermos voltamos para o ponto exacto de Sandbox e podemos voltar a entrar para tentar de novo e sempre que passamos de um “nível” para o outro deste Modo só podemos levar 4(!!!) itens connosco, o que vai dificultando a nossa sobrevivência.
O melhor: O visual Tim Burton-esq; A criatividade do mundo como um todo; O sentimento de recompensa pela sobrevivência aos dias; As mil e uma formas como podemos morrer e a sagacidade de as evitar; A percepção do aumento da nossa própria experiência.
O pior: A falta de um objectivo no modo Sandbox pode afastar muitos jogadores; A frustração de morrer por tudo e por nada; A repetibilidade que um jogo deste género pode trazer.
Don’t Starve não é um jogo fácil. A total falta de indicações pode ser um motivo de desânimo de alguns jogadores. Mas a imersão neste mundo tão caricato, com pormenores que valem a pena serem explorados e dada a atenção devida, vão conseguir agradar hora após hora, tentativa-erro após tentativa-erro, morte ingrata e inglória após morte idiota e evitável. Com a constante adição de novos elementos ao jogo cada um de nós tem de observar o jogo de um outro prisma, reequacionar as suas decisões e a sua estratégia de sobrevivência. Um jogo que tem horas disponíveis proporcionalmente ao tempo que cada um quer entregar à sua própria experimentação. E que demonstra, em rebatimento com as opiniões dos críticos de há meses atrás, que é possível seguir as pisadas de Minecraft sem ser um mero clone, mas sim, criar uma identidade que permite solidificar um género relativamente recente e torná-lo um jogo obrigatório dentro desse mesmo género.
Sobre as análises e sistema de classificação
(versão analisada: PC. Também disponível em Mac)
Comments (4)
Muito bem conseguida essa comparação entre o conceito do jogo e a situação actual, ou desde sempre, em que se encontra o nosso país.
Em relação ao jogo, já esteve na minha wishlist no Steam e acabou por sair (não sei bem porquê), mas penso que vai saltar para lá novamente. Gostei de ler ;)
Nuno,
O próprio título aponta-nos logo esse caminho – o trilhado pelos portugueses – o que tens de sobreviver, ao invés de viver. Espero agora não ter a Procuradoria-Geral da República atrás de nós. ;)
Nah, estão tranquilos. Isto é desde, que não usem certas e determinadas palavras que sirvam para ilustrar “um qualquer circo” que anda por cá há uns bons anos :P
Sob risco de termos a Família Cardinalli à perna. ;)