Baby girl.

A propósito da criação do seu mais recente título, a Naughty Dog indicou o desejo em construir uma história que girasse em torno da relação entre duas personagens. Uma América pós-apocalíptica presta-se perfeitamente à importância da ligação entre duas pessoas, dois sobreviventes. Mas The Last of Us acaba por ser, acima de tudo, a história de Joel, a sua jornada por um passado distante, um presente cruel e um futuro incerto. É no arco de personagem de Joel que The Last of Us se destaca dos seu pares em termos narrativos e nos marca, depois de pousarmos o comando.

A sua história não está de todo desligada da sua companheira de viajem, e tem em Ellie um ponto fulcral de desenvolvimento. No entanto a personagem da miúda irreverente e impassível acaba por não ser tão forte como a do vivido Joel. E ainda assim, a Naughty Dog consegue na recta final do jogo oferecer-nos razões para finalmente nos aproximarmos emocionalmente dela. Seja propositado ou não, esta habituação e crescimento de nossa parte acaba por ressoar o das personagens, e no fim da linha, resultar numa experiência que é emocionalmente satisfatória.

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The Last of Us é um jogo imperfeito, como o mundo quebrado em que se desenrola a acção. Mas por cada esquina menos conseguida, cada secção de jogo menos inspirada ou repetitiva, a Naughty Dog joga sobre nós um momento revelador, uma subtileza narrativa ou uma mecânica cativante. As inconsistências do jogo acabam por resultar num todo, perfeito na sua imperfeição.

 

Made in Cães Marotos.

O jogo apresenta-nos trunfos essencialmente na subtilezas e qualidade de construção, muitas delas características do estúdio, mas que têm neste novo título uma expressão mais madura. Construído claramente sobre as fundações Uncharted, desataca-se progressivamente à medida que nos ambientamos ao seu mundo de jogabilidade mais pausada. The Last of Us pode ser um survival horror com o cunho da Naughty Dog, pode ser ainda um jogo de acção furtiva, ou uma aventura cinemática mais contemplativa. Existem sequências de acção que piscam o olho ao seu primo mais espalhafatoso, com Quick Time Events, e muitas das mecânicas mais básicas reflectem os anos de trabalho e experiência que o estúdio teve com o seu último grande sucesso. Mas o resultado final é, em termos de experiência de jogo, bastante diferente.

É claro o tom mais maduro que a aventura apresenta, logo a partir dos já badalados minutos iniciais. No entanto, e após essa sequência de prólogo, o jogo quebra em termos de intensidade, que vai sendo construída gradualmente à medida que as horas vão avançando, e o título se vai estabelecendo como um exemplo de como criar uma narrativa madura, enraizada numa realidade próxima da nossa e especialmente, na história de Joel e da sua relação com Ellie. O mundo de The Last of Us é decorado por um dos fins-de-mundo mais belos de que há memória, e no departamento técnico a velhinha PS3 é espremida até ao último pingo. Aqui notam-se algumas das inconsistência de que se falou anteriormente, com uns soluços de polimento aqui e ali, coisa pouco comum nos títulos do estúdio. Duas óbvias explicações surgem imediatamente: a idade da consola, e a necessidade de lançar o título em tempo útil, que é como quem diz, antes do lançamento da nova geração Playstation. Ainda assim, The Last of Us é dos mais belos títulos que podemos jogar na consola Sony, e um exemplo da mestria da Naughty Dog em termos técnicos.

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Mais do que a beleza cruel dos ambientes, é através deles que muitas histórias são contadas, e aqui a exploração e dedicação do jogador em procurar os recantos do mundo é recompensada com muito mais do que simples cromos para encadernar num álbum de coleccionáveis. Estes devem ser lidos cuidadosamente e em conjunção com os ambientes contam histórias, acerca da pandemia, após infecção, de famílias destroçadas e da vivência dos sobreviventes nos diversos locais por onde passamos. Estes elementos em conjunção com as personagens com quem convivemos ao longo da jornada, os inimigos e as interacções entre Joel e Ellie, trazem ao mundo de The Last of Us autenticidade e envolvência. O sentimento de investimento sobre o jogo que sentimos é ainda amplamente potenciado pela sublime banda sonora original de Gustavo Santaolalla, que eleva a maturidade artística do jogo muitos pontos acima da fasquia.

Em termos mecânicos, The Last of Us tem galões especialmente sobre a acção furtiva, o sistema de inventário e a dinâmica de combate em espaços fechados. A não existência de mini-mapa implica que sejamos obrigados a usar os olhos e ouvidos para detectar os inimigos. Ouvir surge aqui como forma também ela visual de detecção e movimentação furtiva. Muita da tensão e antecipação do combate advém destes momentos, em que tentamos passar despercebidos pelos inimigos. O combate corpo-a-corpo é um trunfo, já anunciado em Uncharted, mas que aqui toma uma dimensão grandiosa. A forma como atacamos ou somos atacados em espaços fechados é extremamente visceral, e com uma qualidade cinematográfica sem igual. Existe uma violência bastante cruel em The Last of Us, e ser morto por um Infected é uma experiência que tão cedo não desejamos que aconteça novamente, tal é a intensidade do momento.

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Existe um tom de crueldade que premeia toda a experiência. É um jogo violento, por isso fica o alerta para quem esperaria maior suavidade no título por se tratar de uma grande aposta da Sony. Existem momentos de fazer ranger os dentes, e de violência bastante gráfica, pouco comum num jogo que se quer presente no maior número de casas possível. Um bom presságio para a livre expressão de ideias e conteúdos nos videojogos.

 

Um mundo imperfeito.

The Last of Us perde-se na repetição de algumas ideias, concretamente na resolução de puzzles, e quando incide mais intensamente sobre o combate com armas de fogo. A gestão de recursos existe, de forma simples e com suporte sobre o sistema de crafting de itens, mas a quantidade de armas de fogo disponíveis acaba muitas vezes por convidar ao tiroteio desenfreado. Felizmente, o sistema de controlo das armas é bastante tosco e limitado (pelo menos até à realização de upgrades ao personagem) levando a que, a curta distância, exista uma sensação de caos extremamente bem vinda, especialmente contra os Infected. Esses momentos de combate são únicos e conseguem simular o que imaginamos ser um ataque de um monstro sanguinário sobre nós, muitos deles matando-nos instantaneamente se nos apanharem. Monstros que se destacam ainda do zombie comum de tal forma, que na maior parte das vezes nem sequer pensamos estar num jogo de zombies. São pessoas, monstros, como outros que encontramos pela jornada, uns mais humanos, outros nem por isso.

Ainda sobre o sistema de inventário, este contribui em muito para manter a tensão, já que não existe pausa sobre o jogo, quer a acede-lo, quer a fazer crafting. O personagem retira a mochila das costas e manuseamos os itens em tempo real, com a utilização do próprio corpo para armazenar itens e assim aceder a eles de forma mais directa e rápida. Num jogo de aventura na terceira pessoa, talvez seja o melhor sistema que já presenciamos, em conjunção com as subtileza na dinâmica de combate que o crafting de itens nos trás.

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Existe uma crueza e subtileza que acompanham o jogo, por vezes quebradas por alguma preguiça em termos de momentos de jogabilidade. A repetição dos puzzles, ou a presença de algumas secções de jogo já muito rodadas (como a secção de sniping) fazem-nos desligar por breves momentos da fluidez narrativa que o jogo apresenta na sua grande maioria. O facto de Ellie não ser uma personagem tão bem construída como Joel, leva também a que possamos ter, inicialmente, alguma dificuldade em nos deixarmos levar pelas suas motivações e personalidade. Mas o jogo apresenta-se com bastantes momentos inspirados, de intensidade regulada, ou por baixo, ou com explosões de tensão e ansiedade sobre o jogador. É uma experiência de ritmo afinado, e que consegue manter o nosso interesse ao longo de toda a história. E se acham que a sequência inicial, em toda a sua glória cinemática, é de qualidade sem igual, pois o final do jogo deixa bem presente, que o caminho que a Naughty Dog escolheu para a sua nova franquia, é o da força narrativa e do humanismo dos seus personagens. E da maturidade artística e narrativa das suas obras digitais.

O melhor: o arco de personagem de Joel; a forma como os ambientes contam historias; a maturidade do jogo em termos narrativos e de temáticas que aborda; o sistema de inventário; o combate corpo-a-corpo e em espaços fechados; a banda sonora.

O pior: repetição de ideias nos puzzles e em algumas secções do jogo; os momentos de tiroteio mais corriqueiros e desinspirados; a elevada quantidade de armas de fogo pode minar o combate furtivo; Ellie menos conseguida em termos de personagem comparativamente a Joel; alguns soluços de polimento; alguns momentos narrativos mais cliché.

The Last of Us está um patamar acima dos anteriores títulos da Naughty Dog, concretamente ao nível do desenvolvimento de uma personagem. Esta é essencialmente a jornada de Joel e do desenvolvimento da sua relação com Ellie. Um jogo de elevada maturidade tanto artística como narrativa, sem medo confrontar os jogadores com momentos de tensão e crueldade de arrepiar os pelos da nuca. As subtilezas no ritmo que o jogo apresenta, em conjunto com a a excelente banda sonora, atestam à capacidade do estúdio em nos oferecer experiências narrativas envolventes e cinemáticas, sem nunca retirar ao jogador o papel activo que se exige num videojogo. É um título com algumas inconsistências, tanto a nível técnico, como na sua jogabilidade ou mesmo na narrativa, mas que no fim da linha, se supera a si mesmo oferecendo um dos melhores exclusivos Sony de sempre, e provavelmente o último antes do arranque da nova geração. Se a Playstation fosse um cisne, este seria o seu derradeiro canto. Um canto triste e belo, numa América em que os sonhos acabaram, mas onde um homem e uma adolescente encontram razões para lutar por mais um dia. Juntos.

 

The Last of Us é um exclusivo PlayStation.

A presente análise diz respeito apenas à secção Singleplayer do jogo.