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“(…) There’s a lighthouse in the middle of Prussia
A white house in a red square
I’m living in films for the sake of Russia (…)”Andrew Eldricht
A frugalidade cruel da guerra é um tema recorrente em todos os meios de expressão humana. Desde a literatura, ao cinema, passando pelos videojogos, há algo de primordial que nos seduz na faceta mais negra da nossa existência, e que vai sendo repetido, sobre os escombros dos erros passados, demonstrando a circularidade da nossa estupidez e crueldade. De entre todas as guerras, é possível que a II Grande Guerra, talvez pela proximidade temporal, ou pelo volume documental, seja a mais inspiradora para a indústria do entretenimento.
O período em que a narrativa de Company of Heroes 2 se desenrola traz-nos à memória um dos mais sangrentos da nossa História recente: a Operação Barbarossa. Num acesso de teimosia do Führer Adolf Hitler, quebrando o pacto de não-agressão Germano-Soviético, a wermacht, a máquina de guerra alemã, desenvolveu a maior investida militar de que há registo, adentrando o território soviético sem qualquer oposição inicial.
Mas se a narrativa do magnífico CoH 1 nos deixa o doce sabor da valentia, bravura e heroísmo na boca: a ideia de encarnarmos o exército “libertador” como o foi o dos EUA na II Guerra Mundial, e a sua fulcralidade na eliminação da ameaça nazi na Europa, em CoH 2 encabeçamos o menor de dois males opostos: o Exército Vermelho da União das Repúblicas Soviéticas Unidas. Discussões ideológicas à parte, a realidade é que do ponto de vista de enquadramento, a Relic, criadora do jogo, posiciona-nos enquanto parte activa de uma guerra travada por duas forças imperialistas beligerantes, genocidas e que mantiveram um braço-de-ferro mascarado de armísticio, e que dividiram, pela força militar, grande parte do território da Eurásia. Perante a eminência do confronto, num espírito quase Highlander de “there can be only one”, Hitler sabia que a subsistência a longo prazo do Reich dependeria da obliteração da União Soviética. E ao prosseguir com esta decisão assinou o início do fim do III Reich.
Apesar da história centrar-se sobre um tenente do Exército Vermelho, cujo intenção era contar a verdade ao mundo sobre a veemente e impiedosa postura Soviética durante a Guerra, o que acabamos por sentir, pelo ambiente que nos circunda, é que não existe verdadeiramente glória na guerra: todos os espíritos romanceados de vontades aguerridas que se superam durante a guerra, usualmente explorados pelos blockbusters de Hollywood ou grande parte dos FPSs existentes no mercado, são facilmente substituídos pela realidade suja e inglória da Guerra tal como ela é apresentada em CoH 2: o medo, o pavor, o desespero, são forças motrizes de soldados que não compreendem, nem concordam com as batalhas por si travadas.
Company of Heroes 2 não é o típico RTS, assim como não o era o seu antecessor. É antes, aquilo que poderia definir como um “RTS à Relic”, ou seja, o modelo criado com o primeiro Warhammer 40k: Dawn of War: a captação de recursos passa pelo controlo de pontos-chave, ao invés da “escavação” dos RTS típicos, assim como a gestão de construção passa quase exclusivamente pelo recrutamento de unidades e construção de veículos, e pouco ou nada de edifícios militares. Company of Heroes 2 exige mais dos jogadores do que o mero amontoar de unidades. As pequenas subtilezas e nuances de estratégia que CoH 2 nos traz são de uma atenção ao pormenor como nunca antes visto. O cenário de guerra, e o campo de batalha, tal como na realidade militar, são pontos a ter em conta na delineação estratégica das nossas tropas. Desde os edifícios que podem ser destruídos, permitindo uma melhor visão das nossas unidades – que não possuem, ao contrário de outros jogos, um campo de visão sobrenatural, mas sim, uma perspectiva e amplitude visual influenciada por obstáculos ou pelos limites da visão periférica – e a melhor locomoção dos nossos tanques, até à influência do clima, em que o Inverno rigoroso e destruidor da tundra soviética tem um papel fundamental no desenrolar do próprio jogo. Sendo historicamente o Inverno soviete o factor mais arrasador para ambas as forças beligerantes neste período, por um lado, subestimada pela wermacht nazi, e por outra, destruidora às forças Soviéticas que estando “em casa”, tiveram de combater num dos climas mais agressivos do nosso planeta. E esta agressividade invernal está perfeitamente explorada como mecânica de jogo: desde a vulnerabilidade da infantaria, que sem abrigo ou pontos de aquecimento lentamente perecerão por hipotermia, até à lentidão das mesmas a combater no meio da neve, passando pelas frágeis placas de gelo que podem ser destruídas como forma ambiental de derrotar a grande força dos Panzers nazis. E isto tudo é claro, merece, sob o esforço de um aprimoramento gráfico gigantesco da parte da Relic, de ser jogado com a melhor qualidade gráfica possível, e dar atenção a toda a qualidade. Partículas, fluidez e verosimilhança de animações e movimentação de unidades, o comportamento dos veículos em diversos terrenos e díspares acções, são parte de um esforço que imputa a CoH 2 uma qualidade visual muita acima do típico RTS.
CoH 2 não se centra apenas na nossa qualidade de gestão e produção de recursos, e incremento militar com recrutamentos de infantaria sucessivos. É possível, com uma estratégia hiper-aprimorada, passar as 14 missões do modo de história com as unidades que nos são gratuitamente atribuídas no início do cenário e com uma boa gestão dos recrutas: elementos gratuitos que não são mais do que carne para canhão no campo de batalha. Esta mecânica, a da gestão dos recrutas e dos batalhões penais (reclusos e condenados à morte a quem eram atribuídas verdadeiras missões suicidas) espelha bem a visão (e estratégia) Soviética de defesa da blitzkrieg alemã: o Exército Vermelho, para além de estar no seu próprio território, contava com a força dos números, em especial de soldados provenientes das recrutas obrigatórias que pouco ou nenhum treinamento militar dispunham, mas que serviam, como ovelhas de sacrifício perante as bem-treinadas e altamente eficazes forças militares alemãs. Esta falta de treinamento é notória em jogo: a eficácia de um recruta é inferior a qualquer unidade treinada por nós recrutada, assim como seu valor aproxima-se do zero, tal como lembrado pelo narrador. O valor investido pelo Estado Soviete no treinamento dos recrutas é nulo, e é por isso que são constantemente apelidados de “descartáveis”.
A campanha single player nada tem de fácil. É frequente que uma má decisão de posicionamento de dada unidade possa significar um recuo na nossa linha ofensiva, ou no pior dos casos, o falhanço da própria missão. A curva de aprendizagem das habilidades, forças e fraquezas das unidades é grande, e apesar da grande qualidade, diversidade e envolvência do modo de história, esta acaba por funcionar como porta de entrada obrigatória a novos jogadores da série. Mas é no novo modo Theatre of War, uma série de cenários pré-definidos para serem jogados preferencialmente por jogadores mais experientes, para serem jogados a solo ou em cooperativo, com uma dificuldade extrema, mas a explorar pontos de vista alemães e soviéticos. Volto a reforçar a ideia da dificuldade deste modo: eu e um amigo tivemos de baixar a dificuldade para o mais fácil e mesmo assim penamos ante a eficácia cirúrgica da AI nestes cenários de Theatre of War.
Apesar da bancarrota anunciada pela THQ e a consequente aquisição do seu espólio pela Sega, o que durante algum tempo colocou um grande ponto de interrogação sobre o lançamento de CoH 2, a gigante nipónica manteve a intenção de lançar a sequela que tanta gente esperava. E a vontade de apostar no multiplayer enquanto grande força deste lançamento reflecte-se por exemplo, na inclusão de um interface de streamings, com a Twitch.tv.
O melhor: a complexidade estratégica posicional, o ambiente mais realista e desesperado da guerra, a micro-gestão de unidades e a definição e a pressão que algumas decisões no campo de batalha podem acarretar.
O pior: o facto de ser um jogo pouco “amigável” ao primeiro impacto, a curva de experiência ser demasiado acentuada, em especial em Theatre of War.
Company of Heroes 2 não só soube estar à altura das expectativas e ser um bom legado ao aclamado Company of Heroes. Apesar de não constituir grandes inovações para além do cenário/factores ambientais, a carga mais pesada, mais séria, in extremis, mais realista em relação a um cenário de guerra, confere-lhe uma dimensão e negrume que deixa uma mescla de sentimentos nos jogadores: por um lado a satisfação de jogar um jogo afinado, complexo, desafiante, e por outro, ter sobre os ombros o peso da sobrevivência de um império opressor, e que demonstra, mesmo in-game, que é possível criar batalhões de homens que sabem que a morte é certa: investir contra a wermacht é suicídio, ou voltar para trás, sob o jugo da Ordem 227 de Stalin, significaria ser alvejado pelo oficial mais próximo. Criar esta envolvência individualizada num RTS, é sem sombra de dúvida a tarefa mais difícil. Mas brilhantemente conseguida.
Sobre as análises e sistema de classificação
Company of Heroes 2 é um jogo para PC