Contra a Bala de Metal

Há momentos na nossa vida que nos marcam para sempre, e é claro, para quem gosta de videojogos desde muito pequeno muitas dessas marcas passaram pelas consolas ou pelo PC. No meu caso foi o contacto com a minha primeira consola, uma Family Game, uma cópia da NES que penso que quase toda a gente teve no início dos anos 90. Daquelas que traziam dezenas de jogos e que nos deixavam maravilhados com o que era possível fazer de mágico com os 8 bits. E logo o primeiro jogo era o clássico da Konami, o genial e dificílimo Contra. A versão “à homem” com 3 vidas, que separava os meninos copinho de leite dos verdadeiros guerreiros. Saltar com um homem em tronco nu com uma espingarda em níveis de run ‘n gun, enquanto desviamos com acrobacia digna de uma ginasta romena saraivadas de balas pelo ecrã não é tarefa para qualquer um. E na mesma linha de jogo, o meu primeiro encontro com uma máquina de Metal Slug num café dos Olivais, que me fez gastar muitas moedas de 50$ e consequentemente, deixar-me sem lanche.

E se estas pequenas memórias fazem parte do meu crescimento, aposto que também fazem parte da vivência dos criativos que compõem a Tribute Games, famosos por terem sido a equipa que fez Scott Pilgrim Versus the World: the Game e Wizorb. Um pequeno estúdio independente em Montréal com foco em pixel art e jogos mais retro, e que homenageiam de forma honesta os jogos que mais os influenciaram. É o caso deste Mercenary Kings, em early access no Steam desde Julho, que não disfarça a notória inspiração que tem em Metal Slug. Aliás, ao observador menos atento, o primeiro relance do jogo é que se trata da mais nova sequela da genial série da SNK.

Se Charles Caleb Colton celebrizou a frase “Immitation is the sincerest form of flattery”, então o elogio feito pela Tribute Games ao seu modelo de inspiração é óbvio. O que nos prende à discussão de qual a relevância de algo que por si mesmo não é original, mas sim um produto baseado noutro. Será verdade a máxima que circula, que já não existe nada para criar, apenas existem recriações de algo já inventado? E que tudo o que pensamos ser original acaba por não passar de uma imitação, ou num caso extremo, um plágio de outra coisa qualquer? A validade de um objecto passa mais do que tudo pela honestidade da sua criação. Em momento algum a Tribute Games renegou a grande influência que sofreram em Metal Slug, e muito menos assobiaram para o ar quando confrontados com esta situação. Aliás, as semelhanças são tão grandes que refutar seria um perfeito acto de estupidez.

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Don’t call me Babe!!!

 

Mercenary Kings não existiria se Metal Slug não tivesse sido criado, mas em boa verdade quase todos os objectos criativos são passíveis de traçar os elementos que contribuíram para a sua execução. E Mercenary Kings soube trazer novos elementos à jogabilidade (quase) infalível deMetal Slug e reinventar-se. A começar pela auto-consciência narrativa do jogo. Jogar Mercenary Kings é vestir a pele de um qualquer action hero dos anos 80, e a dose de cheesiness que isso acarreta. É esta auto-percepção que permite que as linhas de diálogo parodiem com a existência destas super-máquinas da guerra, ao bom estilo de John Rambo. Entre tiros e facadas, é o super-homem que consegue derrotar exércitos inteiros com a sua perícia bélica. Por outro lado o sistema de jogo que funciona por aceitação de missões, ora não fossemos nós mercenários. Apesar de trazer uma nova característica aos jogos run and gun, também acaba por conduzir à repetição, não fossem muitas destas missões desenrolarem-se nos mesmos mapas. Claro que o tipo de missões vão desde apanhar x número de materiais, a matar y número de soldados ou derrotar o boss do mapa, passando por resgatar reféns.

Por outro lado a customização do nosso personagem e das nossas armas. É possível escolhermos habilidades passivas do nosso herói assim como predefinir e construir todos os componentes da nossa arma. Só que todas estas customizações requerem dinheiro e materiais. Aliás, muito dinheiro e muitos materiais. E a solução encontrada é um dos grandes fantasmas dos jogos actuais: o grind! E claro, a simples mecânica de reload da arma, que nos impede de assumir a postura original dos shoot ‘em ups de disparar cartuchos infinitos de bala pelo cenário.

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Não me assusto facilmente soldado! Eu tenho nervos de aço!

 

Todo o nível de originalidade de Mercenary Kings e as doses Stallonianas (vivam os neologismos) de diversão que obtemos são porém rebatidas pela repetição que o jogo nos obriga. Desde a diversidade de mapas que é infelizmente pequena, e cuja multiplicidade de missões não permitem disfarçar, ao necessário grind dos materiais para customizar cada um dos componentes. Num sistema muito próximo do que, dum ponto de vista muito pessoal, me afasta da série Monster Hunter. Porque apesar da salutar customização, o grind acaba por ser um turn off gigantesco para um jogo divertidíssimo, e que não merecia o peso da repetição sobre as suas “costas”.

E para além disso, conta com uma belíssima pixel e concept art da autoria do ilustrador Paul Robertson, com geniais animações de primeiro e segundo plano a relembrarem a criatividade contangiante de Metal Slug, até à criação de bosses e personagens memoráveis. E é esta manifestação exímia de pixel art, a conferir um look retro extremamente apurado que funciona, à primeira vista, como um belíssimo argumento de venda.

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Deixa só levar o Bóbi à rua!

 

O modo cooperativo, porém, consegue afastar este fantasma da repetição que paira sobre Mercenary Kings. Com a diversão herdada da jogabilidade a dois jogadores de clássicos como Contra e Metal Slug, a possibilidade de jogarmos este shoot ‘em up com mais 3 amigos em modo local acaba por arrancar gargalhadas a todos! Ou simplesmente procurar jogadores pela internet e cooperar com totais estranhos pelas missões disponíveis.

O melhor: a arte do jogo; o bom sistema de customização; o modo cooperativo e a jogabilidade viciante.

O pior: a repetição das missões e o grind de materiais.

Mercenary Kings soube posicionar-se no mercado independente, apelando à trend mais retro que existe actualmente. Mas parece mais do que tudo um jogo feito por e para fãs de alguns gun and runs clássicos, sem nunca esconder essa mesma influência. Apesar de o termos jogado em early access, é possível que o tempo que levará até ao seu lançamento oficial permita o desenvolvimento de mapas extras e de novas missões. Até porque a versão disponível foi lançada um pouco antes do término do período de crowdfunding no Kickstarter, que finalizou com 150% da meta alcançada. Veremos o que o futuro reserva a este jovem estúdio com imensa vontade de repensar os jogos com os quais cresceram. Porque este Mercenary Kings, para já, cumpre com todos os objectivos de diversão a que se propõe.

7Sobre as análises e sistema de classificação

Mercenary Kings está disponível para PC.