Aviso: o texto que se segue vai utilizar exemplos que podem ser considerados spoilers especificamente à trilogia do Mass Effect da Bioware, ao Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien, bem como a sua adaptação ao cinema de Peter Jackson e à saga de Harry Potter de J.K. Rowling (e/ou à sua adaptação ao cinema).
Sou um ávido consumidor de estórias. Desde muito pequeno que me entretenho com elas. Seja como leitor, espectador, jogador e mesmo criador. Ficção-científica, fantasia, romances, noveletas, contos, poemas, epopeias, dramas, banda desenhada, comédias, aventuras, etc. Tive a sorte de ter uns pais que sempre me incentivaram à leitura e estimularam a imaginação e a descoberta.
E o que é que isso interessa, podem perguntar-se ao ler as minhas primeiras frases? Bem, interessa quando pela minha experiência consigo ter opiniões tão diferentes de outras pessoas igualmente “qualificadas” sobre alguns dos enredos nos videojogos. Creio ser no meu grupo mais próximo de amigos o único que não só gostou do Mass Effect 3, como o achou um digno final para a saga.
Antes de mais: opiniões são todas legítimas, desde que fundamentadas. Não estou, nem vou querer dizer que eu estou certo e o ME3 é um “ganda jogo” e que quem não gosta dele não percebe nada. O que vou tentar fazer é apresentar uma nova perspectiva sobre o mesmo, e tentar explicar porque é que eu gostei do jogo, quando a opinião mais geral é que a Bioware foi sacaninha e nos engrupiu a todos com as famigeradas explosões tricolores.
Apertem os cintos, porque isto vai ser uma (longa) viagem.
Antes de mais, e porque creio que alguns já estarão prestes a arrancar cabelos: história é “D. Afonso Henriques foi o primeiro Rei de Portugal”, ao passo que estória é “D. Afonso Henriques aos comandos do seu Mecha a Vapor, conquistou Portugal às fanáticas Hordas de Orcs Sarracenos”. Facto histórico versus elemento ficcional. Ok?
Creio que ninguém vai debater que os videojogos são excelentes meios de contar estórias (pelo menos ninguém que, como nós, gosta de videojogos). Nem sempre o fazem, ou sequer precisam de o fazer. Não estou à espera que o Tetris me conte nenhuma estória, mas continuo a pensar que é um excelente jogo.
Os jogos de vídeo permitem a um autor contar uma estória através de um meio visual interactivo. O que é excelente. Começámos por contar estórias oralmente, inventámos o desenho e a escrita para que o pudéssemos fazer de geração em geração. Inventámos o fonógrafo para que o pudéssemos fazer em massa. Inventámos o cinema para que o pudéssemos fazer visualmente. Os videojogos eram o próximo passo lógico. Agora podemos fazê-lo de forma interactiva. A nossa audiência toma parte activa no desenrolar da mesma, e isso torna-as muito mais empolgantes, orgânicas e cativantes.
Então o que fez com que o ME3 tivesse uma recepção tão negativa, quando o primeiro e o segundo foram sucessos quase universais?
Bem todas as moedas têm duas faces. Verdade seja dita, apesar de os elementos de estória já existirem nos videojogos há décadas, só agora a tecnologia e os próprios criadores estão a atingir a maturidade artística necessária para criar verdadeiros épicos digitais. A principal dificuldade prende-se, penso eu, com a tal interactividade única dos jogos como formato estórico. Se a estória é interactiva, então quero que as minhas decisões tenham impacto. Para ser conduzido por carris sem qualquer capacidade de tomada de decisão, um filme será suficiente. Vamos designar por entretenimento passivo. Os jogos são por definição formas de entretenimento activo. Por isso temos controladores e interfaces. Para controlar.
Mas as aventuras de texto já existem à anos e anos, diz o leitor. Verdade. Jogos como o Imagination (para o ZX Spectrum) contavam-nos uma estória num formato interactivo, mas as nossas escolhas estavam limitadas e premeditadas, e muitas vezes só existia uma forma correcta de atingir o fim da estória. O mesmo se passou anos depois com as nostálgicas aventuras gráficas. Podíamos passar horas, e dias a fio, “encalhados” num puzzle que se não fosse resolvido exactamente da maneira que os programadores tinham planeado, não nos permitiam avançar. Isto não é controlo, mas sim uma ilusão (fraca) do mesmo.
A minha experiência como mestre-de-jogo de RPGs de mesa ensinou-me que a melhor maneira de convencer um jogador que ele está no pleno controlo dos eventos é com uma liberdade quase total nas suas escolhas. Associada a uma dramática cascada de consequências (aparentemente lógicas)! Ou seja: podes fazer o que quiseres, mas vai haver consequências. Aprendem rapidamente a levar as suas decisões a “sério” e ajuda a manter a suspensão da descrença. As mesmas mecânicas podem e devem ser aplicadas a qualquer estória interactiva. O contador de estórias deve conduzir a sua plateia ao final da estória, mas deixá-los percorrer o seu próprio caminho.
Isto pode ser bem e mal feito. Os termos “paredes invisíveis”, “carris” e outros do estilo são exemplos de más conduções de estória. Escolhas, decisões e consequências são bons exemplos. Como disse, só agora tanto os argumentistas de videojogos como as plataformas tecnológicas nos começam a permitir estas formas de controlo para que o jogador não se aperceba delas ou não as tome como tal.
Para mim, nisto o Mass Effect foi simplesmente brilhante. Poucas vezes me deparei com notórias paredes invisíveis (até porque a suspensão da descrença era tal que nem as procurava). E senti que as decisões que tomávamos tinham consequências “reais”. Joguei sempre os jogos ao meu ritmo, sentindo a urgência das missões e tendo efectivamente consequências por atrasos para fazer missões secundárias. É um universo literariamente muito bem construído e rico, permeado de “história” (perceberam agora porque diferencio as duas?) não só no seu CODEX mas também no cenário e NPCs. As mecânicas dos jogos eram fluídas, polidas e eficazes para passar a sensação de combates de curta e média distância com armas de fogo. Simplesmente um exemplo a ser seguido.
Não percam a continuação na segunda parte do artigo.