Uma viagem retro-futurista pela Estrada da Memória

Apesar do título sugerir automaticamente os títulos de livros do falecido Jack Vance, a viagem a que vos convidamos a participar neste artigo é menos ficção-científica, mais terra-à-terra, com um guia sádico (com requintes de malvadez) que vos conduzirá num belíssimo exemplo de turismo de lixo.

O Saturno a que nos referimos não é o planeta, que continua majestosamente empoleirado no nosso Sistema Solar a envergar aquele excesso de anéis de asteroides como uma estrela do Hip-Hop na discoteca na noite de sexta-feira. Referimo-nos sim à consola que começou o declínio da Sega: a Sega Saturn. Sem juízos de valor da consola em si, que apesar de ter sido completamente esmagada pela Playstation 1, em diversidade e qualidade de catálogo, vendas e longevidade, conseguiu também criar uma série de jogos memoráveis e que fazem parte da memória colectiva dos jogadores dos anos 90. Alguns dos bons jogos que surgiram no relativamente reduzido catálogo da Saturn são verdadeiros tesouros históricos dos videjogos, desde Clockwork Knight 1 e 2, Panzer Dragoon Zwei e Saga, Guardian Heroes e Nights into Dreams, entre outras preciosidades que vamos encontrando hoje em segunda mão.

O início desta reflexão surgiu aquando da visita a Lisboa de um dos editores aqui do Rubber, o Frederico Lira, aquando da última Meo XL Party. Quinta-feira à noite, e eu, um belíssimo anfitrião, ofereço o que melhor se pode oferecer a um amigo que nos visita: ir para nossa casa jogar jogos maus de uma consola de há quase 20 anos atrás. É que neste momento é tão fácil adquirir jogos de Saturn aos magotes – quase ao preço da chuva – que muito facilmente vamos escavando verdadeiras preciosidades de lixo por entre pilhas de jogos em expositores de lojas em segunda mão. Mais do que tudo porque a Saturn viveu para mim, um dos maiores períodos negros da criatividade na história dos videojogos: a febre do 3D. Neste período tudo tinha de existir sobre a (errónea) “magnificência” visual apresentado por modelos de polígonos. Será que olhando para trás, muitos dos autores que cometeram o erro de trazer para as três dimensões muitas mecânicas e ideias que funcionariam perfeitamente em 2D, se sentem arrependidos? E será que à época ninguém reparou que o espanto visual de um jogo de final de vida da Mega-Drive como o Comix Zone, estava a anos-luz do visual poligonal, por exemplo, de Virtua Fighter 1, que apesar de ser um bom jogo e um bom precursor dos 3D fighting games, mas que nos traziam à ideia de estar a lutar com a antiga mascote do Totobola?

Atribuir ao masoquismo a culpa solteira de eu e o Frederico termos experimentado uma série de maus jogos da Saturn é um pouco limitador. Chamemos-lhe também altruísmo. O pessoal do Rubber, se pudesse, iria apanhar as vossas vacinas e passar horas na fila das Finanças para vos entregar as Declarações Anuais de IRS. Mas como não o podemos fazer, decidimos enveredar pelo sacrifício de explanar quais os jogos de Saturn dos quais devem fugir a sete pés. Somos mesmo boas pessoas. A sério que somos.

 

Street Fighter: the Movie

street fighter movie

Porquê Raul? Porquê?

 

Apesar do filme estar empatado com “Megido: Código Omega” no meu top de piores filmes que alguma vez vi, Street Fighter: the Movie aparece nesta lista por uma razão simples. Se pensarem no grande “Inception” que este jogo é, incorrem no risco de estourar uma veia. É um videojogo de adaptação de um filme que é adaptado de um videojogo. Em que o Guile é interpretado pelo Van Damme, a Cammy pela Kylie Minogue e o M. Bison pelo (saudoso) Raul Julia. E pior? É que sendo o jogo adaptado da adaptação de cinema do videojogo original, consegue não só estar a milhas da qualidade de jogabilidade e mecânicas desse, como também não temos acesso às belíssimas sprites que a Capcom nos habitou, mas sim imagens digitalizadas do Jean-Claude, Kylie e Raul, ao bom estilo de Mortal Kombat. Imaginem que o Street Fighter e o Mortal Kombat tinham um filho, e que apenas herdaria as piores características dos pais? Pois, o resultado é este jogo.

 

Dragonball Z

dragonball z

Fun level over 90000!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

 

Não deixem que a memória vos atraiçoe: Dragonball Z para a Saturn é um jogo péssimo. Aliás, é um quase não-jogo. Porque se excluírem as melhores memórias da série e o vosso entusiasmo de jogar o jogo, ficam apenas com algo que se cingia a massacrar botões para encher uma barra e fazer automaticamente um ataque especial. Massacrar botões e encher a barra de energia e fazer um ataque especial. Massacrar botões e encher a barra de energia e fazer um ataque especial. Massacrar botões e encher a barra de energia e fazer um ataque especial. E é isto.

 

Virtual Hydlide

virtual hydlide

Skyrim? Parece mas não é. Mas está perto.

 

Por muitos considerado o pior jogo de Saturn, Virtual Hydlide é a sequela tridimensional a uma série de RPGs medíocre que é um Legend of Zelda de série Z. Nascido nos primeiros tempos de existência da Saturn, este Virtual Hydlide mistura uma série de cenários poligonais com personagens e objectos digitalizados em 2D. Um dos jogos com pior argumento, visual e jogabilidade que existem no mercado, e que demonstra o que aconteceria se qualquer um dos jogos de Elder Scrolls fosse criado na garagem por 2 tipos que têm o bom-gosto de um concorrente da Casa dos Segredos. Apesar de tudo, esta aura de jogo-quase-esterco confere-lhe alguma procura no mercado retro-coleccionista, onde é bem-sabido que nem sempre os melhores jogos são os mais procurados.

 

The Crow: City of Angels

crow city angels

Acho que controlamos o rapaz aqui da frente. Ou será que não?

 

Depois da brilhante adaptação a cinema de Alex Proyas, à genial (e profundamente deprimente) obra de BD de James O’Barr, ainda a tentar explorar um filão tornado famoso pelo fatídico acidente que vitimou Brandon Lee, tivemos uma sequela intitulada The Crow: City of Angels, realizada por Tim Pope. Para além de ser um atentado à história criada por Barr, e ter um desinspirado Vincent Pérez como protagonista e um Iggy Pop decadente (o seu estado normal portanto) como um dos vilões, City of Angels tinha, para mim, apenas a profundidade esmeralda dos olhos da Mia Kirschner a “salvá-lo” (se é que existia salvação).

Paira a pergunta no ar: qual será a qualidade da adaptação a videojogo de um filme medíocre? A resposta é simples: medíocre. The Crow: City of Angels, o videojogo sofre da febre desinspirada de criar jogos em 3D porque sim, sem qualquer solução ou justificação, resultando num jogo no limiar do “injogável”. O grande inimigo do jogo é a incapacidade que temos de controlar o protagonista, Ashe Corven, pelos cenários, e os movimentos/acções tão fluídas quanto o imobilismo de uma estátua clássica. Perdermos 4 minutos a tentar entrar numa porta? É como o MasterCard: priceless.

(também em PS1 e PC)

 

Incredible Hulk: the Pantheon Saga

incredible hulk

Toda a imponência microscópica do Hulk.

 

A Eidos tinha redescoberto a pólvora com o seu Tomb Raider. É pacífico atribuir parte da culpa da epidemia “3D-porque-sim” à própria empresa, e ao sucesso de Lara Croft a necessidade do mercado de então de tentar reproduzir a fórmula aplicada. E quando uma empresa se tenta imitar a si mesma com um franchise popular, mas falha redondamente em todos os aspectos, e cria um jogo tão horrível, que sentimos que todo o incomensurável poderio do Hulk se esvai na tentativa de saltar plataformas num cenário mal-amanhado em 3D. Pois é Eidos, conseguiram criar um bom jogo de 3D com o primeiro Tomb Raider, mas notoriamente este jogo de Hulk teria funcionado bem em plataformas bidimensionais (como o seu antecessore). Quando se quiserem imitar a si mesmos, pelo menos percebam o porquê do sucesso que atingiram previamente.

(também em PS1)

 

Frankenstein: through the eyes of the Monster

frankenstein

“I’m just a sweet transvestite, from Transsexual Transylvania.”

 

Sendo eu um gigantesco fã de aventuras gráficas, e sendo a primeira metade dos anos 90 pejada de cruzamentos entre o género e jogos FMV, quando consegui por as mãos neste Frankenstein: through the eyes of the Monster saltei de alegria. Até porque o protagonista é interpretado pelo Tim Curry e isso é razão para qualquer coisa. O conceito é algo curioso: literalmente jogamos o jogo através dos olhos do Monstro de Frankenstein, a resolver puzzles pelo castelo do seu criador. Apesar do bom momento conceptual, do argumento ser (relativamente) sólido e de ter o Tim Curry, o que é que estragou este jogo? A obsessão dos game designers em comprometerem quase toda a dificuldade do jogo em labirintos. Ao invés de apostarem em bons puzzles ao bom estilo point/click, os seus autores pejaram o jogo de labirintos, seja pelos corredores do castelo, seja pelos jardins que o circundam. Este Frankenstein foi um daqueles jogos que me esforcei a terminar por pura carolice, e que me deixou um gigantesco amargo de boca. Quase tão grande como o trazido pelo X-Files para PS1.