Quando algo é muito mais do que aparenta

É muito frequente que ao falarmos de um certo objecto cultural a alguém com que tenhamos contacto, que o tentemos compartimentar dentro de um género. Quer seja na música (e aqui enquanto metalhead desafio-vos a tentarem enquadrar algumas bandas dentro de géneros e sub-géneros do metal), na literatura (a dificuldade que é “rotular” uma obra do Boris Vian…) e o cinema (em que surgem frases como “é um thriller com laivos de comédia negra e incidências do Zemeckis do final dos anos 80). E nos videojogos? Cada vez mais a coisa complica-se. Primeiro porque o modelo mais primário dos RPGs (os pontos de experiência permitem evoluir personagens e enveredar por caminhos personalizáveis) tornou-se mais um sufixo de rótulo do que um género por si só. Basta que percebamos em algum momento já todos ouvimos algumas das seguintes expressões: Puzzle RPG, Action RPG, Platformer RPG, FPS RPG, ou algumas extrapoladas como Fighting Driving Third Person Action RPG, Dating First Person Shooter Simulator Turn-Based RPG ou Visual Adventure Game Novel Sandbox Platformer J-RPG. Parece estranho? A realidade é que é essa a estranheza do marketing de alguns jogos que tentam agradar a diversos segmentos do mercado e do público através de descrições mal-amanhadas e marteladas em jogos que mais do que tudo, subsistem sem qualquer rótulo.

Mas se muitos destes cruzamentos estranhos que vão surgindo são filhos-bastardos de estratégias de comunicação dos estúdios que os desenvolvem, também existem os exemplos em que é a própria criatividade e a essência inventiva dos seus criadores que levam alguns géneros para caminhos diferentes. E se os exemplos são ínfimos, desde a forma como Metroid e Clastlevania contribuíram para a criação de um subgénero denominado metroidvania (morfema óbvio dos títulos dos dois jogos) até à solidificação de géneros como os Tactical-RPG, que misturam elementos de jogos de tabuleiro com role-play.

Poder-se-ia dizer que na última década existem em todos os anos um ou dois géneros que surgem e que se solidificam como tal, e que mostram a extrema ramificação criativa que é (e deveria obrigatoriamente ser intrínseca a)o mercado dos videojogos. E quando afirmamos género, entendemo-lo como uma manifestação com características mecânico-conceptuais específicas que a balizam dentro de uma definição genérica. E destes “novos” géneros é possível que um dos que mais me tem chamado à atenção são os tower defenses, ou seja, para quem não conhece, o tipo de jogos que nos obriga a pensar uma série de defesas (fixas ou móveis, mediante o jogo) para conseguirmos sobreviver às investidas das usuais hordas de inimigos. Em extremo, tower defenses são simuladores de cercos, em que nós desempenhamos o papel dos cercados que têm de gerir os seus recursos e a construção e exposição territorial das suas defesas. Não sendo o primeiro jogo do género, mas o primeiro que joguei, Plants vs. Zombies da PopCap soube desde cedo demarcar-se num género que parecia fadado à circunscrição bélica medieval ou de high-fantasy. Defender o nosso quintal de um apocalipse-zombie com a utilização de uma flora diversa e altamente criativa e memorável parece-nos um belíssimo conceito para um género que teve como um dos seus bastiões e pedras basilares um jogo com um visual tão simples – Desktop Tower Defense – e que era proporcional à criatividade do nome: todos sabemos que a fórmula da genialidade em criar uma nomenclatura responde à equação palavra x + género por extenso = sucesso garantido.

Quando jogamos umas largas dezenas de jogos por ano, seja para analisar, seja porque os comprámos num bundle e nunca tínhamos ouvido falar dele, a melhor sensação que podemos ter é a de jogar um bom jogo. Especialmente quando eles são uma perfeita surpresa, e surgem do quase-anonimato para nos darem diversas horas de diversão. Afinal, mesmo por obrigação, quem é que gosta de jogar jogos maus?

E foi neste sentimento de total descoberta que no passado mês de Abril joguei 2 tower defenses sem pouco ou nada ter ouvido falar deles. Apesar de em ambos os casos se notar que foram concebidos para uma lógica mobile, acabaram por ser belíssimas descobertas na loja do Steam.

Bardbarian

Tower defense a01

Tower defense a02

 

Com um conceito humorístico logo à partida, Bardbarian põe-nos a controlar Brad, um guerreiro reformado que decide mudar de profissão e tornar-se…um bardo (por esta não esperavam?!), envergando o seu velho machado como um alaúde, cujos solos (que soam a guitarra eléctrica) invocam unidades para o auxiliar e para conferir buffs e debuffs. Mas o que realmente o distingue, para além do bom humor e da desconcentração de defendermos a nossa pequena povoação, é o facto de que Bardbarian é uma amálgama de tower defense, shooter e RPG. Bem, nos dias de hoje tudo é RPG, até os driving games, portanto vamos assumir esta componente como um dado adquirido e colocá-la de fora da equação. O nosso personagem não ataca, e serve apenas como ponta-de-lança do pequeno exército (composto até um máximo de 6 elementos) e de guiá-los pelo campo de batalha para que estes disparem projécteis às hordas demoníacos. Pelo caminho temos de nos ir desviando de cada disparo inimigo ao bom estilo dos shooters clássicos, enquanto recolhemos moedas que vão sendo deixadas pelas cadáveres dos nossos rivais. A componente tower defense resume-se ao tipo de unidades que escolhemos para nos seguirem (literalmente) na defesa da nossa aldeia, e nos upgrades que lhes instalamos. Bardbarian acaba por ser mais dinâmico que o TD típico, visto que controlamos o nosso personagem e os seus seguidores pelo ecrã, disfarçando, e muito, a componente defensiva com mecânicas de shooter.

 

Prime World: Defenders

Tower defense 01

Tower defense 02

 

Admito que a decisão de o jogar foi mais um caso de “julgar um livro pela capa” do que propriamente possuir alguma informação sobre o jogo! Com um visual altamente cuidado e trazendo um aparentemente típico tower defense com um setting de fantasia, Prime World: Defenders conseguiu com uma adição simples, e altamente eficaz, manter-me agarrado ao longo de umas 50 e poucas horas. E esta adição é tão somente uma componente de cartas coleccionáveis que são descobertas (regra geral) com a aquisição de carteirinhas. Estas carteirinhas são compráveis com cristais que podemos ir encontrando aleatoriamente como prémios de final de missão. O factor que nos leva a perceber o quanto o jogo foi pensado de base para o mercado mobile, prende-se com o facto de que esses cristais podem ser adquiridos como in-app purchase, opção essa inexistente na versão PC. Por essa razão esta versão obriga a um grind de saquetas para obtermos as melhores torres e melhores magias, o que demonstra que este extremismo da facturação in-app do mercado mobile tem o seu exponencial máximo quando percebemos que temos de possuir 3 cartas iguais para que as fundamos no potencial máximo.

E que lhes podemos fundir outro tipo de cartas para lhes elevar o nível.

E que existem cartas de raridades e poder diferentes.

E que precisamos de muitas, muitas horas de jogo (ou sorte) para conseguir reunir as cartas suficientes para evoluir ao máximo as melhores cartas do jogo.

E que só essas têm poder suficiente para nos permitir terminar o jogo.

E que na versão de PC 35 das 50 horas que temos de jogo são a conseguir recursos suficientes para comprar saquetas.

E porque isto nos enervou (ao mesmo tempo que nos viciou) que nos obrigou a enunciar uma série de frases, separadas por parágrafos, que começam somente e aliteradamente com “e que”.

Ainda que alguns jogadores desistam ao perceberem o nível de investimento que necessitam para evoluir o seu nível (e habilidades passivas associadas) e o nível das cartas (conscientemente deixámos de parte que Prime World: Defenders é parte tower defense, parte Collecting Card Game e parte RPG (surpresa?)), este jogo acaba por demonstrar-se um grande desafio à medida que avançamos no jogo, em que as hordas de inimigos se demonstram cada vez mais próximas da invencibilidade. E percebendo que na versão mobile esta dificuldade é justificada apenas como criação da obrigatoriedade de incutir as in-apps purchases aos seus utilizadores. O que significa que terminá-lo na versão PC é uma tarefa quase heróica. E vale bem a pena!