Bastonário da Ordem dos Advogados Magníficos

Avaliarmos uma das nossas séries de videojogos favoritas tem sempre uma responsabilidade acrescida. Se a maioria das pessoas pode considerar que esta é uma tarefa facilitada, podem acreditar que estão a incorrer numa falácia. Ou mesmo quem acredita que um crítico avaliará automaticamente de forma positiva uma obra próxima do seu gosto pessoal poderá estar meio-certo (ou meio-errado). No meu caso pessoal sinto que o afeto que tenho por alguma série acaba por funcionar em prejuízo da mesma: se o meu sentido crítico e padrões de exigência são usualmente altos, as expectativas em relação aos meus franchises favoritas acabam por elevar a fasquia da exigência para níveis por vezes absurdos.

A série de Ace Attorney (Gyakuten Saiban no original) é uma improbabilidade estatística no Ocidente. Apesar de ter algumas particularidades encontradas nos jogos de aventura gráfica, a realidade é que de base, qualquer um dos títulos da série é um exemplo clássico de uma visual novel, um tipo de jogo que constrói toda a sua jogabilidade sobre uma narrativa ficcional interactiva, sob uma estética notoriamente animeesq. A popularidade deste género circunscreve-se ao Japão e pouquíssimos casos de sucesso ultrapassaram as fronteiras da ilha nipónica. Felizmente para o resto do Mundo, Ace Attorney é um desses poucos casos.

Um advogado é bom! Três não é de certeza demais.

Um advogado é bom! Três não é de certeza demais.

 

De uma forma simplista, para quem nunca teve contacto com nenhum jogo da série, resta apenas explicar que se trata de um jogo cujos protagonistas são advogados de defesa, que lutam por vereditos de inocência para os seus clientes, tendo para isso também de fazerem trabalho de investigação, e claro, de esgrimirem argumentos e devastarem contradições à barra do tribunal com os objectos (provas) que fomos encontrando na nossa investigação. Mas Phoenix Wright: Ace Attorney, é, e sempre foi muito mais do que isso.

Pheonix Wright: Ace Attorney – Dual Destinies é o quinto jogo da série principal, e que decorre 1 ano depois de Apollo Justice. Apesar de não responder a algumas das pontas soltas do seu antecessor, permite a novos jogadores da série adentrarem a série sem aquela sensação de quem chega atrasado ao cinema e já perdeu alguns minutos de filme. A introdução à série, aos seus personagens, às premissas e às mecânicas estão perfeitamente apresentadas no (já típico) Prólogo, e que não só permite uma rápida captação da ambiência do Mundo onde Phoenix Wright decorre, como dos mecanismos à nossa disposição.

Trucy e as “truces”. Pun intended.

Trucy e as “truces”. Pun intended.

 

Mas, sendo a primeira aparição na 3DS, havia uma certa aura de desconfiança para os fãs da série após a publicação das imagens apresentadas nos últimos meses. Os sprites que acompanharam o jogo desde o GBA até à NDS, davam entretanto lugar a gráficos poligonais. E a realidade é que este salto estético acabou por funcionar em benefício do jogo: as animações dos personagens são fluídas e a transposição de sprites para a modelação tridimensional conferiu a coesão visual necessária para que esta nova abordagem gráfica nos pareça o mais natural possível. A adicionar a esta mudança de paradigma visual temos também sequências de animação no início e em pontos-chave de alguns casos a demonstrar a entrega que a equipa da Capcom teve em tentar “suavizar” esta transição visual tão abrupta da NDS para a 3DS, e que permite acentuar os momentos de clímax de uma forma mais eficaz, quebrando o nosso fôlego em momentos de tensão.

Porém, o grande amadurecimento da série vem naquela que é a sua parte mais fundamental: a qualidade da narrativa. Os argumentistas da Capcom já nos tinham habituado a scripts bem estruturados, imaginativos, surpreendentes, com boas construções de personagens e ainda melhores interacções entre as mesmas, boas doses de humor e seriedade q.b., bons twists nos casos dignos de uma criação do David Fincher nos anos 90. Mas a maturidade demonstrada neste Dual Destinies foi a capacidade de ir interligando todos os casos num grande arco de história, em que pequenas peças de cada um dos casos formam a imagem total que culmina em apoteose no último caso.

A qualidade da história é perfeitamente demonstrada nas características over-the-top dos personagens e das situações, até à incredulidade que alguns casos têm, fazendo-nos quase sempre ter de pensar para além do lógico para resolver os casos e conseguir provar a inocência dos nossos clientes. Existe algo de verdadeiramente coeso no argumento de Dual Destinies que consegue de alguma forma superar a linha de excelência conseguida desde o primeiro Ace Attorney, mas aqui, percebe-se já a solidez e a coragem em assumir o risco de criar uma narrativa contínua que se vai nutrindo de pequenos apontamentos de entre cada um dos casos.

Olh’ójabiões lá atrás!

Olh’ójabiões lá atrás!

 

Como todos os fãs da série já perceberam (e o próprio título indica-o) temos finalmente Phoenix Wright a regressar à barra do tribunal e ao comando da Agência de Advogados Wright Anything, mas desta vez com os seus 2 discípulos: Apollo Justice, que conhecemos no jogo anterior e Athena Cykes, a nova personagem da série. A alternância de protagonismo entre os três que vamos tendo no decorrer do jogo contribui para um maior conhecimento dos personagens e aprofundamento dos seus pontos de vista, e claro, uma melhor compreensão das suas habilidades únicas. Cada um dos três personagens tem as suas próprias habilidades para descobrir contradições nas testemunhos: Phoenix Wright, com a utilização da Magatama (serei eu a única pessoa que tem imensas saudades da Maya Fey, a companheira do Phoenix nos 3 primeiros jogos e que lhe deu este pendente?) consegue quebrar cadeados psíquicos (bloqueios mentais); Apollo Justice consegue detectar tiques nervosos através da sua bracelete e a mais recente integrante da Agência, Athena Cykes, consegue através de psicologia analítica perceber as incongruências nos testemunhos apresentados. E se estas descrições soam excessivamente absurdas, a realidade é que contextualizado na jogabilidade e na narrativa qualquer destas mecânicas de contra-argumentação funcionam na perfeição.

Curiosa foi também a decisão da Capcom de aproveitar a transposição de geração de consolas para afinar algumas questões de interface e jogabilidade: a tendência maníaco-obsessiva de qualquer jogador de aventuras-gráficas de apresentar todo e qualquer objecto aos NPCs com quem conversamos é deixada para trás: assim que os personagens interagem com os objectos que vão desencadear as linhas de diálogo necessárias ao avanço da história, acabam simplesmente por desaparecer do cenário. Aliás, quase todos os personagens com quem interagimos têm uma piada sobre a nossa tentativa de lhes mostrarmos itens que não lhes interessam. Do ponto de vista de investigação tivemos duas grandes inovações: por um lado os cenários tridimensionais, em que podemos rodar e observar sobre diversos pontos de vista, e por outro um interface que nos indica o que é “analisável” e o que já foi analisado, o que nos poupa à Caça ao Pixel dos jogos anteriores.

 

O melhor: a exímia qualidade da narrativa; os novos personagens (sobre os quais não falamos para não causar spoilers); a afinação dos interfaces e mecânicas que permitem que nunca exista uma quebra do ritmo narrativo; o visual tridimensional confere uma tradução exacta da estética da série para uma animação fluída; a consonância das mecânicas próprias dos três personagens e as novas ferramentas de investigação.

O pior: continuar a ser um jogo de nicho e de poder afastar muitos jogadores pelo facto de que quase 80% do jogo se cinge à leitura de diálogo.

Phoenix Wright: Ace Attorney – Dual Destinies vai passar sob o radar da maioria das pessoas de forma algo injusta. A sua existência unicamente em digital é mais uma benção que uma maldição: basta pensarmos no caso de Portugal o quão difícil (leia-se impossível) era encontrar qualquer um dos jogos originais nos retalhistas portugueses. A exclusividade da Nintendo eShop vai permitir um maior alcance ao público. Se será suficiente para se tornar apelativo à maioria dos jogadores, que muito provavelmente apenas ouviu falar da série? Pouco provável. O que, pela imensa qualidade da narrativa complexa, entrelaçada, madura, divertida, surpreendente, é uma perda para todos. Num momento do mercado em que as grandes empresas (a Capcom inclusivamente) beneficiam o apelo e o espanto visual em detrimento de boas histórias, Phoenix Wright demonstra que é possível tecer um belíssimo enredo em 25 horas de imersão total. E continua a ser, pela sua excelência, a melhor porta de entrada que qualquer um pode ter para as visual novels. A coragem foi compensada Capcom!

(Phoenix Wright: Ace Attorney – Dual Destinies é um exclusivo Nintendo 3DS)