De regresso às origens

Para mim, a memória de Broken Sword está fundida com o Templo dos Jogos. Como um estímulo mnémico, sempre que alguém me fala da série a minha mente viaja automaticamente para o momento em que vi pela primeira vez o vídeo de introdução de Broken Sword: the Shadow of the Templars no saudoso programa de videojogos da SIC. A animação ultrapassava tudo o que já tinha visto em videojogos, assemelhando-se ao que Don Bluth tinha conseguido com Dragon’s Lair, mas aplicado à tecnologia da altura e demonstrava que era possível dar um passo em frente no desenvolvimento de um dos géneros mais em voga no início dos anos 90: as aventuras gráficas. The Smoking Mirror, o segundo jogo da série, manteve-se fiel à fórmula original mas caminhou para a investigação da cultura Maia, ao contrário do primeiro (e terceiro e quarto jogos) onde a investigação ronda os mitos e secretismos históricos dos Cavaleiros Templários.

A necessidade quase obrigatória do início da primeira década de 2000 de fazer todo o tipo de jogos em ambiente 3D, que levou a alterações substanciais da formulação habitual de muitas séries de jogos, dos quais Broken Sword e Monkey Island não foram excepção. O grande problema é que ao contrário do genial Grim Fandango (da LucasArts), Broken Sword 3 e 4 (da Revolution Software) foram conduzidos em experimentações que o distanciaram grandemente da beleza dos cenários e personagens desenhados à mão dos 2 títulos originais, e em nada vieram complementar o patamar de qualidade desses mesmos títulos. O afastamento dos jogadores do género das aventuras gráficas e o polvilhamento de tentativas de os trazer para ambientes 3D a todo o custo, acabou por ditar o seu quase-fim, ou pelo menos, o interesse das grandes editoras em produzir este tipo de videojogos.

Liberta-te Lázaro!!!

Liberta-te Lázaro!!!

É já na década actual que o género ressurge, impulsionado por uma série de criadores independentes que tal como nós, cresceram a jogar aventuras gráficas, e que quiseram revitalizar as aventuras gráficas trazendo-as para o seu ambiente natural: a bidimensionalidade. É graças a esta revitalização de interesse no género que alguns projectos têm sido financiados através de crowdfunding, tal como aconteceu com Broken Sword 5: the Serpent’s Curse. Charles Cecil, autor de todos os jogos da série, assim como de clássicos dos videojogos como “Lure of the Temptress” e “Beneath a Steel Sky” viu rapidamente o seu objectivo de 400.000$ de finaciamento para este Broken Sword 5 chegar aos 770.000$, tal era a vontade da comunidade internacional em permitir que a sequela da série, que a retorna ao ambiente 2D, visse a luz do dia.

Ao começarmos o jogo reencontramos de imediato George Stobbart, o protagonista da série, e que é sem sombra de dúvidas um dos personagens mais emblemáticos das aventuras gráficas. Ainda que muitos o comparem ao Guybrush Threepwood, a realidade é que apesar dos semelhantes arquétipos, a direcção que ambos os personagens tiveram ao longo dos diversos jogos foi bstante diferente. Apesar de voltarmos a Paris, e percebermos que Cecil e a sua equipa quiseram trazer à memória dos fãs da série o ambiente que a tornou famosa, desta vez este reencontro com George acontece numa galeria de arte no momento exacto em que ocorre um assassinato. George é um azarado, que parece estar sempre no local errado à hora errada. Comparo o malfado de George ao da Princesa Peach: ambos parecem atrair o azar como um carro com o bilhete de estacionamento caducado atrai um funcionário da EMEL.

Então sr. Berlusconi, o que necessita?

Então sr. Berlusconi, o que necessita?

O que espanta desde logo a qualquer um é o retorno aos cenários desenhados que têm muito a ganhar com a alta definição. Os personagens são moldados tridimensionalmente e animados em sprite, de forma a diminuir a diferença visual entre fundo/figuras. A opção parece-nos perfeitamente ajustada, especialmente se tivermos em conta que este retorno a um ambiente cinematográfico encaixa na perfeição com o voice-over integral de alguns dos actores da série original. O único desajuste notório, mas que é facilmente ultrapassável é a movimentação dos personagens pelas cenas. À semelhança de outros jogos da série (e do género) era de esperar que ao clicarmos em dado objecto que o personagem não tivesse de percorrer o trajecto pré-delineado para despoletar a linha de diálogo/acção correspondente, ou pelo menos, que tivessemos a possibilidade de “passar à frente” essas trajectórias. O que vai causando momentos mortos em que vemos os personagens percorrerem um caminho, com curvas até chegarem ao pixel certo onde a continuação do enredo despoleta.

Ficamos felizes que parte do financiamento conseguida pela Revolution através de Kickstarter tenha recaído na opção de contratar de novo o compositor da banda-sonora do primeiro jogo da série, Barrington Pheloung, que voltou a criar uma envolvência exímia e que serve como o grande elemento aglutinador a toda a obra. A atmosfesra criada encaixa na perfeição com as cenas e enquadra na perfeição os momentos da trama em que George (ou a Nico, ou ambos) se encontram.

Nico. A doce Nicole Collard está de regresso. Há algo de verdadeiramente bem-construído na personagem que a permitiu ascender a protagonista e personagem jogável. Desde a sua simplicidade e beleza, até à sua coragem e sagacidade que a tornou indispensável no decorrer de toda a série. E é claro, a sua sensualidade. E não porque a personagem tenha sido criado com o intuito de ser provocante ou concebida como fan-service. Muito longe disso, o que torna Nico tão interessante é a sua naturalidade e o seu realismo, ou pelo menos, a sua verosimilhança com uma francesa comum, mas interessante, fisica e intelectualmente. Longe da provocação erótica poligonal da Lara Croft, foi verdadeiramente a jovem Nico o mais próximo do sex-symbol virtual que considero nos videojogos dos anos 90, espelhando o charme com a subtileza de actrizes dos tempos áureos do cinema, como Grace Kelly ou Audrey Hepburn.

Nico. Ohhh Nico!!!!

Nico. Ohhh Nico!!!!

Mantendo todas as formulações mais clássicas das aventuras gráficas, Broken Sword 5 peca apenas no pouco desafio que a maioria dos seus puzzles apresenta, bem longe da dificuldade dos seus antecessores, e claro, do infame puzzle do bode do primeiro jogo, que muitos consideram um dos mais difíceis da história do género.

Para além do visual que nos remete para a melhor animação franco-belga, a história e a construção dos diálogos continua a ser um dos pontos altos da série. A qualidade da escrita deste Broken Sword 5 justifica a importância que a série tem, e consegue manter o patamar de qualidade narrativo ao qual nos habituamos. É claro que esta qualidade é incrementada pela excelente interpretação dos actores que dão voz aos personagens, em especial Rolf Saxon que volta a dar a densidade e o humor que tanto caracterizam o americano George Stobbart.

Até à data o conteúdo disponível é apenas a primeira metade de Broken Sword 5: the Serpent’s Curse, ficando a segunda parte disponível gratuitamente parte neste primeiro quarto de 2014.

O melhor: A qualidade da escrita e dos diálogos; o regresso ao visual desenhado à mão; o valor nostálgico da série que regressa agora à formulação original.

O pior: A falta de desafio da maioria dos puzzles; a necessidade dos personagens de se deslocarem até ao pixel exacto em que as acções são despoletadas.

Apesar de apenas termos jogado a primeira metade de Broken Sword 5: the Serpent’s Curse, percebemos desde já que o patamar pelo qual se está a pautar o seu autor Charles Cecil, é uma tentativa o mais próxima possível dos jogos originais, querendo fazer esquecer, quiçá, as iterações em 3D da série. Não sendo uma aventura gráfica fora do normal, acaba por trazer-nos uma belíssima experiência de jogo, relembrando-nos de todos os pontos que nos fizeram (e fazem) gostar de Broken Sword. E deixa-nos a reflectir, por nos mostrar que por vezes o mais refrescante pode ser o mais nostálgico, por muito irónica que essa consideração seja.

reviewscore70

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