Dracula May Cry de Desinspiração

Castlevania é um substantivo que consegue eriçar os cabelos da nuca a qualquer jogador que tenha tido contacto com uma NES na sua infância/adolescência, ou a alguém que não tenha estado em isolamento profundo com Tom Hanks e a bola Wilson numa ilha do Oceano Pacífico. Sendo sinónimo de extrema dificuldade (quase sádica até, quando pegamos nalgumas das iterações em 8 bits) e de longevidade (quase 40 títulos foram lançados desde 1986) mas infelizmente sem ser sempre equivalência de qualidade.

Desde os primórdios que acompanhamos a família Belmont, os paladinos que geração após geração percorrem os corredores marmóreos do castelo de Dracula, o temido vampiro que aterroriza a Transilvânia com uma sede de morte comparável apenas à sua própria crueldade. A série Lords of Shadow, iniciada em 2010, vem trazer um novo ponto de vista à série de Castlevania, num mundo paralelo em que Dracula não só é o inimigo mortal da família Belmont, como é na realidade Gabriel Belmont, o grande herói da Brotherhood of Light na luta contra o mal primordial: Satan. Numa tragédia em que que os laços de sangue são inferiores à senda de vingança: LoS acabou por criar uma narrativa interessante e uma abordagem diferente que agradou a fãs da série e conquistou novos jogadores. O grande problema da criação de expectativas é percebermos o quão facilmente elas podem ser logradas, facto de que as constantes declarações de Dave Cox da Konami, e de Enric Álvarez, o director do estúdio MercurySteam, de que este Castlevania teria um enredo que marcaria a história dos videojogos, colocou uma meta alta sobre a qualidade de escrita e de envolvimento narrativo do próprio jogo.

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Já não és o Dracula, que eu conhecia!

 

Não podia deixar de iniciar as considerações sobre o jogo com os 2 factores que me provocaram um maior sentimento de desilusão em todo o jogo. A começar pela narrativa: desde a sua construção ao seu conteúdo. Para que percebamos o fio condutor de C:LoS2, temos de entender que bem espremidas as reflexões sobre todo a estória, facilmente chegamos à conclusão de que estamos perante um não-enredo. Com um passe de prestidigitador, os autores iludem-nos com algo que se assemelha a uma narrativa tecida, mas que é apenas uma manta de retalhos de cenas esporádicas que vão sendo alinhavadas sem grande solidez. Tudo isto com uma inconsciente noção de ritmo que vai entrecortando o dinamismo narrativo com sequências cinemáticas e momentos de diálogo inconsequentes que nos vão quebrando a já pouca atenção ao inócuo enredo. Há que evidenciar que em qualquer meio cultural, o facto de que actores brilhantes como Robert Carlyle, Patrick Stewart e Richard Madden emprestarem a sua voz a personagens não é uma garantia irrefutável da subida de qualidade dos diálogos. É verdade que atenuam a sua insipidez, mas de forma alguma o tornam aceitável, para o prometido. O segundo factor de perfeita desilusão é a transposição de grande parte do jogo para o presente. É um dado adquirido que Castlevania vive de um ambiente gótico, em que os concept artists da Konami sempre conseguiram demonstrar a magnificência melancólica do castelo de Dracul, o que se tornou ainda mais evidente na geração anterior com Lords of Shadow. A transposição para um setting contemporânea falha por não atingir a ponte conceptual necessária de forma a mitigar o choque entre o ambiente gótico e o ambiente contemporâneo. Porque o resultado obtido, seja do ponto de vista conceptual, seja do ponto de vista emotivo, aproxima-se em excesso da contemporaneidade “deslocada” de Devil May Cry, do que daquela que deveria ser a sua verdadeira inspiração: o negrume urbano-gótico que o realizador Alex Proyas impôs a “The Crow” e “Dark City”. Intrigas de farmacêuticas, exoesqueletos cibernéticos, sensores de retina não poderiam estar mais longe do espectro ideal do imaginário de Castlevania.

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Digam-me os vossos nomes e moradas para eu vos mandar um presente no Natal.

 

Ao contrário do que é publicitado, C:LoS2 não vive em mundo aberto. A excessiva circunscrição do jogo chega até a ser extenuante, sempre a conduzir-nos pelos apertados corredores (literais) dos quais pouco ou nada podemos fazer para fugir. A exploração é quase inexistente, o que é facilmente justificável pelo reduzido leque de habilidades que vamos aprendendo ao longo da história. É o momento amnésico em que o próprio jogo se esquece do porquê de ser metade da força de inspiração do género metroidvania. Ficando muito distante das suas próprias origens  e dos jogos base que lhe servem de inspiração para o combate (DMC e God of War). os puzzles são reduzidos e limitados à atrição da tentativa-erro, sendo que são neles que C:LoS2 revela as suas verdadeiras cores de inspiração: Legacy of Kain, em especial, Blood Omen 2. Série essa que apesar de ser textualmente um dos melhores exemplos de construção inter-depedente de uma narrativa complexa e de excelente qualidade, assim como a definição de protagonistas antagónicas situadas na área cinzenta do herói/anti-herói (tudo factores no qual Lords of Shadows 2 falha), é nas mecânicas de poderes e dos puzzles de stealth que o grande sentimento de déja vu se torna mais forte. Porque não só o combate se tornou ilusoriamente complexo, apesar de excessivamente fácil (ao ponto de com mediano engenho ser possível não morrer uma única vez pela barra de vida chegar ao fim), como a introdução de mecânicas de stealth retiram a aura da própria série, e atribuem um novo valor de jogabilidade que não contribui para o produto como um todo, e que parecem inseridos a martelo pelo meio do “enredo”.

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Lady Betty Graffstein?

 

Mas se há um ponto em que o jogo é exímio e que nos consegue fazer “cair o queixo” é no seu visual. Não só pela excelente qualidade técnica com que o jogo foi concebido, mas mais do que tudo pela exímia qualidade criativa dos concepts associados ao jogo. Desde o comum soldado ou demónio, aos bosses, cenários (em especial os do Castelo), itens, estátuas, gárgulas, etc, tudo está executado com um nível de imaginação, detalhe, e espectacularidade que nos deixa atónitos. A própria realização trouxe-me uma dicotomia estranha entre amor/ódio. Se critiquei a falta de fluidez rítmica que se sentia em grande parte do jogo (com especial enfoque às três primeiras horas), também tenho de reconhecer que o impacto de espectacularidade e encadeamento de grande parte das sequências cinemáticas trouxeram o jogo para o espectro cinematográfico (blockbuster, é verdade) mas como de melhor poderíamos ver nos grandes lançamentos de cinema do Verão.

O melhor: o visual: a genialidade dos concepts, a definição do detalhe; a espectacularidade e magnificência com que o jogo se apresenta; a qualidade do voice acting, apesar dos fracos diálogos.

O pior: a falta de fluidez rítmica, e a ausência de um verdadeiro enredo; a excessiva circunscrição; o setting contemporâneo.

Não sendo um mau jogo, Castlevania: Lords of Shadow 2 traz-nos a experiência de um blockbuster: entretem-nos pela espectacularidade, mas pela falta de conteúdo acaba por reduzir esse aproveitamento do objecto à efemeridade do consumo imediato. Mas infelizmente não marcará a memória dos fãs da série ou da comunidade em geral, ficando sempre na sombra da sua prequela e até do jogo intermédio exclusivo da 3DS. Pelas notícias que vão saindo, vamos percebendo que a própria equipa da MercurySteam atribui parte da culpa da insipidez do jogo ao facto de Álvarez ter tido um papel (excessivamente?) preponderante na construção do jogo, ao contrário do seu antecessor que foi seguido de perto por Hideo Kojima. O próprio protagonista, Dracula, não é de forma alguma o personagem que todos esperávamos, e resultou apenas numa criatura amorfa que nada questiona e que vai ao sabor do vento. E quebrando a Quarta Parede olhamos para ele como um fantoche num teatrinho: que vive na ilusão de ter escolha sobre a sua própria vida sem nunca por em causa nenhuma pedra com o qual se cruza.

 Versão testada: PS3. Também disponível para Xbox 360 e PC.