A estranheza de uma segunda-vida

O acrónimo KISS, cuja origem é usualmente atribuída ao engenheiro Kelly Johnson, resume na perfeição o que é este Tomodachi Life. Keep it simple stupid poderá ter sido a palavra de ordem no desenvolvimento deste jogo e o resultado final comprova isso mesmo.

Quase todos nós já tivemos curiosidade com um ou outro simulador de vida e a diversão que temos em representar virtualmente os nossos amigos ou conhecidos em ambientes virtuais. Quem nunca criou o seu arqui-inimigo na vida real em qualquer dos Sims, apenas para o emparedar e levá-lo à morte por fome e exaustão, não sem antes o obrigarmos a fazer as necessidades nas próprias calças. Sob o risco de me sentir patologicamente sádico, espero que corroborem a minha teoria de que esta prática é mais comum do que se imagina!

Tomodachi Life 03

E isto senhoras e senhores: é Tomodachi Life na sua excentricidade.

 

Ao contrário de Sims, ou mesmo Animal Crossing, que ora controlamos uma série de personagens ou um avatar nosso, em Tomodachi Life somos uma espécie de divindade neutra que aconselha mais do que interfere. Tudo isto é o expectável para um jogo da Nintendo, e desengane-se quem esperaria um twist de hipotética crueldade divina provenientes das obras de Peter Molyneux. Aliás, em tudo o jogo exala o espírito familiar da Nintendo e a cultura otaku, e de início tive algumas dúvidas que o choque cultural funcionasse no Ocidente.

A segunda grande estranheza que senti foi a sensação de estar presente com um jogo que é um não-jogo. Acima do que tudo porque Tomodachi Life nos coloca na pele de um narrador heterodiegético que sabe que o é, e que permite aos restantes intervenientes (leia-se, os Miis que habitam a ilha) a consciência da sua omnisciência. O que nos resta enquanto figura divina que administra a ilha, é responder a todas as necessidades dos nossos Miis, cuja existência é persistente com a nossa ausência, o que é exemplificado no facto de que eles se deslocam pela ilha a seu bel-prazer. Não obstante, a génese das relações e interacções dos diversos personagens dependem unica e exclusivamente da sua própria vontade, e nós servimos apenas como conselheiros das suas acções. Se achamos que a relação de amizade que estão travar com dado personagem é infrutífera, podemos desaconselhá-los a investirem nela. Tudo o resto são, à semelhança da nossa vida, uma série de aleatoriedades que desaguam numa multiplicidade de emoções, desde personagens que se declaram a outras apenas para terem o seu coração destroçado, até amizades que evoluem para casamento.

Tomodachi Life 02

Legenda possível: qualquer coisa aleatória.

 

E se tudo isto parece pueril, superficial, ou até casual, é fácil de perceber que o grande segredo da sua eficácia depende exclusivamente de um factor: o facto de que todos nós vamos preencher a nossa ilha com Miis que são traduções digitais de quem nos rodeia. Toda a excentricidade que o jogo tem, desde os diálogos, passando pelas interacções, reacções e é claro, os sonhos algo surrealistas (não é o onírico inteiramente surreal por definição?) são justificados por vermos os nossos “amigos” no papel de Miis. Desde situações em que vi o Miyamoto a seduzir a minha mulher (como referido), ou a forma como o avatar dela se declarou a mim (candidato a declaração mais robótica e desinteressada de sempre), ou ver as personificações de casais amigos detestarem-se no jogo. A magia de todos os eventos, necessidades, surpresas e interacções residem exclusivamente nesta materialização da nossa vida real numa ilha ficcional, em que pouco ou nada podemos fazer para alterar os destinos dos nossos amigos. Não fosse esta característica e a simplicidade do jogo cairia no simplismo e transpareceria uma certa superficialidade que é ilusória.

Tomodachi Life 01

Bem tentaste Miyamoto. Mas perdeste meu amigo!

 

Tomodachi Life é o jogo que eu não esperava ficar viciado da forma que fiquei. Há um sentimento quase tamagotchi (não fazendo piadas sobre a semelhança fonética entre as palavras) na forma como olhamos para os personagens. Acima de tudo porque este é um jogo para “se ir jogando” e não algo ao qual ficaremos mais de 15 minutos de seguida a jogar. O grande problema é que quando damos por nós esses 15 minutos multiplicaram-se demasiadas vezes num só dia. E apesar dos personagens não morrerem de fome ou de qualquer outra maleita, há uma curiosidade em observarmos uma segunda-vida da nossa própria vida a desenrolar-se virtualmente, como se os nossos amigos e família (e nós mesmos) fossemos formigas num terrário sob o olhar atento de uma divindade observadora.

Há mini-jogos para jogar, roupa, chapéus, decorações de casa e comida para comprar, mas tudo isto, com a sua repetitividade natural dada a limitação da própria ilha, acaba por ser completamente secundário no desenrolar do próprio jogo. E é por isso que a trama da novela cujos personagens nós conhecemos de perto, e que envolve relacionamentos amorosos improváveis, triângulos românticos, bebés que nascem e que vão criando uma história paralela à nossa, e muitas vezes distante daquela que nós próprios vivemos. Mas sempre com uma dose de humor tipicamente japonesa, cujos personagens teimam em vociferar nas suas vozes robóticas as frases que nós lhes atribuímos como catch phrases, ou mesmo nas linhas pré-concebidas que vão dizendo.

As reacções, necessidades e relacionamentos dos personagens dependem tão somente de quão aproximado é o perfil psicológico que fazemos entre os Miis e os seus contrapartes na vida real, e a verdadeira diversão inicia-se aí.

Ainda que o jogo sofra de uma aura de inocência Nintendo-esque, parece-me que dificilmente Tomodachi Life será apetecível para crianças, e apenas da adolescência para a frente residirá o encanto. Sendo a postura de quase-espectador de uma novela e dos relacionamentos que se criam o verdadeiro brilho, dificilmente uma criança, que a priori não terá tanto interesse nessa parte, se sinta compelida a jogar pelas restantes componentes do jogo.

Há ainda que salientar que este é possivelmente a melhor utilização que a Nintendo poderia criar para os seus avatares nativos, que sempre tiveram um papel terciário no desenrolar das acções da companhia. Não só no palco de Tomodachi onde podem cantar a solo ou em grupo, os Miis encontraram finalmente aqui o seu lugar debaixo dos holofotes da ribalta.

O melhor: o humor estranho, as situações aleatórias, os relacionamentos que se criam, a diversão inesperada do jogo, a boa utilização dos Miis, o vício que ninguém acredita que aqui possa residir, o ritmo compassado que plhe permite ser jogado em momentos mais breves.

O pior: poderá tornar-se repetitivo após algumas semanas, a sua simplicidade afastará muitos jogadores.

Tomodachi Life é o jogo que nem eu nem a minha mulher acreditámos que nos pudesse agarrar da forma como agarrou. E a aura de estranheza que o jogo tem é apenas comparável à forma como ambos descrevíamos algumas situações ao nosso grupo de amigos, soando efectivamente a acontecimentos reais. Para a ligeireza do jogo, a simplicidade de mecânicas acaba por contribuir de sobremaneira, garantindo que as vivências virtuais nos mantêm divertidos, e que são um garante de dezenas de gargalhadas. Surpreendentemente viciante, acaba por se apresentar de uma forma tão simples que tem a capacidade de se ter tornado um dos primeiros jogos da 3DS que consegue aglomerar amigos em volta da consola portátil. E vermos uma outra vida vivida, paralela à nossa, que é simultaneamente mais despreocupada como o é excêntrica. E nós somos uma mera voz incorpórea que vai guiando os habitantes daquela pequena vida pelo seu dia-a-dia, como um deus-conselheiro cuja única ocupação é cuidar de uma micro-sociedade.

Tomodachi Life é um exclusivo 3DS.