A primeira parte de Dreamfall: Chapters começa uma mulher em coma

Dreamfall é uma série de videojogos que começou já em 1999, e cujo mais recente título foi lançado agora, com a ajuda do Kickstarter. Entrar no universo de Ragnar Tørnquist, o seu “autor”, se existe tal coisa, é muito semelhante à sensação de ver a série de televisão LOST: muitas alegorias, ficção científica misturada com fantasia, misticismo, referências mitológicas, várias personagens, vários mundos, várias lógicas internas, vários géneros misturados, vários fios narrativos, e pouca justificação para isso tudo – mas há quem goste; eu aprendi a gostar, e a verdade é que não estava à espera de ver outro capítulo da série à venda. O jogo anterior terminou tão anticlimaticamente que parecia um cliff-hanger; “não percam o próximo episódio, porque nós também não!”. Se calhar vou perder, Dreamfall, se calhar vou perder. Quem é que vai investir dinheiro em ti? Porque esse jogo anterior, Dreamfall: The Longest Journey, é muito leve em gameplay, está mais preocupado em contar uma história, mas essa história varia muito de tom como se fosse um timelapse das estações do ano, e parece que vai abrindo portas a ideias e acontecimentos sem nunca os fechar; LOST, para quem conhece essa outra série, tal e qual. Se é pela história, e a história é a confusão que é, onde é que vão arranjar financiamento para continuá-la?

O projeto esteve em águas de bacalhau muito tempo. Nota-se. As primeiras horas de gameplay foram escritas e re-escritas várias vezes. Imaginadas ao detalhe. Vê-se que o projeto esteve “parado” bastante tempo, a “crescer”.

E assim que o jogo foi financiado pelo Kickstarter, esses guiões, cenários e etc – esse trabalho todo que o Sr. Tørnquist foi desenvolvendo sozinho, como um Shakespeare incompreendido, enquanto batia à porta de potenciais financiadores demasiado sãos para lhe darem dinheiro, sem sucesso – esse trabalho viu finalmente a luz do dia. Pelo menos é assim que imagino que tudo se passou. Não faço ideia. Mas se foi, é curioso, porque encaixa bastante no que joguei. A protagonista é mais madura; “cresceu”, enquanto personagem, no jogo, para o jogador, mas sobretudo na mente de quem a concebeu. O estilo “cresceu” também; sabe o que é, conhece a sua própria mitologia, não parece tão “experimental”. Mas sobretudo, aquilo que me fascinou, foi a temática. Isso sim, amadureceu.

Dreamfall Chapters

Ainda não completei o primeiro episódio de Chapters, mas como dizia, o jogo abre com uma mulher em coma: a protagonista. No jogo anterior, que se passa num futuro próximo, havia uma empresa-má-cliché-com-um-nome-que-soa-ameaçador-e-tudo que estava a tentar controlar a mente dos seus clientes, através de um produto de realidade virtual, “dream machines”; o resto não interessa, mas não era necessariamente território original.

O jogo abre com a protagonista, que está presa “no mundo dos sonhos”, em coma, dizia eu, a interagir com outras pessoas, enquanto sonham. No jogo anterior, o mal foi derrotado, o plano de usar a tecnologia dos sonhos da tal empresa foi denunciado e foi por água abaixo. A tecnologia tornou-se segura, parecia. No entanto, neste jogo, a protagonista continua aversiva às máquinas dos sonhos: não controlam a mente, mas são viciantes. Os seus utilizadores perdem-se nos sonhos, acabam por encher o seu subconsciente de coisas negras.

As pessoas com quem a protagonista interage ultimamente, estão perdidas nos seus sonhos, pesadelos, como pequenos infernos; não conseguem sair destes; sentem-se fracos, impotentes, perseguidos. Alimentam-se da própria escuridão que os persegue. Há aqui um subtexto. Não havia antes, ou se havia, não era tão elegante. Tão adulto. A protagonista acorda do coma, para ver “viciados” em sonhos; pessoas, na rua, focadas na sua realidade falsa, obcecadas por toda a parte da cidade.

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Ainda no coma, uma das pessoas que ajuda a sair do pesadelo têm medo do que está à sua volta; está tudo escuro, e acha-se incapaz de continuar a andar. A protagonista mostra-lhe que a pessoa se esqueceu, na verdade, que tem essa luz; que a máquina o fez esquecer. A pessoa sai do seu pesadelo lembrando-se de quem é. Mais tarde, de novo na cidade, a protagonista re-programa um robô, que se esqueceu de como era a vida no exterior; a memória foi-lhe apagada; “mas a rua é demasiado grande”, e ela responde: “pois, é por isso que é a rua”; uma das primeiras opções que o jogador tem é treinar o robô com interações sociais.

O tema aqui são os videojogos. De forma subtil, mas bastante óbvia. Outra pessoa presa num sonho que ela ajuda, quando está no coma, é uma miúda; “eu não consigo imaginar porque é que uma mãe faria isso à sua filha”, diz; o conteúdo do sonho é horrorizante; um bocado antes, a miúda explica “a minha mãe é que me deu esta máquina, diz que é para me manter ocupada”.

O autor, que é um criador de jogos, parece que quer expressar as más experiências que tem observado com este media. A protagonista diz a todos os que ajuda: “não te vais lembrar de mim quando acordares; não te vais lembrar de nada; mas tenta lembrar-te disto: cuidado com as máquinas de sonho, afasta-te delas”. A protagonista diz, num sonho, através do sonho, ao sonhador: afasta-te dessas máquinas; o criador de jogos diz, num jogo, aos jogadores, “quando acabarem de jogar isto, vai-vos passar tudo ao lado, mas gostava que retivessem isto”…

Será?

Mais tarde, a protagonista pergunta ao seu terapeuta se ele tem uma máquina de sonhos. O psicólogo responde que tem, mas que não a usa. Que sabe que é entretenimento inocente, mas que não sabe os efeitos a longo prazo. Ninguém sabe. “Não há estudos suficientes, ainda”. Não que aprove a mensagem; ou desaprove. Mas é muito interessante. Raramente me vai parar às mãos um jogo tão subtil, com um subtexto tão claro e elegante.

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Em Dreamfall: Chapters, mundo do futuro está cheio de gente presa nos seus próprios mundos, dependente de realidades falsas. Fiquei interessado e recomendo as primeiras horas; seja por demo, se houver, ou pedindo uma cópia a um amigo. (Talvez o resto não seja tão bom, ou talvez se torne um dos meus jogos favoritos).