Boa noite, porque estou a escrever de noite.
Vamos falar “do” Gamergate. Ou “da”? Não queremos ser sexistas, não é?
Já é um bocado tarde para continuar-se a falar disso, certo? – o assunto está mais ou menos morto – mesmo assim, continuemos; porque é importante; porque na verdade nem está (é uma espécie de zombie que não morre, mas que já levou demasiada pancada para ser considerado vivo, e já estamos todos meio cansados). E é assunto de pancada! Violência verbal, ameaças de morte – pessoais, do próprio conceito de gamer, da integridade jornalística, dos próprios jogos!
Este é o tipo de coisa sobre a qual dá vontade de falar, que a maioria das entidades jornalísticas aproveitariam para explorar à exaustão, para não falar das comunidades de jogadores que manteriam a tocha do tema acesa, à náusea, como se fosse um MEME de Portal, ou de Pokémon, um “I never asked for this“, uma “arrow in the knee” – mas com muita mais raiva e indignação – e na verdade, muitos falam sobre isto, mas não tantos quanto seria de esperar: muitos, mas muito poucos; porque pouca gente quer falar: a pancada foi tanta e tão feia que rebentou a escala da histeria e destruiu-a.
Mas o que é a GamerGate ? – pergunta quem se deu ao trabalho de ler estes parágrafos sem os ter minimamente percebido – pois, não sou eu que vou explicar. Posso dar umas luzes, mas há muito boa gente que sabe contar a história melhor que eu. Agradeço a fé depositada em mim, no entanto; e se a leitura continua, vou dar um pequeno mimo: uma desconstrução resumida.
Imaginem, ambas as partes: quem ouviu falar da GamerGate e quem andou a viver numa caverna estes últimos meses, que eu era miserável. Não me conhecem de lado nenhum, óbvio, mas imaginem que a minha vida era mesmo triste. Não do vosso ponto de vista, até para mim próprio. Chegava a casa, ligava a consola, alterava uns zeros e uns uns numa base de dados com os meus dedos, via coisas mexer na televisão, e a televisão começava a elogiar-me, a dizer que eu tinha salvo o universo, ou que eu me tinha tornado todo poderoso, ou algo do género. Que alívio, não é? Afinal, se a própria televisão o diz quem sou eu para a contradizer…
Esse é o problema. Parece que estamos a falar de coisas diferentes, mas não estamos.
Porque no momento em que eu uso videojogos não como um hobby – diga-se por exemplo o GTA V – mas porque tenho um buraco gigante na alma, então há um problema, ou melhor, tenho um problema – o jogo e a minha vida, o universo à minha volta, começam a significar a mesmo.
Eu deixo de ser um falhado com uma vida amorosa arruinada que atura diariamente um patrão e colegas insuportáveis. Não, eu sou sobre-humano e intocável, um semi-deus quase, um gangster, e daqueles que sabe escapar à polícia com estilo, capaz de derrotar dezenas de pessoas armadas até com uma pistola; é mais por aí. E isso sabe bem. A renda para pagar desaparece. O risco no carro desaparece. A pessoa que se pôs à minha frente na fila do supermercado desaparece. Sou só eu, e o GTA V.
O universo reduziu-se.
Portanto, quando alguém diz que o GTA V não é perfeito, eu passo-me. 9/10? É o próprio universo que estão a atacar. A minha vida! A minha vida toda!
9/10 é como se o Sol perdesse 10% da luz que emite. É sério.
Imaginem que eu adoro Mass Effect. Adoro, adoro, adoro. Adorei os dois primeiros jogos. O terceiro também vou adorar. Mas “adorar” mesmo. No Mass Effect tenho amigos, sou capaz de ser o ser vivo mais importante da galáxia, toda a gente me respeita. Isso sim, é um universo melhor que no GTA V. No GTA V nem salvo o mundo, quanto mais a galáxia.
Imaginem, portanto, que o final do terceiro jogo é medíocre. Passo-me.
Melhor, melhor: imaginem que se lançava um livro cuja história se desenrola no universo Mass Effect mas que não gosto e que está cheio de erros. Era capaz de filmar-me a queimá-lo. A Bioware (criadora de Mass Effect) que nem se atreva a poluir assim a minha vida!
Não, não. Se o final do Mass Effect é mau, vamos unir-nos todos e exigir à Bioware que o mude. Exigir. Ameaças e tudo. Não pode ser. E a nossa felicidade?
Acho que é aqui que eu quero chegar. Primeiro, o movimento feminista que desencadeou o GamerGate: meninas, e senhoras, não podem simplesmente dizer que o meu jogo é machista ou misoginista sem sofrerem as consequências. O meu jogo é perfeito. Não tem nada de mal. Ainda no outro dia foi ao médico. Faz exercício todos os dias e come bem. Não é machista. E o simples facto de sugerirem isso irrita-me.
Por favor, parem.
Não, eu quando salvo a princesa não estou a promover uma sociedade patriarca, que por sua vez promove a ideia que as mulheres são coisas frágeis e objectos de posse. Se isso fosse verdade, onde é que ia buscar satisfação por ter chegado ao fim do jogo?
Estão mesmo a começar a irritar-me.
O quê? A Anita Sarkeesian desativou os comentários no youtube dos vídeos dela? Ela acha que nos pode dizer essas coisas abusivas sobre os nossos jogos (leia-se: “sobre nós”) sem levar com abuso também?
E isto:
… que aconteceu recentemente, que é um culminar disto tudo, mas que não é nem de perto um sumário do que Sarkeesian sofreu por ter partilhado as suas interpretações de jogos contemporâneos de um ponto de vista feminista.
Para quem ainda não sabe o que é a GamerGate, não, isto também não é nem de perto um sumário. Atenção que há quem acuse Sarkeesian de estar a inventar tudo isto e quer os abusos constantes que ela tem sofrido desde que ousou abrir a boca sejam factuais ou fictícios, não interessa, porque Sarkeesian é um exemplo e uma gota num poço, quem sabe num oceano.
O GamerGate é uma guerra que começou entre duas comunidades, uma que acusa grandes entidade jornalísticas de corrupção e de manipulação dos factos, pelo menos de falta de ética e de se unirem para impôr as suas ideologias e agendas perversas no seu público, e a outra, que acusa uma parte desse público ser disfuncional e de marginalizar o restante público, chegando quase ao terrorismo.
Especificamente, voltando aos GTAs e aos Mass Effects, se eu gasto horas suficientes a jogar DarkSouls e me esforço o suficiente, e aprendo os truques todos, então eu ganho, então eu sou o maior. Isso faz de mim uma espécie de Jedi – um ‘gamer’. Eu sou um gamer, porque interagi com a televisão a usar os dedos – sou o maior.
O que é isto? Como é que se ganha? – Digo eu a olhar para Gone Home, ou The Stanley Parable – então, se não se ganha, como é que sou feliz? Não isso não é um jogo.
Ok, eu até dou uma oportunidade. Perde-se ao menos? É que não perder é um bocado como ga-… não se perde também? Então não é um jogo. Não, é. Peço desculpa. Essa porcaria não é um jogo e não serve para nada.
Portanto, uma parte do público – que há quem goste de dizer que é uma minoria, mas que eu tenho as minhas dúvidas se é tão minoria quanto isso – está farta que esses jornalistas lhes continuem a aborrecer com esse lixo. “Nós queremos é outro Super Mario” gritam as massas quando os jornalistas lhes mostram um Papers Please; “não queremos essa porcaria”, e os jornalistas, infelizes, deprimidos, depressivos, choram de desgosto.
Portanto, quando se soube que uma criadora de jogos-que-não-são-jogos dormiu com mais do que um jornalista, tendo em conta que esta tensão jornalista-público já estava alta, e que precisava de ser descarregada, foi o pretexto perfeito para se criar uma guerra.
Os jornalistas que defendem feminismo andam todos a dormir com feministas. Resolvido.
É corrupção? Claramente. É falta de ética pura, e ainda bem que há gente atenta para impedir que estes monstros tragam essas coisas para a nossa casa da árvore. E por “essas coisas” quero dizer “mulheres”. Que falta de profissionalismo. Que falta de integridade.
Vou baixar a janela um minuto e vou agora à IGN. Volto já.
“These Portal Jackets Are Awesome”
“Why Lord of The Rings Fans Should be Excited For Shadow of Mordor”
Esta até agora é a minha favorita: “Pre-Order Resident Evil Revelations 2 Complete Season on PS4”, porque eu nem percebo a frase, se está em modo imperativo ou se não faz sentido gramaticalmente; e a a letras pequenas, abaixo: “Players are promised ‘hours’ of gameplay with each episode”.
“5 Key Areas Where PES 2015 Really Shines”.
Que falta de integridade, andarem por aí a dormir uns com os outros.
É mesmo vergonhoso e lamentável. E como tal, começou-se uma guerra. Dirão alguns.
Há quem aponte uma causa qualquer simplista à tempestade de insultos, perseguição e ódio, e sabe-se lá o quê, que foi a (“o”?) GamerGate – que foi acerca disto ou daquilo, e que começou desta ou de outra forma. A verdade é que essa guerra faz parte de uma guerra maior, que já começou há mais tempo, e que é uma guerra acerca de nada.
Na verdade o único problema é exclusão. Se eu sou um Jedi-gamer porque acabei o Dark Souls dezoito vezes este ano, então tu não podes ser. Se não consegues acabar o Dark Souls mas és gamer, como eu, então já não sou tão importante.
Este é o meu hobby, para pessoas como eu.