Aqui estão dois links para dois vídeos que achei interessantes:

Vejam os dois vídeos e regressem a esta página, ou se gostam como eu de multi-tasking, convido-vos a ler enquanto ouvem. Não sou um fã dos vídeos da Idea Channel, e também não gosto dos vídeos da Extra Credits, mas tenho um enorme respeito por ambas.

São como aqueles filósofos que se estuda no secundário, que davam a impressão de terem um pouco a mania mas que apesar de tudo sabíamos que era tudo gente inteligente – muito inteligente, que levantavam perguntas muito importantes mesmo que as respostas em si não nos agradessem tanto – mas sobretudo que eram brilhantes o suficiente para terem mudado o mundo. Neste caso, sobretudo a Extra Credits, oiço poucas vozes tão brilhantes no mundo dos jogos (a Idea Channel abrange mais temas)… para ser honesto, a esse nível de “brilhante” se calhar só oiço essa. E tenho a certeza que sem a Extra Credits o mundo gamer era muito mais pobre. Mas não gosto à mesma.

Por exemplo, o vídeo que vi esta manhã (há algum tempo atrás, na verdade; escrevi isto há séculos, mas sou distraído e ficou a apanhar pó; eu sei, peço desculpa):

James Portnow, o escritor da Extra Credits, fez um “estudo” (ou chamou-lhe) para confirmar uma suspeita que tinha: ninguém se lembra tão detalhadamente da narrativa quando se trata de um vídeojogo, do que por exemplo quando se trata de um filme ou de um livro – e por “detalhadamente”, entenda-se, quantas balas foram disparadas num jogo militar por uma personagem, porque é que determinada personagem fez o que fez, o que é que um NPC tinha vestido, de que cor eram as paredes de um local, como é que se chamava um McGuffin qualquer mágico, quem é que disse o quê quando. Isto é, como alguém que consegue recordar-se passo a passo do que aconteceu num episódio de telenovela, mas num determinado jogo a pessoa lembrar-se-ia só de: “estava numa sala, matei uns inimigos, fui para outra sala, matei mais, e depois veio um boss”… (introduzir pensamento wtf necessário aqui).

Say What?

Say What?

 

Na verdade, embora tudo isto seja duvidosamente científico, estou inclinado a concordar com Portnow. Acho que é capaz de ser verdade, e não é de agora, e sempre me assustou. Assustou também o Sr. Portnow, que continuou a investigar à maneira dele e chegou a uma conclusão também muito pessoal: o problema são os jogadores que não estão suficientemente educados a jogarem jogos. Ou algo mais embelezado mas que vai nessa direcção, e essencialmente isto.

Nisto discordo.

A razão, na minha opinião, pela qual alguém só se lembraria de estar numa sala a matar uns inimigos, mudar de sala, mais inimigos, e depois um boss, é porque na verdade só está a mudar de sala e matar mais inimigos, e depois mata um boss. Infelizmente. Ninguém repara na cor da maçã da árvore no background porque isso é filler. É algo sem importância que está lá para ambientar o jogador. O problema, também na minha opinião, é esse, não o jogador.

Tentem descobrir o rádio do carro...

Tentem descobrir o rádio do carro…

 

O vídeo da Idea Channel vai nessa direcção: sim, ninguém se lembra das narrativas e coisas do género, porque o que o jogador retém são as mecânicas de jogo – o gameplay – o jogo em si. Sim, toda a razão, mas dito assim o problema parece o oposto. A formulação do problema da Idea Channel parece ser que a narrativa de um jogo é inerentemente fútil, e que apesar de ter uma importância histórica, cultural e social, não interessa diretamente ao seu público, os jogadores. Isso também não pode ser verdade, certo?

Não faz sentido se considerarmos “jogos narrativos” – a série Walking Dead da Telltale é sempre um ótimo exemplar – que muita gente nem considera “videojogos”, mas que apesar de tudo têm mecânicas, objetivos, sucesso e fracasso, e tudo o que define um bom gameplay – ainda assim, são jogos estranhos para muita gente, porque na verdade são mesmo estranhos – as mecânicas do jogo e a sua narrativa são um só.

Não é peixe nem carne. É os dois. É marisco.

Se querem que eu repare na cor da maçã da árvore do não-sei-quê, a cor da maçã da árvore do não-sei-quê tem que ser importante.

Nos filmes, nas séries, na música, na literatura, o público é passivo, não tem quase agência. A pouca agência que tem é por exemplo identificar-se com o que lhe é mostrado. O protagonista é mais importante, porque o público identifica-se com o protagonista. Um antagonista bem concebido tem também aspetos com os quais o público se identifica. Num videojogo, o público pode interagir muito mais. O que é mais importante é sempre aquilo com que o público interage mais. As suas mecânicas, sim, mas a narrativa não está excluída. Qualquer elemento de um jogo pode ou não ser mecanizado.

Se eu só me lembro de matar inimigos é porque só interajo com o jogo dessa forma. O problema não é o jogador. Se o jogo quer que eu aprecie o as nuvens e o som do vento, então que crie um laço mecânico. Se só vou matar inimigos, então só me vou lembrar de matar inimigos.

Cara interacção narrativa: poderia sair do meu jogo para eu continuar a matar inimigos?

Cara interacção narrativa: poderia sair do meu jogo para eu continuar a matar inimigos?

 

Numa série, se não faço nada enquanto observador vou-me lembrar da minha experiência de forma mais equitativa e aleatória. Num jogo, lembro-me do boss, porque é um inimigo único ou raro, que exige muito mais concentração e qualidade de input, ou o qual tenho de repetir várias vezes até o ultrapassar.

O que se pode tirar disto, a meu ver, é que o progresso natural do videojogos não será reduzir o foco narrativo, visual, etc, para nos focarmos só no gameplay – mas ampliar o foco do gameplay para que se envolva com tudo o resto.

“Isso é muito bonito de se dizer, mas na prática fazer-se é outra história” – epá, sim. E depois? Como disse: não quero saber da ‘maçã da árvore do coiso’ num nível em que há um boss de quatro metros. Mas coitada da maçã, não? Também não se livrem dela, assim sem mais nem menos. Dêem-lhe uma oportunidade. Se não conseguirem, pelo menos tentem.

Na prática pode ser outra história, mas pode-se sempre tentar.

diablo quest

 

Agora que eu estou a pensar lembro-me muito pouco da narrativa do Bioshock Infinite. Lembro-me que gostei muito, mas não me lembro do que era. Mas lembro-me muito mais claramente do primeiro Bioshock. E isto é só para dar um exemplo. Quem não jogou estes dois jogos não perceberá o exemplo, mas vai perceber perfeitamente o que quero dizer, que já lhe deve ter acontecido com outro par de jogos qualquer. No Bioshock original, a parte central da narrativa descobre-se pelo cenário e inimigos, com o qual o jogador interage. No Infinite, a narrativa é muito mais ousada, muito mais rica, em temas personagens e emoções, e no entanto, é experimentada de um modo muito mais passivo.

E por isso, não Idea Channel, não. Tudo pode ser importante num jogo; o jogo tem é de saber dar importância ao que quer. E não Extra Credits, também não: o problema não são os jogadores. O problema nunca são os jogadores.

Eu por vezes mal consigo jogar e falar com quem está ao meu lado, quanto mais prestar atenção a um narrador ou ao que um NPC berra enquanto estou a fugir de granadas.