A arte de roubar

Thief poderá ser considerado um remake dos originais da série, desde Dark Project a Deadly Shadow. A Square Enix não alterou muito as bases fulcrais da série e reteve a pura experiência stealth que perdurou nos últimos 16 anos desde o primeiro título. Parte integrante da jogabilidade sempre foi o uso de sons ou ruídos que alertam para o que se move, mas também para dar conta do barulho que possamos fazer e assim, por sua vez, alertar os guardas que patrulham a área circundante. Uma das primeiras preocupações em Thief é andar silencioso não só para não acordar o guarda adormecido, como também para não assustar os pássaros ou os cães que se encontram nas gaiolas.

Nunca num jogo me senti a roubar tanto. Desde uma caneta de prata, ao copo ou candelabro de ouro, uma pintura ou documentos. Tudo o que estiver à mão, roubamos. E tudo o que não estiver à mão, fazemos por alcançar, nem que isso signifique dar com a maçaneta na nuca de um civil. O modus operandi é simples: se tiver valor não importa o que é necessário para roubar, por mínimo que seja valioso e aumente o volume do saco de moedas.

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Tenho algo no olho.

 

O escuro é o melhor amigo de Garrett, o protagonista, também conhecido como Master Thief. Garrett é um homem solitário, cleptomaníaco, que faz do cimo da torre de relógio da cidade a sua casa. E é dotado de habilidades específicas que o transformam naquilo que é e que melhor sabe fazer: ser um ladrão sobredotado e cheio de estratagemas para esconder-se nas sombras. Tem uma postura ignominiosa mas ao mesmo tempo tem o seu lado de coração de ouro, pronto a ajudar quem precisa e a salvar a cidade de uma catástrofe. Nunca se vê como um herói, mas acaba por sê-lo. Não se demonstra um bastardo ou um degenerado, como se poderia esperar que fosse, porque Garrett costuma fazer boas acções independentemente da vida ilegítima que leva.

A cidade está coberta por um manto negro, uma nuvem cinzenta gigantesca que não permite a passagem de um único raio de sol. O ar está infectado pela melancolia, transmitindo apenas tristeza, sem qualquer riso ou simples sorrisos das bocas dos transeuntes. Apenas vagueiam pelas ruas iluminadas com tochas e lâmpadas, e de velas fáceis de apagar através do pavio para que as áreas obscuras se somam no trajecto. É uma cidade que está no meio de um tumulto onde a opressão reina através da guarda de um barão, e Garrett vê-se envolvido entre o povo e a tirania deste barão, uma figura maçónica, onde a revolução é inevitável.

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Dlim Dlaum

 

No centro de toda a cidade claustrofóbica, há momentos de brilhantismo quanto à forma como Garrett penetra sorrateiramente pelas casas e mansões, mas pouco vai além de alguns mais detalhados ensejos. É uma cidade imaginativa victoriana, com um vestígio de steampunk, mas ao mesmo tempo bastante confusa. Pelos acessos a determinadas áreas, com becos sem saída e um hub difícil de entender. Chega ao ponto de ser necessário conhecer a cidade como a palma da mão para conseguir alcançar determinadas áreas sem a ajuda do insatisfatório mapa.

O cenário principal do jogo é focado nos telhados da cidade, onde Garrett vagueia para evitar a guarda do Barão. Há becos sem saída e ruas manhosas mal iluminadas, que provavelmente escondem uma porta fechada pronta para abrir com lockpick, e há janelas para abrir com a ajuda de um ferro. Janelas que tanto podem ser entradas para casas com valores para roubar ou podem ser separações de mapas. As ruas complementam-se com lanternas a piscar, ratos, mendigos desnutridos, atalhos, becos, áreas secretas, vendedores ambulantes que fazem negócios com Garrett ou lhe fornecem missões. Mas no meio disto tudo não se pode dizer que a cidade tem “muita vida”. Antes pelo contrário, é uma cidade que parece estar em falta de mais intervenientes, sejam NPCs ou não.

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Noite dura…

 

Thief ganharia vantagem se tivesse uma mapa de mundo aberto. Não que todos os jogos ganhem vantagem por isso, mas aqui sente-se a falta disso e teria beneficiado bastante. Isto prende-se pelo facto de haver incentivo em explorar o ambiente e este estar baseado em hub. E maior parte das vezes sente-se esta prisão pelo excesso de becos sem saída e pelo mapa ser confuso (não que esteja mal organizado). Quando se está a nível do solo, há mais tendência em ser um ladrão furtivo devido a estar mais em contacto com os guardas. Já pelos civis, é como se não existíssemos ou não se importassem com nossa presença. Garrett está dependente das sombras e vai usar o seu arco e flecha para variadas situações: flechas com água para apagar tochas, flechas para fazer ruído e atrair guardas, flechas para activar mecanismos, entre outros.

A Mecânica de stealth é o ponto forte de Thief e chegam a ser brilhantes, ao contrário das lutas corpo a corpo onde é usado apenas um blackjack. O sistema de luz e sombra funcionam na perfeição e chega a ser bastante intuitivo. Mas mesmo que as sombras sejam o melhor amigo de Garrett, podem às vezes não ser o suficiente para deixar de alertar um guarda da presença de Garrett, caso o guarda estiver a passar na proximidade ou já esteja alertado da presença de um intruso e esteja à procura deste pelas esquinas. É tempo de usar outras sombras e escapar ou dar numa retirada. Porque fazer frente aos guardas poderá significar uma morte certa, e isso incentiva o jogador a optar essencialmente por uma postura sempre stealth e evitar o combate tanto quanto possível. O problema de andar pelas sombras é que nem sempre percebemos se um guarda consegue reparar se estamos presentes na sombra, mas em geral o sistema é bastante credível. Por outro lado, a ineficácia de lutar contra os guardas e não conseguir um ponto de escapatória (também pelos becos sem saída) é bastante irritante porque acaba quase sempre no mesmo: na morte do ladrão. É caso para dizer “agarrem que é ladrão!”, e este é constantemente agarrado.

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Desculpe, tem um minuto para falar sobre o senhor Jesus?

 

Em relação à narrativa e principalmente pela quest principal, nada de especial há a apontar. Por mais que os ambientes se modifiquem, está sempre presente a tristeza, a melancolia, o medo. Existe uma natureza conflituosa que se desvanece entre elementos sobrenaturais e perturbações mentais. O que temos presente é maioritariamente um conto sobrenatural do que uma história de um robin dos bosques que rouba os mais ricos para satisfazer os mais pobres e a si próprio. Thief seria melhor com ambientes mais diversificados e uma fresca direcção de arte, porque a repetição prevalece, exceptuando casos como um bordel ou um hospício que nos fazem esquecer um pouco a cidade claustrofóbica. Mesmo que tudo pareça brilhante à primeira vista, acaba por sofrer pelas repetições.

O melhor: estética forte; missões secundárias; excelente mecânica stealth.

O Pior: Repetição de ambientes ou a falta de ambientes diversificados; combate corpo a corpo, narrativa superficial.

Se olharmos para o quadro em geral, temos um ambiente de cortar a respiração, mas à medida que exploramos a cidade, sentimo-nos num mar de repetição. Thief ficou com as bases da série quase inalteráveis, pela sua componente stealth, mas nada trouxe de renovado que pudesse glorificar este remake. A estória principal está pregada com o sobrenatural e afasta-se do que esperaríamos de Garrett: um robin hood dos mais desafortunados. Graficamente é o que se espera para a nova geração, com estranheza, mas teria sido mais soberbo com diversificação de ambientes e mais embrenho pela personagem de Garrett. Contudo, é um jogo a ter em conta para fãs de stealth e permite momentos épicos na arte de roubar.

Versão testada: PS4. Também para Xbox One, Xbox 360, PS3 e PC.