O mundo que poderá vir
A massificação dos videojogos trouxe alguns conceitos para a abrangência do senso comum. A sigla RPG foi uma delas, apesar de há muito já ser passada de boca em boca desde os anos 70, ainda de que para a maioria Oblivion, Final Fantasy e Dragon Quest, são alguns dos exemplos mnemonicamente associados quando ouvem esta sigla. Mas para um nicho (cada vez menor?) de pessoas, RPG é sinónimo automático de caneta e papel ou tabletop role-playing games. Jogos em que a imaginação é simultaneamente processador, placa gráfica e interface na progressão da narrativa, em que o enfoco total está na parte role-playing da sua nomenclatura.
Durante umas horas somos uma outra pessoa, imaginária, num mundo fictício que existe apenas em projecção mental colectiva e a realidade tal como ela é fica abstraído ao rolar dos dados. E é na experiência narrativa e performativa que os jogadores de RPGs encontram o verdadeiro sentido desta forma de entretenimento, e não apenas às meras estatísticas ou ao level up com pontos de experiência. Sabendo que todas as acções, tal como na vida real, dependem apenas da sua vontade, e de que têm de estar cientes das consequências de cada decisão. O verdadeiro sandbox, é totalmente mental: o limite é, verdadeiramente, a imaginação. E é de lamentar que regra geral, os videojogos tão orgulhosamente denominados de RPG limitam-se a atribuir essa nomenclatura pela utilização de lógicas de customização de personagem, subidas de nível, experiência, entre outros factores, e pouco ou nada do verdadeiro papel das nossas decisões no desenrolar da história, e o facto de que, por limitações orçamentais, técnicas, ou narrativas, é possível ver “os carris” que conduzem o nosso personagem pelo storyline pré-definido.
Um problema que esta massificação dos videojogos trouxe é mesmo a condenação a que fadou outras manifestações de entretenimento tais como os tabletop RPGs: quão difícil é para um meio tão específico de ser apelativo às gerações posteriores às nossas, que cresceram em pleno desenvolvimento da informática e das telecomunicações. Quão apetecível é o “faz-de-conta” de abrangência ilimitada perante uma geração habituada ao “ver para apreciar”?
Shadowrun surge em 1989 pela editora FASA como um RPG de ambiente cyberpunk, misturando magia e tecnologia num ambiente semelhante a Blade Runner. A sua especificidade sci-fi acabou por distingui-la dos restantes RPGs mais centrados no ambiente high fantasy criado por Dungeons & Dragons, o que justificou as adaptações para videojogo na SNES e na Mega Drive. Apesar da base sólida de apoio, a longevidade que D&D teve até aos dias de hoje (sendo potencialmente o RPG mais jogado de sempre) não se compara com o relativo esquecimento que o ambiente cyberpunk de Shadowrun foi tendo ao longo da última década, apenas reactivado aquando do lançamento de videojogos baseados na série.
É o caso deste Shadowrun Returns, a mais recente iteração da série desenvolvida (e financiada através do Kickstarter) pela companhia independente Harebrained Schemes de Jordan Weisman, o criador da série original. É possível que seja essa a grande razão do jogo servir na perfeição como enquadramento ao próprio setting: a forma eficaz como somos apresentados a todo o background de Shadowrun através da narrativa cuidada, demonstra um conhecimento profundo do próprio mundo (não fosse o lead designer o próprio criador desse mundo).
Sendo um tactical RPG, o combate desenrola-se num sistema de grelha em que o posicionamento estratégico no terreno influencia a nossa eficácia em combate, e todos os turnos têm de ser meticulosamente estudados tal qual num tabuleiro de xadrez, aproveitando as mais-valias dos personagens que temos na nossa party. As restantes secções do jogo passam-se ao velho estilo RPG: dialogar com NPCs, negociar, comprar equipamento, adquirir implantes cibernéticos, viajar pela matrix (sim, leram bem), receber missões opcionais, em suma, o nível de aprofundamento que temos ao enredo e ao mundo em que a história se passa depende do tempo que queremos dedicar a conhecer e a investigar o próprio setting. E ir percebendo aos poucos as tenções raciais e sociais que existem num mundo em que elfos, orcs e anões são apenas degenerações recentes de nados humanos.
O grande ponto em que o jogo acaba por pecar é pela falta de livre arbítrio na exploração e a constante sensação de “visualização” das paredes invisíveis e do grande “carril” que nos dirige através da narrativa. O que só não é mais negativo pela grande qualidade que a história do jogo, “Dead Man’s Switch” de seu nome, nos conduz por um ambiente de investigação de filme noir com laivos de cyberpunk, abordando vários sectores importantes do universo Shadowrun: desde a consciência que somos Shadowrunners – mercenários a tentar “fazer pela vida”- à disposição de subcontratadores, em missões de alto risco que podem ir desde a espionagem industrial, ao resgate, rapto ou eliminação de alvos. Tudo isto enquanto investigamos a morte de um velho amigo, aparentemente alvo de um Assassino em série que assola Seattle. Shadowrun Returns não vai maravilhar ninguém pelas suas qualidades gráficas, apesar da sua aparente simplicidade representar o ambiente soturno e distópico do que deveriam ser os subúrbios de Seattle neste universo cyberpunk. Porém, o jogador que procura este jogo fá-lo pela exímia qualidade narrativa, daqueles casos em que temos vontade de ler todas as linhas de diálogo e a coerência é um sólido fio condutor por todo o jogo.
Shadowrun Returns tem um condão incomum em jogos adaptados de outros meios, sejam jogos de tabuleiro ou mesmo literatura: a de ser um belíssimo gateway para o universo que narra. A semente de curiosidade em conhecer mais aprofundadamente todo o mundo de Shadowrun após terminar as 12 horas da campanha disponíveis, foi implantada em mim de forma extrema. Aliás, deu-me a mim e ao meu grupo de amigos a “coragem” de procurar uma campanha de Shadowrun aqui na zona de Lisboa e cumprir uma vontade antiga: a de experimentar um RPG tão único e tão sui generis como este.
Decerto que a dinâmica que o jogo imputa aos seus jogadores vai inspirar a comunidade a utilizar as ferramentas de edição e novas campanhas fan-made surgirão para abrilhantar um jogo que consegue cativar os jogadores do início ao fim do percurso.
O melhor: o enredo de “Dead Man’s Switch”; a fiel representação do universo; o ambiente bem conseguido; as mecânicas de combate táctico bem conseguidas.
O pior: a falta da verdadeira exploração do mundo; a incapacidade de responder a algumas questões de background do próprio universo que obrigam a investigações exteriores ao jogo para melhor compreensão.
Shadowrun Returns soube aproveitar o ímpeto dos tactical RPGs trazidos recentemente por XCOM e aproveitar esse momento para ressuscitar um universo tão rico como este. Apesar de não ter a percepção se os compradores do jogo serão jogadores de tabletop RPGs, ou se as pessoas interessadas no jogo irão jogar a versão tabletop depois de o acabarem, a realidade é que o universo criado por Weisman não poderia ter melhor porta de entrada: Shadowrun Returns consegue criar uma experiência apelativa e implantar a curiosidade sobre o universo cyberpunk. Tudo isto num jogo equilibrado e com uma narrativa afinada que, infelizmente, passará por debaixo do radar da grande maioria dos jogadores.
Sobre as análises e sistema de classificação
Versão analisada: PC. Também para Mac, Android e iOS.