PEGI 35
Gone Home é um jogo para maiores de 35 anos. Não pensem contudo que vão aqui encontrar violência, sexo ou sangue. Aquilo que vão encontrar é vida, a vida real, e todas e todos aqueles que nasceram a partir de 1974 vão ser levados a uma fantástica viagem pelas vossas memórias mais esquecidas.
Esta primeira criação da Fullbright Company vem acompanhar uma série de jogos na primeira pessoa que utilizam essa perspectiva para nos emprestarem uma maior sensação de exploração e descoberta dos quais já tivemos grandes exemplos como o artístico The Unfinished Swan ou o hilariante The Stanley Parable. Mas Gone Home leva a experiência muito mais longe, até um patamar que nem sequer sabíamos atingível num videojogo, transmitindo-nos uma familiaridade com o nosso próprio passado apenas através da observação e interacção com os objectos no interior de uma casa sem pessoas.
No dia 7 de Junho de 1995, Kaitlin Greenbriar, uma jovem loura de 22 anos simpática e de sorriso dócil regressa a sua casa, em Portland, depois de uma viagem de um ano pela Europa. Nessa noite de temporal, Kaitlin encontra o interior da mansão herdada pelo pai deserta, apenas com uma nota deixada pela irmã Sam. Essa noite é o início desta história e se o sabemos é porque tudo nos é passado pelos objectos que nos rodeiam: da mala de viagem com a etiqueta de quem somos, ao nosso passaporte ou ao bilhete de avião.
Durante as próximas duas horas vamos explorar o interior da nossa própria casa e das suas muitas divisões. Em cada uma iremos descobrir um pouco mais da estória, mas também da história sobre nós, sobre os nossos pais, sobre a nossa morada. A forma como esta informação é transmitida é a maior genialidade do jogo, com uma estrutura narrativa bem desenhada escondida nos objectos do dia-a-dia e na arte de sugerir em vez de contar.
A narrativa é maioritariamente centrada na nossa irmã e sobre o porquê de esta ter fugido de casa. Ao longo do jogo, certos objectos vão despoletar mensagens e conversas que a irmã nos foi deixando ao longo de um ano através de cartas nunca entregues. Sam, uma adolescente entre os 18 e os 19 anos conduz-nos por uma viagem que corresponde ao ano em que estivemos fora, e somos convidados a entrar não só no mundo conturbado dessa adolescência como a regressarmos também à nossa. Os objectos que aí nos conduzem trazem memórias quentes e esquecidas, como as fanzines que se escreviam, os pins que se punham nos casacos de ganga, os estereogramas para os quais olhávamos fixamente para produzirem imagens em 3D, os cartuchos da Nintendo, uma revista cuja capa é o obituário do Kurt Cobain, ou as fitas pretas com letras brancas produzidas pelas pequenas máquinas manuais de etiquetar.
Por toda a casa, tudo nos transporta de volta ao nosso passado e provoca-nos uma deliciosa e ao mesmo tempo triste vontade de regressar a esses tempos, a um conforto de algo que para nós é agora seguro pois já não é desconhecido e onde não habita a incerteza do futuro. Através de cassetes VHS com filmes como Robocop ou Fantastic Voyage entramos no mundo do pai, assim como através dos livros de auto-ajuda no universo da mãe. Mas principalmente os objectos levam-nos numa sequência afinada e bem pontuada a descobrir os insucessos literários do pai, as dúvidas matrimoniais da mãe, ou a forma como nós sempre fomos a irmã modelo e Sam a irmã rebelde.
O mais curioso é que ao mesmo tempo o jogo vai transmitindo uma sensação que qualquer coisa não está bem e enquanto desvendamos todas as estórias e histórias vamos sendo acompanhados pela chuva que bate nos telhados, pelos trovões, mas também por madeiras a ranger ou algo que nos parecem sussurros mas não sabemos com certeza absoluta se chegámos a ouvir. Algo paira sempre sobre nós naquela casa vazia de pessoas mas repleta de objectos e mensagens para descobrir.
O melhor: Os objectos na casa e a sua fidelidade perante os anos 90; As memórias que o jogo consegue trazer apenas interagindo e observando os elementos do cenário; A forma como as várias histórias da família e as personalidades vão sendo reveladas; o subtil ambiente sonoro.
O pior: Queríamos ainda mais interacção.
Gone Home é um acontecimento nos videojogos. Com a maior das simplicidades, com mecânicas básicas mas depuradas, um jogo faz-nos sentir não só parte dele mas também uma parte já esquecida de nós. Quem nasceu entre 1974 e 1978 vai ter aqui uma memorável viagem às suas memórias mais reconfortantes e também ao período de todas as dúvidas e medos adolescentes dos quais agora nos rimos ou lembramos com carinho. Com uma estrutura narrativa apenas baseada em objectos mas pontuada com um ritmo de descoberta perfeito, este jogo só peca por não nos premiar ainda mais a interacção com o ambiente, pois nunca um jogo me deu tanto prazer na exploração do cenário e na vontade de observar e descobrir todos os pormenores. Gone Home é a forma mais simples e intrusiva até hoje conseguida para transmitir uma excelente estória digital.
(Gone Home está disponível para PC, Mac e Linux)
Comments (4)
Comprei no dia de lançamento e é de facto uma belíssima experiência. Já faz algum tempo que não jogava algo tão puro e genuíno. Um jogo muito importante para a indústria.
(Quem não jogou e tenciona fazê-lo, não leia a partir daqui)
Só um reparo na brilhante análise. Não leves a mal mas isto não pode ser considerado um spoiler?
“A narrativa é maioritariamente centrada na nossa irmã e sobre o porquê de esta ter fugido de casa”
Digo isto porque é um dos detalhes da história que apenas nos é revelado mesmo no final, isto de forma mais concreta. Quando cheguei ao sótão, e depois de ter ouvido as últimas entradas de uma Sam desanimada, triste e confusa, a primeira coisa que pensei foi: “Bem, parece que tomou a decisão errada (suicídio). Vê-se muitos caso destes na vida real, onde as circunstâncias são bem semelhantes”.
Pelos vistos estava enganado, tal como a maioria do pessoal que já terminou o jogo, e quando soube que afinal ela tinha fugido com a namorada senti um certo alivio, lol. A forma como abordam esse cliché, se assim pode dizer, e o deitam abaixo, é simplesmente brilhante.
Tive esse cuidado Nuno :)
Nós descobrimos que Sam saiu de casa logo nos primeiros 5 minutos. Aliás, esse é o gancho de história do jogo e aquele que nos acompanha ao longo de todo o tempo para perceber porque é que ela saiu de casa.
Aliás, esta foi das análises mais difíceis que tive de escrever porque qualquer coisa que se diga já é algo que se está a estragar na experiência. :)
Devo ter feito então uma interpretação demasiada superficial daquela primeira nota, ou então acho que me fui esquecendo da existência desta à medida que me “perdia” no jogo.
Mas é engraçado, pois já li várias reacções/comentários de pessoas que pensaram o mesmo que eu na parte do sótão. daí ter achado que a “verdadeira” questão que se coloca no início é “O que é que aconteceu à Sam?”, em vez de, “Onde está a Sam?”.
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