Quando mundos colidem

A cultura pop tem-nos habituado a uma série de crossovers entre personagens de narrativas distintas, reinventando aproximações a mundos que não se deveriam cruzar. Cruzamento é na realidade a palavra-chave neste tipo de abordagens criativas. Se é uma ferramenta narrativa usual em quase todos os meios culturais, é fácil de perceber que são os comics quem mais o utiliza, talvez pela ausência de necessidade de justificar a sobreposição de universos que não existem no mesmo plano, ou na mesma linha canónica. Ainda que o cinema o faça de vez em quando (um pouco centralizado no terror e no sci-fi), nos videojogos os crossovers, regra geral, cingem-se aos fighting games, ou a outros beat’em ups. E percebe-se o porquê: é que a necessidade dos seus autores/argumentistas de manterem a suspensão da descrença no cruzamento de personagens provenientes de realidades não-sobreponíveis é relativamente “facilitado” se mantivermos uma linearidade não-explicativa típica dos videojogos de luta. Os comics usufruem de base da suspensão da descrença inerente ao próprio género, e a aceitação quase imediata dos seus leitores sobre a credibilidade da interligação de universos não-complanares.

Regra geral no cinema, assim como nos videojogos, os crossovers assumem uma dificuldade criativa acrescida, e que representa uma ginástica mental extrema aos seus autores.

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Ou chama-me Zé.

 

Quando temos duas séries que vivem tanto da (e na) sua qualidade narrativa, o seu cruzamento transforma-se numa grande dor-de-cabeça. Primeiro porque o tom distintivo de cada uma das séries é diferente: se Phoenix Wright vive numa montanha-russa non-sense de emoções, Layton percorre o seu caminho com uma aura cavalheiresca de entusiasmada pedagogia. E em segundo vem a questão estética… Se afirmava que a facilidade de aproximação de mundos nos comics é mais simples do que em qualquer outro meio, em muito se deve à não-fixação de um traço, pela diversidade de artistas que mantêm as séries e dessa forma a uniformização visual funciona para manter a coesão do crossover. Esteticamente sempre indiquei (como visto aqui e aqui) aquelas que me parecem ser as grandes definições artísticas de uma e de outra série: por um lado Phoenix Wright com o seu visual incontestavelmente nipónico e com uma capacidade ímpar de concepção de personagens, e por outro Layton com o seu ambiente quasi-britânico passado por um visual mais franco-belga do que japonês.

Mas a questão que se prende desde o anúncio deste crossover, é simples: a união dos personagens é plausível e a sua dinâmica resulta num bom jogo? E com um monossílabo apenas respondemos de forma peremptória: SIM!

Unir dois personagens com tramas/personagens/estéticas/tons tão proeminentes como Layton e Wright só seria possível encontrando um mínimo denominador comum que servisse de elemento aglutinador entre as duas séries, o que poderia à primeira vista ser encontrado tanto com uma narrativa que demonstrasse as áreas de conforto de ambas as séries (Londres de Layton e o Japão de Wright) ou um elemento externo às duas, completamente novo, e que servisse de charneira nesta ligação. Tendo sido esta segunda hipótese a escolhida, e sem efectuar qualquer spoiler, percebemos que o mundo no qual se desenrola a história tem uma ambiência medieval, nos quais ambos os protagonistas e respectivos companheiros se destacam quase instantaneamente.

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Hey! Tu aí! Junta-te a nós!

 

Há uma gigantesca inteligência que as companhias envolvidas demonstraram, e que é apenas perceptível quando lemos com atenção os créditos finais. Apesar de achar que os personagens principais de Professor Layton são geniais e ultra-memoráveis, é apenas em Phoenix Wright que esta genialidade se estende para personagens secundários ou terciários. É-nos possível relembrar a testemunha x do segundo caso do terceiro jogo da série tão vivamente, porque (quase) todos os personagens do mundo de Ace Attorney são tão brilhantemente tecidos que têm uma dimensão por si só. Percebemos rapidamente que na divisão de tarefas entre a Level 5 e a Capcom, que foi a segunda a ter o peso criativo na elaboração dos personagens deste crossover, e a qualidade do elenco reflecte isso mesmo: cada novo personagem exclusivo de Laytonvs Wright vai permanecer na memória de quem o jogou, e a passagem do tempo será a sua maior testemunha.

A outra manobra de elegância estética que criaram foi o convite efectuado ao Estúdio Bones (responsável pelas animações de “ScrappedPrincess”, “Escaflowne” e “Fullmetal Alchemist”) para os interlúdios animados do videojogo e que vão ajudando a alicerçar a história de forma mais coesa, e a manter-nos mais cativados pelo enredo.

Professor Layton vs. Phoenix Wright é um jogo longo, dir-se-ia até que resulta da soma de longevidade dos jogos dos seus protagonistas em separado. O esforço efectuado para que a subdivisão em capítulos não soe excessivamente a uma compartimentação entre fases de investigação com o Layton/fases de tribunal com Wright é notório. A fluidez entre estas partes impede a segmentação do jogo, mas faz-nos compreender estas duas acções distintas como verosímeis e convenhamos: ter o Professor Layton ao nosso lado na barra do tribunal é um sonho antigo de muitos dos jogadores de Ace Attorney.

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Ser padeiro foi o sonho de longa data de Nick Wright!

 

É claro que o único problema de encontrar um mínimo denominador comum é que se têm de fazer alguns compromissos e alguns sacrifícios no tom geral de cada uma das séries, para que a súmula de ambos não pareça um mero pastiche da sua própria individualidade. Ao passarmos as 22-25 horas de toda a narrativa acabamos por sentir falta da extravagância over-the-top de Wright (que parece ligeiramente atenuada para não entrar em conflito com o tom geral da história) e a ausência dos crescendos de emoções que vão ocorrendo ao longo de cada defesa em tribunal. Ainda assim, é nas contribuições de mecânicas trazidas por Phoenix Wright que observamos as maiores inovações: a constante necessidade de contra-argumentação de diversas testemunhas em simultâneo e a inter-contradição entre as mesmas traz-nos um novo sabor a um jogo que aparentava não ter margem para inovar.

Em relação à contribuição de Layton e Luke, o que facilmente percebemos é que já nesta fase (não esquecer que este jogo foi produzido antes de Azran Legacy) os puzzles têm uma abordagem quase exclusivamente de minijogo do que os célebres puzzles numéricos ou aritméticos que pulvilhavam os primeiros jogos ainda na NDS.

O melhor: os protagonistas e a fluidez do crossover; as sequências de animação; o voice acting; a história e a direcção artística.

O pior: o ritmo narrativo é ligeiramente menos apelativo do que qualquer uma das séries em separado.

Professor Layton vs. Phoenix Wright é um grande jogo, mas fica uns pequenos passos aquem da genialidade de Ace Attorney – Dual Destinies e mesmo de Azran Legacy. Serviu na perfeição para preparar a adaptação da série Ace Attorney a um ambiente 3D e soube com toda a mestria alinhavar um enredo fluído que tornasse coesa a coexistência dos dois protagonistas. Apesar da excelente qualidade que podemos encontrar no jogo, percebemos rapidamente que pelo bem-maior da unificação do jogo, houve algo que “se perdeu na tradução”, ou seja, teve de ocorrer uma ligeira normalização de ambos os jogos para que ambas as ambiências se interligassem. Perguntaram-me se achava que este era um jogo de Wright que tem Layton como convidado, ou o inverso e de início achei que a balança estava equilibrada e que era um jogo com 2 protagonistas, mas tendo terminado a história percebi que houve um enfoque ligeiramente superior em Phoenix Wright do que em Professor Layton. E como fã das duas séries, admito que poder contar com uma equipa de quatro personagens soberbos como protagonistas deste jogo é um sonho tornado realidade. E se ainda não tive tempo de ter saudades de Layton, Luke ou Phoenix, foi na realidade a possibilidade de jogar novamente com a Maya Fey que me demarcou um sorriso na cara. Isso e após tantas horas ter percebido que nenhuma das duas empresas defraudou os seus fãs, mas antes souberam criar um bom cruzamento que será para sempre lembrado como um dos crossovers mais marcantes dos videojogos.

Professor Layton vs. Phoenix Wright é um exclusivo 3DS