Masmorras em Português
Foi com alguma curiosidade que seguimos o processo que foi desde Quest of Dungeons ser Greenlit no Steam até ao seu lançamento ontem na mesma plataforma. Demonstrámos este interesse muito especialmente pelo humor e boa-disposição que o trailer evidenciava e que mostrava a intenção do jogo em ser uma aproximação diferente aos roguelikes. O segundo ponto de interesse é o facto de que o jogo foi feito por uma espécie de one-man-team, David Amador, que recorreu apenas a ajuda em alguma das partes gráficas do jogo. A realização do jogo acaba por deitar por terra a desmotivação e diletantismo de muitas pessoas que crêem não ser possível fazer nada sem uma equipa multi-disciplinar. A concepção de Quest of Dungeons vem rebater isso e mostrar que não só é possível fazer algo contando com o nosso próprio esforço, dedicação, e claro, talento, como ainda por cima é possível fazê-lo em Portugal.
É verdade que parte da atenção e expectativa que demos ao jogo se deve à sua origem, mas não pelo “portuguesismo” típico que muitas vezes assola alguns media genéricos e/ou a própria comunidade. Esta patologia, quase endémica, tem duas manifestações distintas: o pessimismo/crítica automática, ou seja, desdenhar algo apenas porque é português, sem sequer dar uma hipótese de avaliação, e a outra o optimismo adolescente extremo, também chamado de Justinbieberismo por alguns sociólogos: a capacidade de endeusar um produto apenas porque é português. Uma espécie de Síndrome Selecção Nacional mas aplicada aos restantes meios culturais. Imunes à visão turvada causada pelo “portuguesismo”, a atenção que demos a Quest of Dungeons prende-se tão somente com o facto de que algo desta qualidade, desta boa-disposição foi feito no nosso País, e isso mais do que tudo é um factor de inspiração para todos os aspirantes a game developers portugueses que acham não existir mercado/possibilidades no nosso território.
Toda a aura que compõe o jogo traz-nos um bem-dispor: desde a abertura do próprio jogo, aos diálogos, às exclamações dos personagens o próprio teor que parodia o ambiente genérico da maioria dos roguelikes, acaba por vencer-nos logo à entrada, e a conduzir-nos a uma grande jornada. Temos quatro classes (típicas) à nossa escolha, entre Assassino, Guerreiro, Feiticeiro e Xamã, cada um com formas específicas de explorar dungeons e que nos fará readaptar a nossa forma de o jogar. Em muitos aspectos Quest of Dungeons relembra alguns laivos de jogo de tabuleiro, desde a forma como o movimento por turnos é disfarçado pela sua própria fluidez, até à construção do próprias mapa. O elemento aleatório está presente na auto-construção das masmorras sempre que fazemos um novo jogo, criando uma nova experiência sempre que o iniciamos. E tenho a certeza que o vão facilmente notar porque em Quest of Dungeons vão morrer, e muito! Não existem save-loads, o que significa que a morte (ao contrário do que acontece no Universo Marvel) é para sempre. Morrer é sinónimo de começar o jogo do zero, no primeiro piso. É claro que ainda me indago se o facto de que numa das vezes em que fiz “Novo Jogo” entrei na primeira sala e morri automaticamente com um boss, se foi fruto de um azar na geração do algoritmo de randomicidade, ou se de algum prazer sádico do seu autor, que teve como corolário após a morte do meu personagem (em apenas 4 segundos de jogo) o seguinte epitáfio: “Worst episode ever”.
Quest of Dungeons é desafiante, desde o facto de que a nossa visibilidade em cada sala é reduzida, portanto temos de medir todos os passos, passando pelo aparecimento de bosses, até à gestão do inventário, que tem um espaço limitado. Não é decerto um jogo para os que desistem rápido ou para os impulsivos: foi-me possível terminar o jogo apenas na minha 5a tentativa, mas todos os passos (literalmente) foram dados com todos os cuidados possíveis.
As frases que muitos dos inimigos proferem quando os encontramos são verdadeiros momentos de riso, e é de salutar a auto-consciência que o próprio jogo tem de si mesmo, em que se auto-parodia mantendo o desafio e a dificuldade alta que este dungeon-crawler possui.
Ficou-me apenas uma dúvida: será por saber que o jogo é de produção nacional, que os meus ouvidos identificam algumas das melodias como provenientes da flauta de bambu de Rão Kyao?
O melhor: o humor, o desafio, o preço, a geração aleatória da masmorra e o audiovisual retro.
O pior: a repetição que um roguelike possui pode afastar muitos jogadores.
É com algum prazer que vamos falando cada vez de produção nacional de videojogos, em especial quando o que é apresentado tem a qualidade de estar frente-a-frente com produções indie internacionais, sem a necessidade de se colocar em bicos-de-pés. Quest of Dungeons é um belíssimo e divertidíssimo jogo saído da mente e da manufactura de uma pessoa apenas, David Amador, que soube como torcer um género que pouco tem para inovar, atribuíndo-lhe um tom humorístico que o diversifica dos restantes.
Disponível para iPhone, iPad, PC e Mac. Jogada a versão de PC, através do Steam.