3 dias, 3 reflexões sobre Watch Dogs

Quando nos deparamos com mundos ficcionais, há uma parte de nós que se posiciona no papel dos intervenientes desses mundos e que tenta perceber o seu ponto de vista. A compreensão que temos dessas situações ou desses mundos é tão mais imediata quanto o mais próximo estão esses mundos ficcionados da nossa própria realidade.

Como já afirmámos na análise, Watch Dogs teve esse condão e ainda muito mais. O seu ambiente tecnológico e social está mais próximo do que vivemos no dia-a-dia, e por muito que isso nos assuste basta pensarmos por alguns segundos para nos identificarmos com aquela Chicago. É uma cidade real dentro da anormalidade virtual programada dos seus cidadãos mas que em tudo poderia ser a Chicago do nosso mundo, ou Lisboa, ou qualquer cidade que viva de sobremaneira num clima de ciberdependêcia.

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Cada um daqueles personagens robotizados que pela cidade passam acabam por ter algum backstory que podemos facilmente aceder através do hacking dos seus smartphones. Conseguimos perceber pelo seu perfil de ctOS, a rede central que une todas as comunicações da cidade, cada um dos seus segredos, e vamos recebendo informações pessoais a que ninguém deveria ter acesso. Desde descobrirmos doentes oncológicos, a mulheres e homens a traírem os seus companheiros, até gente aparentemente normal envolvida em tráfico de humanos, viciados no jogo, em sexo, em drogas, pessoas que estão envolvidas em processos-crime como arguidos e outros em Programas de Protecção de Testemunhas. Há uma camada paralela de jogo que podemos ter: a de perceber que segredos escondem cada um daqueles NPCs que passam de forma descontraída pelas ruas de Chicago.

Se pensarmos que toda a “escavação” de identidade que Aiden Pearce faz das centenas de pessoas com quem se cruza em Watch Dogs é pura especulação, basta-nos pensar em todas as informações que existem sobre nós pela internet e rapidamente contrariamos esse primeiro pensamento. Apesar de ainda não vivermos num País (ou num mundo) em que todas as nossas informações são centralizadas numa única rede, a possibilidade de recolher e traçar o nosso perfil a partir das diversas pegadas que deixamos pela internet são uma realidade assustadora. Imaginemos para isso que as nossas informações de Segurança Social, Finanças, contas bancárias, redes sociais como Facebook ou Twitter, assim como o nosso histórico de browsers pudessem estar centralizados numa rede apenas. Se aquilo que muitos de nós partilha no Facebook já é suficiente para definir com uma precisão assustadora alguns traços da nossa personalidade e do nosso quotidiano, juntemos-lhe também as informações civis e bancárias e percebemos que todos os truques de prestidigitação que Pearce faz são menos do que isso: basta que cedamos ao erro de centralizar a nossa identidade digital num local só.

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A segunda reflexão que podemos fazer sobre Watch Dogs é maquiavelicamente orwelliana. Se ter sistemas de CCTV que preenchem todas as ruas e becos de uma cidade nos dão uma (falsa?) sensação de segurança, coloca-se a questão: e qual o preço a pagar pelo nosso bem-estar? Numa fase em que os nossos smartphones debitam (até possivelmente contra a nossa vontade) informações sobre a nossa geolocalização, definindo a quem o queira e consiga, os nossos hábitos, e juntemos-lhe sem qualquer engano uma rede de câmaras que nos seguem para todo o lado e temos um sistema omnipresente que nos impede de desaparecer do mapa. Mesmo que o queiramos.

As mecânicas de jogabilidade de Watch Dogs mostram-nos os riscos reais de vivermos num terrário sob o olhar atento de um Olho-que-tudo-vê. E temos de ter a certeza de que é plausível que alguém consiga invadir sistemas informáticos tão complexos, desconstruí-los, e usá-los sem que ninguém perceba, como um espectador silencioso das vidas de todos. Não há fortalezas perfeitas, assim como não há sistemas intransponíveis. Todos os pequenos passos que vamos tomando para facilitar o nosso dia-a-dia tornam a plausibilidade da ctOS tão grande que é quase tangível. Parece estar tão perto, que a vemos já á nossa frente.

Há objectos que nos conduzem a pensar sobre a nossa realidade, mesmo quando a sua própria nos soa estranhamente familiar. Watch Dogs coloca-nos mais questões do que as responde, mas ao colocar-nos uma omnipotência tão real nas nossas mãos alerta-nos inadvertidamente para o que o futuro pode trazer. E o futuro é já hoje.