O George Orwell bem avisou.
3 dias, 3 reflexões sobre Watch Dogs
Mergulhar em Watch Dogs provava-se uma tarefa difícil à primeira vista. As minhas expectativas com a premissa do jogo colocou-o debaixo do meu radar desde a E3 2012. E se as (aparentes) maravilhas gráficas apresentadas nessa conferência deixaram muita gente abismada, a realidade comprovou-se que entre um trailer e o jogo lançado poderá advir uma grande distância.
Todo o conceito de trazer um sandbox de modelo clássico com componentes de hacking foi-me deixando cada vez mais alerta, mas simultaneamente desconfiado da linha conceptual. Havia uma grande dúvida nas capacidades dos argumentistas do jogo (e dos game designers em geral) em manterem a suspensão da descrença no setting apresentado. E não no aspecto de que a Chicago representada não é plausível, é aliás mais do que isso: é assustadoramente provável. Mas a minha apreensão prende-se com a grande justificação de como é que Aiden Pearce, o nosso protagonista, um hacker genial e com a capacidade de fazer virtualmente tudo numa cidade (excessivamente) informatizada e que aparenta ter de fazer trabalhos ao nível de gangsters de nível baixo tão típico do ambiente de GTA. Felizmente que a narrativa justificou e apaziguou parte das minhas apreensões. Mas apenas parte.
De tudo aquilo que fomos vendo, e provavelmente por manobra de marketing e de percepção do mercado que temos, grande parte dos vídeos de preview de Watch Dogs imbuíam o jogo de um tom muito próximo da série GTA. Mas após a primeira meia-hora de jogo percebemos que o ambiente que se vive é mais próximo do belíssimo e underrated The Saboteur do que da série da Rockstar.
Apesar de decidirmos (e das nossas acções construírem) que tipo de reputação teremos no decorrer do jogo, com uma espécie de alinhamento moral que nos define para com a opinião pública, foi com alguma surpresa que ao contrário de outros jogos em que tento ter uma prestação o mais próxima possível da “maldade”, acabei por vestir o manto benevolente do vigilante.
Nas primeiras horas de jogo a sensação que terão é de que o jogo tem demasiado para oferecer. Entre mini-jogos, side-missions, pontos de interesse, hacking indiscriminado a transeuntes, capturar pequenos criminosos que estão nas nossas imediações, são tudo “distracções” que vão rapidamente conduzir a história principal para segundo plano. O que até acaba por ser injusto, pois apesar de não ser o melhor enredo que já assisti, acabei por associar a narrativa de Watch Dogs a um bom filme de acção dos anos 90. O argumento não é exuberante nem extraordinariamente surpreendente, mas limita-se a cumprir o dinamismo de um filme do Ron Howard, o que acaba por ser o tom suficiente para se tornar eficaz .
O grande problema que muitas das missões opcionais nos trazem é a sua repetição. Algumas delas chegam a ser tiradas a papel químico das suas antecessoras, e a única razão pelo qual as fazemos é unica e exclusivamente pelo XP recebido e pela possibilidade de terminarmos os achivements associados. É claro que há algumas excepções. As missões que envolvem invadir a privacidade de um apartamento específico, ou as missões em que temos de invadir as centrais regionais da ctOS para obter acesso às vulnerabilidades da zona, ou os jumping puzzles ligados às antenas de retransmissão acabam por trazer uma componente mais mental ao jogo.
Outro ponto positivo do jogo é que nos permite verdadeiramente efectuar as missões seguindo não só uma espécie de bússola moral auto-imposta ou pelo estilo de jogo que decidimos encetar. Isto é de sobremaneira importante sempre que temos de invadir uma base inimiga, seja da ctOS ou de pequenas gangues locais, em que normalmente temos de nocautear um alvo e não matá-lo. O que significa que ou podemos assumir uma posição mais furtiva e fazer uso da nossa parafernália informática e de armas com silenciador, ou simplesmente pegar numa espingarda automática e seguir sempre em frente, como a encarnação do Tony Montana em Chicago. Numa postura mais furtiva o jogo acaba por ser um pouco mais difícil, mas também, no meu entender, a forma aconselhável de se jogar.
Uma das grandes dores de cabeça de jogar Watch Dogs acabou por ser a plataforma onde fizemos a análise. Por termos jogado no PC, os primeiros dias foram um verdadeiro pesadelo. Desde o facto de que se percebeu desde cedo que a Ubisoft não tinha noção do peso que um jogo destes poderia ter na sua plataforma, o Uplay, e que acabou por deixar muita gente de fora nos dois primeiros dias. Em segundo porque o jogo nos pareceu mal-ajustado a gráficas AMD (vide as discussões que têm havido que levaram o director da AMD a pronunciar-se sobre a “guerra” contra a Nvidia) e que constantemente causavam problemas de performance e que inclusivamente, terminavam como próprio executável. O jogo é excessivamente exigente do ponto de vista de recursos para o motor gráfico que possui, o que demonstra o fraco ajuste feito entre as versões de consola e de computador.
As utilizações do nosso smartphone acabam por mostrar-se relativamente limitadas enquanto caminhamos pela cidade, e só assumem um verdadeiro nível de relevância quando estamos a conduzir. É aliás por isso que escapar à polícia e a qualquer inimigo acaba por ser excessivamente fácil: o manancial de interacções que podemos ter enquanto conduzimos (se obtivermos esses upgrades quando fazemos level up) que podem ir desde alterar os semáforos, até rebentar com canalizações do gás, facilitam excessivamente as fugas, mas simultaneamente conferem-lhe um novo twist que faltava ao género tão desgastado por GTA.
O jogo não é de forma alguma aconselhável a completionists. É que a probabilidade de se distraírem com uma side mission ou algo opcional enquanto vão a conduzir do ponto A ao B é simplesmente elevado. Síndrome Assassin’s Creed alguns diriam. Mas mais diversificado, muito mais até.
O que me agrada em Watch Dogs é o aspecto mais maduro que o jogo tem. O tom que alguns sandboxes têm tomado de um extremismo e violência gratuitas e quem tem em GTA V o seu maior bastião, acabou por progressivamente retirar-me a curiosidade sobre o género. Mas esta mudança de manto pseudo-heróico a vestir relembra-nos o Sean Devlin de The Saboteur, ou o vigilantismo típico de dezenas de super-heróis dos comics americanos.
O domínio das redondezas acaba por tornar-nos completamente overpowered quando comparado com protagonistas de outros jogos, e dir-se-ia que à excepção de uma das missões, os upgrades que vamos desbloqueando tornam o jogo excessivamente fácil.
E se houve algo que verdadeiramente me surpreendeu foi a intromissão de outros jogadores dentro do meu jogo. Ir no meio da rua e perceber que outro jogador acabou de me hackar, leva-nos de imediato a tentar descobri-lo no meio da multidão e persegui-lo até o matar. Não só traz uma dinâmica curiosa por podermos interferir no jogo de outros jogadores, como existem outros modos online facilmente acessíveis ao toque do smartphone. Desde twists a modos de team deathmatch e capture the flag, Watch Dogs conseguiu, de forma não muito exuberante, colocar interacções entre jogadores a um single player e que traz todo o dinamismo do hacking associado à pressão de tentar sobrepujar a inteligência dos nossos adversários humanos.
Felizmente que a E3 2014 se interpôs entre a escrita desta análise e a sua publicação. É que me permitiu ver um interface apresentado pela Ubisoft para o Just Dance que seria simplesmente perfeito para adensar ainda mais a jogabilidade de WD. Já tínhamos falado aqui sobre a possibilidade de utilizarmos o nosso smartphone (real) para interagir com o jogo. E se dificuldades haviam, a realidade é que a companhia já apresentou algumas soluções para a sua franquia de dança, e quiçá, podê-lo-iam ter feito também para Watch Dogs. E isto traz-me a uma consideração: a plataforma mais ajustada a toda a premissa do jogo será a última a recebê-lo e falo obviamente da Wii U. Mas já estamos habituados a estas décalages não já?
Uma nota antes de fechar o pano: o dinheiro não serve para nada neste jogo. Tal como esperava de alguém com as capacidades de hacking de Aiden Pearce, vamos ter tanto dinheiro na nossa conta que tudo o que teremos para fazer é ir à H&M mais próxima e comprar as dezenas de fatos diferentes que temos à disposição. E o resto é ficar com centenas de milhares de dólares a render no nosso homebanking. Depois de algumas tentativas infrutíferas da minha parte, não consegui passar um único cêntimo para a minha conta real.
O melhor: a diversidade de missões, o sistema de hacking, os puzzles, as invasões em modo stealth, as histórias paralelas e secundárias.
O pior: a repetição e falta de sentido conceptual de algumas side missions, o parkour inócuo e a facilidade de fugas à polícia.
Watch Dogs é mais do jogo que esperava, já que parte de mim acreditava que a novidade trazida pelo sistema de hacking se esgotaria nas primeiras horas. Não me traz uma violência gratuita quase pueril, mas imbui a jogabilidade de uma responsabilidade moral mais próxima do conceito complexo de vigilantismo. Tem um conteúdo estrondoso, e que nos consegue manter ocupados (ou distraídos) sem sequer pensarmos que existe um enredo principal dividido entre 5 actos à nossa espera. Não fosse o desacerto da conversão do jogo para PC e teria aqui um dos mais surpreendentes jogos a nível visual: desde a complexidade ao detalhe da multifacetada Chicago, em que quase podemos percorrer a cidade saltando de câmara em câmara do sistema ctOS. Mas mais do que tudo Watch Dogs põe-nos a pensar sobre o nosso dia-a-dia, urbano, e de internetodependência. O futuro está aí virar da esquina. Será que o queremos receber de porta aberta?
Watch Dogs foi lançado para todas as plataformas. Analisada a versão de PC.
Comments (2)
a repetição de que vocês falam no jogo fazem-me lembrar o primeiro AC… ainda não joguei ao Watch Dogs, chegou-me hoje, mas estou muito ansioso por o meter na minha PS4. Espero apaixonar-me pelo jogo como me apaixonei por Assassin’s Creed, que se veio a tornar na minha série preferida
Acho que não vais mesmo ficar defraudado com o Watch Dogs. É um belíssimo jogo. Depois diz-nos quais as tuas side missions paralelas! ;)