Em 1997 a Mercedes ocupou as páginas da imprensa e não pelas melhores razões. Após meses de antecipação, e excitação, pelo chegada do novo pequeno veículo da marca que se estreava num segmento mais utilitário, o Classe A capotou no famoso “Teste do Alce” que com uma sucessão de curvas e contracurvas testa o balanço e estabilidade de um carro. A Mercedes começou por negar a existência do problema mas depois acabou por proceder à troca dos 2600 veículos já vendidos.
O lançamento de uma consola é um dos momentos mais importantes para os fãs de uma marca, nomeadamente os chamados early-adopters, pessoas que arriscam o seu dinheiro num novo produto no momento em que este chega ao mercado. Um early-adopter corre vários riscos com a sua opção. O maior risco de todos prende-se com a qualidade técnica de construção do produto que acabou de comprar, como o que aconteceu com os consumidores da Mercedes e de tantos outros produtos que tiveram as suas primeiras versões chamadas de regresso à base.
No caso de uma nova consola, o outro grande risco que um comprador de primeira hora corre é o de não ter catálogo significativo para jogar. A PS4 adicionou um nível adicional a este problema uma vez que não é compatível com o catálogo da consola anterior, algo que acontece na história da PlayStation pela primeira vez. As primeiras PlayStation 3 corriam os jogos da PlayStation 2, consola essa que por sua vez sempre leu o catálogo da PlayStation original.
A PS4 estava assim limitada a novos títulos first-party, ao catálogo third-party, e a algumas recauchutagens de títulos digitais da PlayStation 3 como Flower, ou Soundshapes. No caso dos third-party, o mais certo é que numa fase tão embrionária da consola não aproveitem o potencial de processamento da mesma. Assassin’s Creed IV, Battlefield 4 e Call of Duty: Ghosts, por exemplo, foram quase todos lançados simultaneamente em cerca de 5 plataformas diferentes, incluindo a geração anterior. As equipas que trabalham separadamente na optimização de uma plataforma específica são sempre muito menores quando se trata de um título multi-plataforma, do que quando um estúdio está totalmente focado num só sistema. Ou seja, a vantagem de comprar uma consola de nova geração para jogar os primeiros multi-plataforma é muito reduzida e não apenas no potencial gráfico. As novas gerações proporcionam experiências novas (inovações na inteligência artificial, realidades persistentes, computação em nuvem, entre outras) que não podendo ser replicadas na geração anterior, ficam de fora destes títulos.
É nos first-party, na prata da casa, que deve residir a primeira grande razão de comprar uma consola no início da sua vida. Nos seus lançamentos anteriores a Sony deu aos jogadores razões de peso para apostar nas suas novas máquinas. A primeira PlayStation trouxe-nos Tekken e Wipeout a mostrarem-nos as potencialidades 3D da nova consola; a PlayStation 2 brindou-nos com o poderoso SSX e com TimeSpliters; a PlayStation 3 provou as suas capacidades com a destruição furiosa em alta-definição de Motorstorm.
Todos estes títulos de lançamento partilham em comum o facto de não só mostrarem o potencial técnico e gráfico da nova máquina, mas aliarem a esse show-off mecânicas de jogo frescas, extremamente sólidas, resultando num jogo de muita qualidade e que traça novas ideias. Com o lançamento da PS4, infelizmente, a Sony fez exactamente o contrário.
Killzone: Shadowfall é visualmente incrível, com momentos de nos fazer cair o queixo e que nunca foram vistos nem nos PC’s mais musculados. No entanto, se retirarmos essa película bonita do produto, não vem quase nada dentro da caixa. É um shooter como todos os outros e, em muitos aspectos, até pior que todos os outros. Uma história sem interesse, personagens sem profundidade, mecânicas que nada trazem de novo e uma inteligência artificial que parece da geração anterior, fazem deste que deveria ser uma das bandeiras da PS4 um título que se esquece minutos após terminar. Existem duas ou três boas ideias em Shadowfall, mas nada que o faça salientar-se dos restantes no género.
Pior é o caso de Knack. O jogo de Mark Cerny não tem nada a favor. Knack assemelha-se a um daqueles rip-offs que a China faz de outros jogos conhecidos, produtos sem qualquer personalidade feitos em modo de fábrica e que apenas precisam de correr para serem lançados. Knack é um jogo que podia perfeitamente correr na geração anterior, mas isso não é o seu maior crime. O mais grave do jogo são as suas mecânicas datadas e pouco afinadas e o seu desenho de níveis desinspirado e vazio que se assemelha às piores adaptações cinematográficas que acabam desde cedo na prateleira dos usados. Sinceramente, até como usado, Knack é uma péssima aquisição. Cerny fez um trabalho fabuloso no desenvolvimento da nova consola da Sony, mas parece-me que deixou o seu jogo entregue a uma equipa sem chefe e sem rumo.
Shadowfall e Knack acabam por ser uma ofensa e uma grande estalada em todos os fãs da Sony que investiram nos primeiros milhões de unidades que chegaram ao mercado. Basicamente, neste momento, os seguidores da Sony só têm uma razão para adquirir a máquina: Resogun. Este “pequeno” independente, com a sua chuva exagerada de partículas e acção frenética acaba por fazer mais pela PS4 que os dois supostos cavalos de batalha lançados. Mas é muito pouco para justificar o preço da consola.
A Sony falha desta maneira em ter uma grande ferramenta para as próximas vendas: o marketing barato do boca a boca, pois se há algo que um early-adopter faz é publicitar aos curiosos as vantagens do novo hardware, até para se justificar a si próprio da aquisição que acabou de fazer. Normalmente, a forma como o faz é através dos novos jogos. No livro “The Tipping Point”, Malcolm Gladwell chamou a estes intervenientes os “geradores de epidemias boca-a-boca”, salientando a importância que têm em publicitar um produto a uma rede enorme de amigos e conhecidos.
O ponto mais positivo do lançamento da PS4 acabou por ser os adiamentos. Aquilo que provoca a fúria de muitos jogadores, ao verem os seus títulos desejados empurrados no calendário, acaba na realidade por ser uma das maiores vantagens para o futuro das suas prateleiras. Infamous: Second Son e #Driveclub não estavam certamente prontos para verem a luz do dia, e os meses adicionais que ganharam podem ser fulcrais para os tornar jogos indispensáveis que provem que ter uma PS4 é uma mais valia, em relação à geração anterior ou a outra consola da concorrência (que neste caso não cometeu os mesmos erros da Sony). Killzone: Shadowfall deveria ter regressado também à mesa de reuniões. Já Knack deveria ter sido totalmente remodelado do zero ou simplesmente abandonado.
A PS4 tem certamente um futuro brilhante pela frente. É uma máquina extremamente poderosa e com uma arquitectura e software recheados de ideias boas e inovadoras. O seu catálogo vai certamente possuir pérolas que nos vão ficar gravadas na memória e que vão fazer os videojogos avançarem para novas e memoráveis direcções. As primeiras vendas mostraram também a enorme confiança que milhões de jogadores têm na máquina nipónica. Essas pessoas mereciam melhor. Que venha o futuro, e que esse futuro passe finalmente a ser “for the players”, que para já é apenas uma promessa por cumprir.