O reconhecimento da raiva contida de um jogador online

Diferentes situações geram diferentes respostas em diferentes pessoas. E essa é a complexidade humana que vai tendo historicamente as suas manifestações mais positivas e mais negativas. No nosso estilo de vida contemporâneo a competitividade e as pressões sócio-económicas acabam por tornar-nos pequenas bombas-relógio a tiquetaquear pelo meio da multidão. São essas as razões pelas quais vamos vendo, e lendo (muito graças às redes sociais) uma série de atitudes impulsivas de seres humanos que de um segundo para outro tomam uma atitude impensável, e que comummente termina em tragédia.

“Road rage” o termo criado pelos norte-americanos para descrever as alterações psíquicas e comportamentais que alguns condutores demonstram ao estarem ao volante, e que muitas vezes não corresponde à vivência (dita) normal do condutor. Pessoas pacíficas transformam-se em pequenos monstros descontrolados que põem a sua vida, e a dos que o rodeiam em perigo, por não controlarem as suas emoções.

mad driver

 

Numa escala diferente, os videojogos, em especial os jogos online, são um grande escape de emoções, stress e raiva contidos e reprimidos. Apesar de já (infelizmente) terem ocorrido situações que terminaram em fatalidade, e que estão ligadas à incapacidade de alguns jogadores de manterem a pressão competitiva virtual de se manifestar para além do jogo, a generalidade das pessoas mantém esses comportamentos separados da sua vida “real”.

Sou jogador de League of Legends há já 2 anos, como afirmei publicamente. Jogo-o num espírito quase ritualístico em que quase todas as noites me junto com a minha mulher os meus melhores amigos e fazemos umas partidas daquele que é um dos maiores fenómenos online de sempre. Não sou uma pessoa agressiva, de todo. Não sou alguém que se regozija com o mal dos outros ou que extravasa as suas frustrações em cima de quem me está próximo. Mas uma mudança começou a ocorrer em mim 4 a 5 meses depois de ter começado a jogar LoL: a pseudo-seriedade com que eu e os meus começámos a encarar o jogo foi crescendo com o conhecimento que íamos desenvolvendo do mesmo, trouxe consigo a faceta mais negativa da minha extrema competitividade e individualidade e que raramente vi ao de cima – a fúria cega. E para que percebam o quão estranho esta alteração em mim foi notória, basta que percebam que possuo uma personalidade e uma forma de vivência de um extremo controlo-emocional e de um calculismo relacional, onde nada é dito ou feito com impulsividade, mas sempre com uma reflexão quasi-maquiavélica. Ver-me, durante e depois de jogos que correm mal, a transformar-me em algo que não corresponde (na íntegra) ao que eu sou, começou progressivamente a assustar-me.

Se para nós, que estamos protegidos por um ecrã, nos é praticamente inócuo ofender ou humilhar um jogador aleatório que nos fez perder um jogo, ou que o abandonou deixando-nos com menos um elemento, porque é que esquecemos que para lá do ecrã do outro existe um ser humano que pode estar a ser magoado pelas nossas palavras? Porque é que eu, que prezo o respeito pelos outros acima de tudo e que nunca seria capaz de ofender ou gritar com alguém o conseguia fazer de ânimo-leve a um total estranho que se cruzou comigo num jogo online? Ou pior, gritar no Skype com a minha mulher ou os meus melhores amigos por um erro que (na minha visão enraivecida) cometeram? Porque é que a diversão de jogar foi suplantada pela raiva e porque é que esqueci que aquelas personagens que ali estão têm um ser humano, tal como eu, a controlá-las, com sentimentos que podem estar a ser feridos pelo que eu digo?

Que somos por detrás do ecrã 4

 

Tal qual como todos problemas que possamos desenvolver, reconhecer a sua existência é o primeiro dos passos para o tentar ultrapassar. O primeiro despertar que tive para o problema foi com um jogador que disse no chat do LoL: “desculpem, tenho de sair, o meu bebé está com febre”. O meu instinto primário foi “gritar” textualmente com aquele jogador mas estaquei essa intenção. Daí a 3 meses eu também seria pai, e tinha já a certeza que o bem-estar do meu filho se sobrepunha a todos os videojogos que pudessem existir. E posto isso senti parte da minha raiva a desaparecer, e a não mostrar a sua existência na eventual derrota que tive. Aquele jogador é um ser humano, um pai ou uma mãe que provavelmente reservou alguns minutos para se divertir mas que foi impedido de o fazer (acredito eu) pelo seu bem mais preciso: o seu bebé.

A segunda questão prende-se com a diversão em si. Quando comecei a jogar LoL diariamente com os meus amigos e a minha mulher, fazíamo-lo para nos divertirmos, porque era o mais próximo que este grupo de geeks trintões têm de um desporto colectivo. Mas a diversão: esse puro gozo que conseguíamos obter de estar a jogar e a ser sovados por jogadores melhores do que nós foi lentamente senso substituído pela raiva e pelo apontar de dedos, especialmente da minha parte.

A terceira e última prende-se de todo com o nascimento do meu filho. Não que o cliché das alterações conduzidas pela paternidade sejam a resposta, mas sim algo mais elementar. Eu estive a conduzir a minha raiva e a minha agressividade online para com as pessoas que me são mais próximas: a minha mulher e os meus melhores amigos, que são não só as pessoas com quem falo todos os dias, mas também aqueles em quem mais confio e mais respeito. E que usavam aquelas horas à noite para, perante a impossibilidade de estarmos juntos fisicamente todos os dias, de termos um elemento aglutinador que nos compelia a falarmos descomprometidos no Skype após o jantar. Depois de um dia de trabalho umas horas de diversão com os amigos é muitas vezes o que qualquer pessoa desejaria. Mas eu consegui, ao longo de meses, destruir esse ambiente e, por estupidez, magoar as pessoas de quem mais gosto. Magoar alguém é repreensível e magoar as pessoas de quem gostamos é incompreensível. E fazê-lo por um mísero jogo é mais do que tudo, ridículo.

Felizmente que caí em mim e fui percebendo que era possível tirar maior proveito daqueles jogos ao permitir que o nosso natural bom ambiente fosse contaminado para dentro do jogo. E essa contaminação de encarar o jogo pela diversão impediu-me, a curto prazo, de ofender outros jogadores, que tal como eu, têm sentimentos, família e histórias de vida mais ou menos complicadas e que poderão estar a ver o LoL como uma momento de abstracção do seu quotidiano.

Que direito tinha eu de roubar com a minha agressividade esses momentos a qualquer ser humano?

Acredito que cada vez mais jogadores vão tendo a percepção do seu comportamento para com os outros e o facto de que eu não estou sozinho nesta viagem atribulada pela montanha-russa do flaming e do internet raging. Este vídeo di-lo melhor que eu.