Aviso: o texto que se segue vai utilizar exemplos que podem ser considerados spoilers especificamente à trilogia do Mass Effect da Bioware, ao Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien, bem como a sua adaptação ao cinema de Peter Jackson e à saga de Harry Potter de J.K. Rowling (e/ou à sua adaptação ao cinema).
Leram a primeira parte certo?
Então porque parece que toda a gente “detestou” o final? Bem… correndo o risco de parecer algo snobe e arrogante: porque não perceberam quando o final começou.
E é por ter esta opinião que me dei ao trabalho de escrever tudo o que está para trás. Para que possa tentar de seguida tentar explicar mecânicas de estória e possam perceber que o faço do alto de 30 e poucos anos de experiência e estudo. Não o faço pela arrogância hipster de dizer “vocês não percebem a profundidade do enredo” (até porque nem sequer é assim tão profundo), mas porque achei verdadeiramente que os autores de Mass Effect foram brilhantes e francamente inovadores num ponto: eles tornaram o próprio final numa experiência prolongada e interactiva.
Não falo da famigerada “escolha” vermelho-azul-verde (e sabiam que nesse ponto existe uma quarta opção?). Esse ponto não é o final da estória, ou melhor, não é o clímax da mesma. Essa escolha é o epílogo, o que acontece depois de a nossa aventura acabar. Lembram-se de quantos mais minutos de filme tivemos depois do Anel ser destruído nos filmes do Senhor dos Anéis? Cerca de quarenta minutos se a memória me serve. Nos livros, os Hobbits ainda tiveram uma desagradável surpresa quando dois ou três capítulos depois voltam ao Shire…
Muito resumidamente a larga maioria das estórias de hoje em dia (sobretudo as de origem anglo-americana) vivem da estrutura de três actos. Se pensarem nos vossos tempos de primária quando começaram a aprender a ler e a escrever, recordar-se-ão certamente dos vossos professores vos dizerem que todas as estórias têm de ter um princípio, um meio e um fim. Grosso modo estes são os três actos. Não querendo aprofundar muito este tema, podemos defini-los genericamente como Apresentação, Desenvolvimento/Conflito e Desenlace.
No caso do ME os três actos distribuem-se de forma mais ou menos paralela com os três títulos. E aqui surge o problema. Tal como nas trilogias de cinema e literárias, os autores de ME deparam-se com um tropeção neste belo sistema: cada um dos títulos, apesar de ser apenas uma das partes de um todo, tinha de apresentar valor meritório per se. Ou seja, apesar de cada um dos títulos fazer parte de um todo, por questões de espaçamento entre lançamentos e para satisfação dos patamares comerciais, cada um deles individualmente tinha de por si só conter “mini” estórias em si mesmos. Cada um deles tinha de ter uma Apresentação, um Conflito e um Desenlace.
Esta subdivisão no grande esquema de uma epopeia não é assim tão fácil de se conseguir. Como criar uma catarse no espectador/jogador sem lhe retirar sensação de destino pendente? Existem algumas formas, mas nenhuma perfeita ou limpa. É o que nos leva a todos a geralmente gostar muito da primeira ou segunda parte de uma trilogia e não tanto da terceira. Melhor Senhor dos Anéis (filme)? Irmandade do Anel. Melhor Guerra das Estrelas (trilogia original)? O Império Contra-Ataca. Melhor Piratas das Caraíbas? A Maldição do Pérola Negra. Todos estes exemplos reflectem apenas a minha preferência pessoal, mas façam o exercício por vós mesmos. De notar que na trilogia mais recente d’ A Guerra das Estrelas, o último é o melhor, mas porque serve de ligação ao Episódio IV, e ao segmento dessa estória que efectivamente é bom. É um caso especial e digno de análise por si só.
Apesar disto, em todos os exemplos apresentados, a verdadeira catarse e o episódio que maior satisfação narrativa nos trás é sempre o último. É o culminar de um arqui-arco que seguimos desde o início.
Todas as trilogias (ou sagas no geral) têm os seus pontos altos algures no início do Conflito, quando os protagonistas estão no seu pior e a tensão está no pico. Quando Voldemort é restaurado no final d’ O Cálice de Fogo.
Por outro lado, quando chegamos ao verdadeiro Clímax da estória, e ao Desenlace ficamos presos à cadeira de uma forma tal que o alívio causado pelo “golpe final” é muitas vezes físico. Cai a Torre de Sauron no fim d’ O Regresso do Rei.
Voltando ao ME, depois dos dois primeiros “capítulos”, a terceira iteração foi necessariamente o parente pobre da trilogia. Do arqui-arco principal sobrava muito pouco para resolver, pelo que a Bioware tentou desviar o Clímax da saga para o multijogador. Esta sim para mim, uma má decisão. Na batalha “final”, o campo de batalha foi desviado do Comandante Shepard para um palco de soldados anónimos, que se digladiavam num palco de guerra multipartido. E azar o vosso se o sistema de jogo exige que paguem por conteúdo multijogador (*cof*Microsoft*cof* Xbox*cof*Live*cof*). Pffff…
Mas no enredo do Comandante, tudo faz sentido. Por alturas do ME3 o Comandante Shepard já não é um soldado de campo, mas sim um símbolo e uma componente principal dos esforços da Aliança. Faz todo o sentido que ele seja “usado” como agente de alistamento para o exército unificado da Aliança. E assim passamos o jogo a passear de sistema em sistema, a convencer e persuadir antigos aliados e inimigos a unirem-se num esforço conjunto de resistência final. Isto enquanto vamos sub-repticiamente investigando o Cadinho (Crucible, no original) e resolvendo/revisitando as pontas soltas que tínhamos vindo a deixar nos anteriores jogos. (Quase) todo o jogo é o Desenlace da saga. Já não temos desenvolvimento de personagem porque o arco dos personagens está completo (com as óbvias excepções dos novos e dos retornados personagens). O que temos são as conclusões das escolhas que fizemos. Temos as conclusões dos variados arcos dos nossos colegas de equipa, e a progressão que estes tiveram. Temos os desenvolvimentos de sementes que plantámos ao longo (no meu caso) de anos em que fomos acompanhando o Comandante Shepard das suas humildes origens como soldado da Aliança Humana até ao patamar de Lenda Viva da Aliança Galáctica.
Toda a gente reclamou que apenas existiam três finais e que mesmo estes eram muito semelhantes. Como?!?!?! Mas jogámos os mesmos jogos?
Vocês não sei, mas o meu Shepard começou como um franco-atirador de elite, último sobrevivente do seu pelotão e duramente talhado pela tragédia do campo de batalha num implacável operativo desprovido de emoções. E depois de muitas atribulações e de uma longa viagem de introspecção, acabou não só terminando um ciclo perpétuo de selecção quasi-divina, mas também conhecendo o amor, tornando-se uma pessoa melhor, e pela sua própria viagem de “auto-ajuda”, acabou com a xenofobia numa galáxia, uniu velhos e novos inimigos, reverteu genocídios, selou alianças entre némesis, salvou toda a civilização galáctica e meia dúzia de civilizações individuais. Perdeu amigos, fez novos e ajudou-os a espiar os seus pecados. Desmantelou um ringue galáctico de info-tráfico e desvendou alguns dos maiores mistérios arqueológicos. Terminou três conflitos distintos e rompeu velhas barreiras ideológicas. Sanou passados atribulados e abriu novos horizontes a mentes perdidas. Salvou órfãos e viu-os crescer para se tornarem adultos dignos de orgulho paternal.
As três explosões foram cliché e um “cop-out” pela Bioware? Não! Foram o resultado directo da situação que me foi colocada e das decisões que dispunha para lidar com ela. Lembrem-se: apesar de toda a interactividade e ramificações e permutações possíveis, o segredo de um bom contador de estórias e levar a sua audiência ao final planeado, sem que os espectadores se apercebam que estão a ser conduzidos. Eu fiquei satisfeito (e muito) com o final que escolhi. E aposto que a minha “galáxia final” é muito diferente da vossa.
O ME3 não foi o melhor jogo que já joguei. Mas foi de longe o jogo mais emocionalmente recompensador que tive o prazer de experienciar. Foi a única saga digital que até à data me fez sentir que tudo o que fiz durante o jogo teve impacto no desenlace da estória. Algumas decisões mais do que outras. Algumas erradas, ou com resultados que não pretendia. Mas todas derivadas de mim e das decisões que tomei enquanto Comandante Shepard. Eu era realmente o Comandante, e sentia o peso das minhas escolhas. E é isto que anseio que uma estória me traga. É isto a suspensão da descrença: o acto de pela sua envolvência, uma estória nos transportar para outro mundo, e de por uma hora ou trinta deixarmos o nosso mundo para trás e poder sentir a exuberância de uma realidade que sabemos alternativa e ficcional… mas não queremos saber!
Vem aí o Mass Effect 4. Adoraria uma nova saga passada naquele mundo. Um estória em pouco ou nada relacionada com a saga do Comandante Shepard, mas com o mesmo teor épico e a mesma permeabilidade emocional da trilogia. Deixo-vos um leve gostinho. Veremos.