A história de como Ellen Page salvou um jogo.

Para perceber e poder apreciar Beyond: Two Souls temos que ter em mente aquele que é considerado um dos principais objectivos da Quantic Dream: encurtar a distância entre os videojogos e o cinema. E embora este tema não seja uma novidade para quem jogou o seu título anterior, Heavy Rain, quem entra fresquinho por estas terras pode acabar por ter uma experiência não tão agradável, e sentir-se mais como um espectador do que como um jogador que está no controlo de uma personagem. No entanto, não interpretem isto como palavras de desencorajamento para embarcar nesta história, muito pelo contrário. Deve-se, talvez, à soberba interpretação da actriz Ellen Page, mas o que é certo é que jogar Beyond: Two Souls deixa-nos numa espécie de transe, do qual só conseguimos sair quando o destino da sua personagem principal nos é revelado.

Sendo o sucessor de Heavy Rain, grandes expectativas foram depositadas na Quantic Dream para produzir um jogo que se tornasse num verdadeiro filme interactivo, um jogo que apresentasse ao jogador X todas as armas e poder de escolha necessários para guiar a sua personagem a um desfecho diferente do que o do jogador Y. E esta espécie de exigência é compreensível se observarmos, no seu predecessor, a diferença que faz escolher a tecla quadrado em vez da bola, errar a sequência de controlos que nos é dada ou até responder que sim em vez de não. A grande questão é que enquanto Heavy Rain tem quatro personagens jogáveis, Beyond: Two Souls tem duas personagens interligadas numa só: Jodie Holmes e a entidade misteriosa, chamada Aiden, ligada a esta por algo que se assemelha a um cordão umbilical. Se tivermos isto em mente, conseguimos entender o porquê das decisões que tomamos não parecerem afectar o rumo da história, ou seja, percebemos que o facto de falharmos as direcções para onde nos mexemos, enquanto lutamos com quatro deliquentes, não significa morrer. Poderia significar ficarmos tão maltratados que merecesse uma ida ao Hospital ou um simples desmaio no meio da rua, mas falaremos disto mais à frente.

jodie horror

Um pouco de terror nunca fez mal a ninguém.

 

Beyond: Two Souls leva-nos numa viagem interactiva pela vida de Jodie Holmes, desde criança até jovem adulta, contada por capítulos desorganizados cronologicamente. Sendo Jodie uma rapariga muito especial, e com uma ligação a uma entidade sobrenatural, a vida que leva é no mínimo agitada. Tanto temos uma Jodie na sua pré-adolescência a tentar sobreviver a uma festa com alguns colegas, como uma Jodie em modo militar, também a tentar sobreviver, mas a tiros de metralhadoras durante o que aparenta ser uma guerra civil. É através desta mudança de locais que notamos o esforço colectivo da Quantic Dream para nos presentear com cenários diferentes, coloridos e até futurísticos, que enchem o ecrã e completam as acções de Jodie. Ao contrário de Heavy Rain em que o ambiente era sempre soturno e chuvoso, em  Beyond: Two Souls tanto temos cenas cobertas de neve tão branca que até custa distinguir as formas de edifícios ou objectos ao longe, como um espaço deserto onde sobressaem o amarelo torrado, castanho e laranja, transmitindo ao jogador a sensação de estar a sofrer de um calor infernal. São horas de constantes mudanças de sítios que tanto podem passar por paisagens de tirar a respiração como quartos sujos, pequenos e claustrofóbicos, sempre de mãos dadas com uma fantástica banda sonora conduzida por Normand Corbeil (Heavy Rain) e Lorne Balfe (Assassin’s Creed III).

Mas não é só com cores e sabores que um jogo enfeitiça. O verdadeiro brilho em Beyond: Two Souls está no argumento, na história e na melhor performance da carreira de Ellen Page (nota mental: sugerir à comissão responsável pelos Óscares a introdução de Melhor Actor/Actriz num Videojogo). Durante o decorrer deste filme, perdão, jogo, somos confrontados com uma mistura de géneros balançados pela forma como Page torna as acções e reacções de Jodie tão naturais. E temos que tirar o chapéu a David Cage, realizador do jogo, por acertar em cheio ao escolher a pequena actriz canadiense para este papel. Jodie Holmes é como se fosse uma extensão de Page, e isto ajuda o jogador a não se perder no meio de tanta mudança de registo. De capítulo em capítulo saltamos de cenas de acção, como uma fuga à polícia pelo meio de uma floresta escura e fechada que culmina com a morte de uma dezena de homens da lei; para casos dramáticos, como escolher entre a morte e a vida de alguém querido; passando por pequenos pedaços de terror, como passar por corredores sombrios, com pessoas mortas em cada canto e com uma mão cheia de espirítos a quererem caçar-nos; e ainda ocasiões em que o modo stealth é o melhor amigo, como andar de sítio para sítio a escondermo-nos numa cidade cheia de inímigos com armas prontas a disparar. É quase como se Beyond: Two Souls fosse um prato gourmet: junta-se a série Grey’s Anatomy com o filme Karaté Kid, acrescenta-se a série Alias e agita-se com a série The X-Files, reduz-se com o filme Carrie, adiciona-se o jogo Metal Gear Solid, uma pitada do jogo Dead Space, quem quiser ainda coloca o livro 20.000 Léguas Submarinas et voilà. Pronto a servir.

aiden protecting

Usa a força, Aiden!

 

Uma das coisas que se torna bastante evidente desde o início é o facto de os controlos terem sido simplificados. Embora existam combinações, esqueçam as mais complexas como carregar em R1 e na tecla X ao mesmo tempo passando para o triângulo e p’ra cima e mais o L1. Esqueçam. Com Beyond: Two Souls, a Quantic Dream decidiu colocar as acções de Jodie mais orgânicas. Isto significa que para fazermos algo como levantar de uma cadeira ou pegar num objecto basta virar o analógico para o lado que parecer mais natural. O mesmo acontece em cenas de luta ou perseguições, se Jodie se encontra numa situação em que tem de reagir o cenário fica mais lento de forma a podermos virar para a esquerda, direita, cima ou baixo, aquilo que pareça ser mais óbvio. Embora possa parecer mais apelativo que uma sequência de botões, nem sempre os movimentos do corpo de Jodie são fáceis de ler, o que faz com que pressionemos a direcção errada. Mas não faz mal. Não há nada que a nossa rapariga não aguente. Outras introduções dignas de referir e que acrescentam emoção ao jogo são, por exemplo, podermos conduzir uma mota, andar a cavalo e até andar debaixo de água. Sem dúvida mudanças apreciadas para quem jogou Heavy Rain.

Controlar Aiden também é relativamente fácil. A um toque de um botão passamos de Jodie para o seu amigo espírito, onde temos uma perspectiva na primeira pessoa do cenário, com diferentes objectos e pessoas para interagirmos. Mas nem sempre é preciso carregar num botão para jogarmos com Aiden, em determinadas situações, como quando Jodie está em perigo, passamos automaticamente a controlar esta entidade. Embora possa parecer divertido entrar na pele de um fantasma, as interacções disponíveis são limitadas. Aiden pode navegar pelo sítio onde Jodie está mas sem nunca se afastar muito; atirar, partir, mexer em determinados objectos; matar ou controlar certos inímigos ou personagens. É aqui que se começa a notar a necessidade da Quantic Dream de empurrar o jogador num caminho já previamente delineado. Ao longo do jogo nunca é explicado o porquê de Aiden apenas conseguir controlar algumas personagens e matar outras ou de, por vezes, essas opções nem estarem disponíveis. E poderá ter sido uma decisão de última hora, mas colocarem um modo cooperativo em Beyond: Two Souls é completamente inútil já que o que acontece é termos a pessoa que controla Aiden numa posição muito mais passiva que a pessoa que joga com Jodie.

aiden killing

Chamem o Mulder e a Scully! Homem abatido por forças desconhecidas!

 

Durante as várias entrevistas e apresentações deste título, um pormenor que a Quantic Dream sempre quis deixar claro foi o facto de as decisões em Beyond: Two Souls serem mais orgânicas e deixarem de ser tão mecanizadas, ou seja, o jogador muitas vezes poderia estar a fazer uma escolha importante e nem se aperceber. Numa primeira aventura do início ao fim isto aparenta ser uma verdade. Embora existam decisões claras, outras são introduzidas de forma mais súbtil e só mesmo no final é que nos apercebemos do seu impacto. No entanto, ao pegar em Beyond: Two Souls uma segunda vez fica evidente que este poder de escolha é apenas uma ilusão. Para não existirem más interpretações, isto não significa que se fizermos escolhas diferentes os finais não serão diferentes, porque são, mas é durante o decorrer dos capítulos que não existem mudanças. Jogam-se sempre na mesma ordem, não existem grandes alterações na forma como são apresentados e não são introduzidas novas cenas. E para quem sempre focou a naturalidade das decisões e a não mecanização das mesmas, em vez das escolhas levarem a determinado final podemos terminar Beyond: Two Souls com uma série de opções que seguimos ao carregar num botão.

jodie kiss

Não te faças de rogada, linda! Beija o rapaz!

 

O melhor: brilhante interpretação de Ellen Page; história; comandos simplificados; diferentes cenários; banda sonora.

O pior: ilusão de poder de escolha; desenrolar da história linear; sensação de espectador em vez de jogador.

Beyond: Two Souls é um jogo que vale a pena comprar. Vale a pena participar, ver e ouvir esta história pois cada revelação é mais intrigante que a anterior. E embora exista uma esquisita mistura de géneros, esta é colmatada com a naturalidade com que Ellen Page age de capítulo para capítulo. Todas as questões técnicas que poderão aparecer ao longo do jogo, como estar constantemente a falhar reacções e não morrer, ou deixarmos a Jodie ser apanhada pela polícia várias vezes só para existir sempre a possibilidade de esta ser salva por Aiden, tornam-se pequenas com o argumento e desenvolvimento desta história criada por David Cage. Não é de todo um jogo perfeito e o meu conselho é que joguem uma vez, respirem tudo o que este tem para oferecer, e guardem na prateleira durante um bom tempo só para depois mergulharem nele outra vez.

Beyond: Two Souls é um exclusivo PS3