Filmado em Portugal circa 2015?

O clássico Wasteland, de 1988, representava um mundo perto do Séc. XX devastado por uma guerra nuclear despoletada e que arrasou as fundações da Humanidade tal como as conhecemos no dia de hoje.

O que há de curioso com as histórias alternativas é a sua capacidade de se aproximar da história dita real. E o enredo deste Wasteland é o total arraso da estrutura sócio-económica da sociedade, o que extrapolando nos traz para as nossas recentes governações. Há algo do sistema de Terra Queimada que vamos assistindo em cada corte nas pensões, cada retirada de direitos de quem mais precisa e uma escavação de um abismo social cada vez mais vincado que se assemelha a uma beligerância nuclear psicológico, que vai terraplanando a fundação de Portugal. E se após a tempestade surge a bonança, acredito que uma nova ordem possa emergir do deserto político em que vivemos. Sendo uma hipotética observação de Brian Fargo a Portugal (ou ao panorama global como um todo), a realidade é que este Wasteland 2 surge em linha de continuidade com o a distopia criada no seu antecessor.

Para quem não conhece o clássico Wasteland, basta dizer que sem ele, ninguém teria jogado Fallout. O universo pós-apocalíptico iniciado com o jogo de Brian Fargo teve como um dos “sucessores espirituais” o primeiro Fallout, que acabou por ter mais notoriedade e sucesso que o seu próprio “pai”.

Tivemos acesso ao jogo que se encontra em Early Access no Steam pelas mãos da companhia que a criou, a inXile Entertainment. Sendo um dos casos de maior sucesso do Kickstarter (quase 3M$ arrecadados  aos 900k pedidos), Wasteland 2 está num fase perfeitamente jogável e a demonstrar todas as potencialidades do que aí vem.  Para além da enorme qualidade de escrita a que Brian Fargo nos habituou (ao qual se juntou recentemente o veterano  Colin McComb (de Planescape: Torment)) vamos percebendo desde o primeiro minuto  que a densidade do enredo, os diálogos bem-construídos e a circunscrição de uma história iniciada no jogo de 1988, apresentam um nível exímio.

Wasteland 2_2

O meu nome é Norris. Manuel Joaquim Norris.

 

O setting mantém aquela distopia reconhecível de Mad Max (e claro) do objecto mais mainstream que existe sobre a mesma ambiência: a série Fallout. Continuando o enredo do primeiro jogo, somos um membro dos Desert Rangers, os herdeiros da manutenção da ordem de estruturas defuntas como os Texas e Arizona Rangers, e que patrulhamos o terreno de jogo em missões (quase) suicidas, a tentar proteger os sobreviventes das “matilhas” de salteadores.

Para os fãs de Tactical-RPGs, Wasteland 2 não poderia ser mais desafiante. A gestão que fazemos da nossa party é tão meticulosa que nos leva ao extremo de termos de efectuar uma micro-gestão de cada um dos membros e do seu inventário. Os itens e consumíveis que vamos encontrando ficam pertença do personagem a quem o atribuímos, podendo acontecer a meio de um combate um personagem encontrar uma arma para a qual não dispõe de munição, mas que outro personagem detém. Visto não haver inventário partilhado, teremos de efectuar essa micro-gestão atempadamente e apenas com os personagens próximos de si. A possibilidade dos diversos personagens utilizarem partes do cenário como cover é um dado adquirido ao género, mas a promessa da inXile para o produto final é a possibilidade desses objectos espalhados pelo cenário que servem de cobertura, poderem ser destruídos para provocar vulnerabilidade aos combatentes. Se assim for, não só a companhia estará a dar a demonstrar uma extrema ambição, mas tamgém a demonstração de que o sucesso estrondoso da sua campanha de Kickstarter se pode materializar em “passos em frente” na construção do jogo.

Wasteland 2_1

Se está calor aqui imagina em Beja…

 

O problema desta micro-gestão é ainda a funcionalidade do próprio GUI. Visto estarmos ainda na versão Early Access, acreditamos que todo o interface seja revisto, porque neste momento ainda se encontra um pouco rígido e não tão facilitador desta micro-gestão como deveria.

Visto o nossos personagem (e os restantes da party) serem membros da força para-militar denominada de Desert Rangers, o seu level up tem então a forma de promoção de patente nessa Força Armada. É um contacto enviada pelas ondas da rádio que nos põe em contacto com o nosso superior hierárquico que nos vai informando da nossa “promoção” assim como de outros aspectos das nossas missões.

A história está extremamente bem-construída e densa o suficiente para permitir diversas imersões à mesma. O jogador mais apressado e menos interessado pode ir lendo o log (que se apresenta em Wasteland 2 como uma espécie de Fax em constante actualização), assim como permite ao jogador com maior necessidade de hiper-contextualização de aproveitar a complexidade da história e das interacções inter-personagens que o jogo apresenta. Do ponto de vista de enredo, existe uma forte ligação com o primeiro jogo, em que algumas missões vão estar interligadas com ela, e em que revisitaremos personagens, localizações, e claro, as famosas torradeiras, onde podem estar guardados equipamentos surpreendentes.

Não estivéssemos nós num panorama desértico, com uma estrutura social em escombros, o que facilmente nos indica o porquê da água ser o elemento mais importante que podemos possuir, e também a “moeda” ou a “medida” que indica o quanto podemos caminhar pelo mapa. Ou seja, o jogo vai-nos indicando que para ir do ponto A ao B gastaremos x dias e y quantidade de água de um total de z que trouxemos do último abastecimento. Esta gestão dos nossos movimentos pelo mapa (ultrapassar zonas montanhosas consome maior volume de água aos personagens) demonstra o quanto Fargo levou a sério, e complexificou um jogo (e um género) que teve nos últimos tempos um retorno à ribalta pelas mãos de Xcom.

Wasteland 2_3

Há quanto tempo não vinha ao Hospital de Sta. Maria.

 

Tem porém um senão: o seu preço. Para além do tremendo sucesso da campanha de Kickstarter, e da ambição da inXile em fazer uma Tactical RPG denso e complexo, tanto no enredo como na jogabilidade e possibilidades tácticas e estratégicas, o valor actual no Steam (44,99€) parece um pouco elevado para o jogo em questão e poderá inclusivamente afastar alguns potenciais jogadores por esse factor. Não querendo com isto dizer que não seja um valor justo para o que o jogo oferece, mas prende-se também o facto de que se trata de um reanimar de um franchise que não tem expressão para novos jogadores, e que não os captará se o preço for relativamente proibitivo.

Wasteland 2 não só se apresenta como uma das grande promessas do género, como é dos poucos Early Access a que tivemos acesso (passando o pleonasmo) que já se apresenta com uma robustez invejável a muitos jogos já lançados. Apresenta também um desafio que decerto agradará aos mais acérrimos fãs do género, que os mergulhará na narrativa de boa qualidade (tal como expectável, tendo em conta a densidade do seu antecessor).