Corações de aguarela

A Ubisoft tornou-se ao longo dos últimos anos uma das maiores forças de produção de projectos gigantescos, com orçamentos de milhões, mas que nem sempre a sua megalomania resulta em resultados conceptualmente superiores ao investimento feito à superfície.

Ver imagens de Child of Light pela primeira vez manteve-me a milhas de distância de imaginar que o jogo poderia pertencer à gigante francesa. Não porque duvidasse da sua qualidade ou da sua capacidade de se afastar de mundos próximos do espírito blockbuster (bastaria para isso lembrar-me da genialidade conseguida por Rayman) mas porque mais facilmente associaria a estética do jogo a um estúdio independente nipónico.

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Uma página de um livro? Não. Apenas a genialidade artística de Child of Light.

 

Até hoje não consigo perceber se o meu apego inicial a Child of Light se deve a uma superficialidade visual que não me é natural, ou se a uma anormal sensibilidade emocional e profissional decorrente da minha profissão de Ilustrador e Professor de Ilustração. É possível que a atenção dada ao jogo desde a primeira vez que o vi se devesse à surpresa de perceber que aquelas imagens que estava a ver não eram um animatic altamente complexo, mas sim o jogo final.

Todo o ambiente que encontramos torna-o o melhor exemplo que tivemos até hoje de transformar um livro infantil num videojogo, e rapidamente submergimos no reino de Lemuria, transportados para as páginas de uma das histórias que folheávamos enquanto éramos pequenos. A qualidade visual demonstra o melhor cruzamento possível entre o trabalho de um ilustrador, o respeito pelas suas criações, e a forma como se pode assumir como base sólida de todo o videojogo. Numa altura em que possivelmente a maioria dos estúdios enveredaria por um caminho mais tradicional de execução de um RPG por turnos, como personagens e cenários em construção tridimensional, esta pequena equipa da Ubisoft decide envolver todo o jogo, desde animações, diálogos, cenários, personagens e itens, com ilustrações que denotam cada pincelada digital dos seus autores. E há um ambiente Estúdio Ghimli com laivos da ilustradora britânica do início do século XX Beatrix Potter, de onde parece vir grande parte da inspiração estética aos 7 ilustradores que fizeram parte da equipa de produção.

Sempre que ligava o jogo sentia-me tão absorvido por Child of Light que conseguia sentir a honestidade criativa dos seus autores. Todo o enredo e apresentação da história que rodeia Aurora, a nossa protagonista, demonstra um descomprometimento comercial e ao mesmo tempo, uma grande paixão da equipa de produção. Não só foi uma jogada de risco devido à sua grande experimentação, mas cuja qualidade acabou por virar as atenções dos media e da própria comunidade para um jogo de 15€.

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A liberdade do voo e o contraste cromático de Aurora.

 

Apesar de ser genericamente considerado um RPG de plataformas, senti facilmente que a capacidade da nossa protagonista de voar desde quase os minutos iniciais do jogo acaba por permiti-la libertar-se da circunscrição clássica, e tornar a experiência mais etérea.

Para além de controlarmos a nossa protagonista, temos também o controlo de uma pequena criatura-luz chamado Igniculus em simultâneo, que nos permite apanhar luz pelo cenário, assim como resolver alguns dos puzzles que nos são apresentados, o que traz a ideia do companion clássico dos filmes infantis que tem um papel (quase) tão preponderante como a protagonista.

Apesar de não ser um RPG complexo, nem na longevidade, nem no conteúdo extra que nos traz, o descomprometimento de Child of Light em relação ao género acaba por ser uma lufada de ar fresco. Por ter jogado já tantos RPGs e JRPGs na minha vida, acabo por receber de bom grado um jogo cujo objectivo não é obrigar-me a grindar por níveis ou por equipamento, mas sim, tentar utilizar da melhor forma os recursos que tenho, e os membros da minha equipa versus os inimigos com que me deparei. Mas o grande ponto de inovação ao nível do combate que o jogo trouxe centra-se na barra temporal de acções. Esta barra, localizada no rodapé do ecrã, está separada em duas zonas: “wait” e “cast”, correspondendo respectivamente aos momentos de “preparação” dos personagens, ou cooldown, e o momento de execução da acção. Visto que personagens diferentes e acções diferentes têm velocidades diferentes, temos de conseguir gerir o nosso turno e o dos nossos oponentes nessa barra de forma a evitar sermos interrompidos e se possível, a interrompermos a acção adversária. Para ocorrer a interrupção basta que o personagem seja atacado enquanto estiver na fase de “cast”. É esta estratégia mais apurada ao segundo, associada com a utilização de Igniculus para atrasarmos os adversários ou para nos curarmos, que colocam uma grande pressão a cada segundo e que quebra um pouco o sistema habitual de combate por turnos. Aliando a esse elemento estratégico a possibilidade de trocarmos de personagens a nosso bel-prazer a meio do combate para tentar contrabalançar os nossos inimigos.

Apesar de não termos de procurar equipamento conseguimos fundir gemas para aumentar as estatísticas dos nossos personagens. Estatísticas essas que são automaticamente aumentadas a cada level up e que vão coincidir com escolhas nas habituais árvores de habilidades, o que representa um resquício de “tradicionalismo” neste jogo.

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Imaginem a conta da EDP ao final do combate!

 

Não tendo muitas side quests, Child of Light acaba por ser terminado no máximo em 10 horas de jogo, o que já por si é uma grande diferença em relação a outros jogos do género. Apesar da história não ser inovador e muitas vezes manter a superficialidade pueril dos nossos livros, acabamos por sentir que a velha máxima de “não ser o destino o mais importante, mas o caminho em si” se aplica aqui na perfeição.

Para contribuir para a total imersão no jogo, temos das Bandas-Sonoras mais coerentes que ouvimos nos últimos tempos, composta pela canadiana Béatrice Martin, conhecida artisticamente como Coeur de Pirate.

O melhor: A estética e a sua execução, a direcção artística, um novo olhar sobre os RPGs sobrepujado de acessórios, toda a experiência do início ao fim, a música.

O pior: A aproximação mais simplista de RPG poderá ser insuficiente para alguns jogadores, excessivamente fácil (nunca vimos o ecrã de Game Over, e questionamos se este existe).

Child of Light foi possivelmente uma das experiências mais reveladoras que tive com videojogos nos últimos tempos. Não tem pretensões de ascender acima do que é a sua própria existência, nem tenta ser algo que não é. É sim, uma criação honesta e apaixonada, e que nos permite uma das viagens mais mágicas de que há memória, transportando-nos para um mundo fantástico com laivos da nossa mais tenra infância, em que cada virar de página é um novo imaginário a ser explorado. CoL fá-lo em quase todos os segundos que estamos em Lemuria. Quem esvoaça nos céus, com o seu cabelo vermelho estrondosamente fluído e contrastante com o cinzento do céu não é Aurora. Somos nós, transportados pela nossa imaginação e pelo ambiente que nos rapta e nos submerge durante as horas que o jogo dura. É uma viagem sentimental mais do que tudo. Não deveria ser também para isso que os jogos existem?

Child of Light está disponível para todas as plataformas. Jogada a versão de Wii U.