Uma história de terapia
Não há ninguém no mercado dos videojogos que sofra mais com crises de identidade do que Link, o valente herói que desde há trinta anos tem vindo a salvar as terras de Hyrule. Demasiadas rupias gastas em terapeutas, psicólogos, psiquiatras, cartomantes e astrólogas, e ainda hoje a insapiência de muitos em apelidarem o jovem que anda sempre vestido de verde de Zelda persiste. Raios, tantos quilómetros calcorreados a salvar aquela menina mimada que essencialmente tudo o que tem no seu curriculum vitae é “raptada por Ganondorf de 1986 a 2014”, e mesmo assim é mais conhecida do que aquele que faz todo o trabalho. São as vicissitudes do mundo contemporâneo, em que alguns são famosos apenas por o serem, e em que as TVs e os media estão cheios de gente amorfa cuja fama é o único talento e o único propósito de vida.
É claro que isto já nos aconteceu a todos, e até eu, de costas, já fui confundido. Mas depois de interpolado as pessoas lá exclamam “Ah! És tu Ricardo!” e o mundo volta ao normal. Mas o que se passa com o Link, depois destes anos é pura crueldade social. Imaginem o que é o pobre guerreiro ir ao Starbucks e um engraçadinho escrever Zelda no copo de café? É coisa para causar progressivamente uma série de recalcamentos e agastes de personalidade. Não há-de faltar muito para o vermos a passar para o outro lado (leia-se o mal, e não a homossexualidade, vestir de vermelho e integrar uma claque do Benfica, ou associar-se ao PPD-PSD).
Zelda, ups, desculpem, Link, não é o único personagem a sofrer deste problema. Há até outra personagem da Nintendo que sofre do mesmo problema: a bela Samus Aran. É verdade que aquela armadura pouco demonstra da escultural deusa-que-relembra-uma-Pamela-Anderson-nos-anos-90, mas daí a chamarem-lhe Metroid vão outros tantos. Confundir aquele “chuchuzinho” digital com um organismo gelatinoso que se assemelha a uma anémona voador também é caso para destruir a auto-estima de cada um. Felizmente que a personalidade passivo-agressiva de Samus tem-na feito ultrapassar estes constrangimentos sociais: um balázio de proto-energia na cara de todos aqueles que indelicadamente a chamam de Metroid e o assunto está resolvido. Depois retira o capacete e retoca a maquilhagem, que salvar o universo requer alguma classe e algum aprumo.
Aproveitando a reedição do magnífico The Legend of Zelda: Windwaker na sua versão HD para Wii U, percebemos o quanto a década passada foi alimentando o decalque transgénero de Link. Apesar de não ser historicamente o primeiro jogo a utilizar um visual cel-shading, Windwaker trouxe uma nova definição estética para TloZ e para o seu protagonista, abrindo também uma nova linha temporal na série que acabou por dar seguimento em Phantom Hourglass e Spirit Tracks. Esta nova definição artística não abonou à confusão colectiva de apelidar Link de Zelda, visto que a sua nova persona mais juvenil e de olhos amendoados lá trouxeram mais faux-pas aos que o rodeiam, deitando cada vez mais por terra toda a estrutura identitária do rapaz.
As violências psicológicas de leso-identidade deveriam ser crime público. Urge salvar a mente deste rapaz, que vai acordando todos os dias a mal-reconhecer o seu próprio rosto, numa prosopagnosia latente que está, sem qualquer dúvida, a desestruturá-lo. A continuar assim será um dia Link, ou Zelda, como preferirem chamar-lhe, a ser capturado por Ganondorf, e a princesa a arregaçar as mangas e a percorrer infindáveis masmorras para o salvar. Há quem diga que por 50 rupias lhe podem chamar o que quiserem: Carlos, Mario, João, Felismina, etc. Menos Aníbal Silva, que até um herói de videojogos tem limites.