Análise a Sid Meier’s Civilization: Beyond Earth
Não acredito na perfeição. Ou melhor, não acredito que a perfeição possa ser atingida (ou sequer compreendida) pela humanidade. Dito isto, no âmbito dos videojogos o mais perto que chegámos foi com Sid Meier’s Civilization (lançado nos finais de 1991). Sim, eu disse-o. É o meu jogo preferido de todos os tempos, e não quero nem ouvir falar de Mario 64. É a minha opinião e gostos não se discutem. Ainda hoje o considero um belíssimo jogo, e faz jus ao seu subtítulo/mote: “Constrói um império que resista ao teste do tempo”, resistindo ele próprio à idade. Na altura que saiu era uma sinfonia harmoniosa de equilíbrio entre diversão e profundidade, lúdico e educativo, envolvente e viciante. Foi uma das minhas primeiras experiências com a estratégia, e amor à primeira vista. Desde então tenho jogado de forma compulsiva e quase constante todos os títulos 4X (se não conhecem a terminologia podem ver a minha definição aqui) a que consigo deitar as gânfias.
Evidentemente que quando em 1999 a recém-formada Firaxis Games lança o seu Sid Meier’s Alpha Centauri (SMAC) não perdi tempo a obtê-lo e jogá-lo. Era o Civ no espaço! Tinha o sentimento de Civ combinado com (boa) Ficção Científica. Começava no ponto em que Civilization II parava, com o lançamento de uma Arca Espacial com rumo a um Novo Mundo para a humanidade colonizar.
Desde então, a série de Civ teve três novas iterações e respectivas expansões, e como sabem encontra-se “viva e bem de saúde”. Continua a ser a pauta pela qual os 4X se regem. Mas Alpha Centauri nunca mais viu amor. Mas finalmente, e corridos 15 anos, a Firaxis anunciou Sid Meier’s Civilization: Beyond Earth (SMC:BE) e naturalmente: deitei-lhe as gânfias em cima.
SMC:BE é anunciado como parte da franquia Civ, mas também como descendente espiritual de SMAC. Mantendo a mesma apresentação do seu antecessor, começamos quando os recursos da Terra estão à beira do colapso, e é enviada uma pequena frota de naves-colónia na esperança de conseguirmos migrar para novas paragens.
Logo à partida temos uma novidade: usualmente em Civ dispomos de uma série de facções para escolha. Estas facções são baseadas em povos e culturas históricas da Humanidade. A variedade sempre foi boa com entre 10 a 30 civilizações à escolha (dependendo de expansões), mas estática. Em Beyond Earth é-nos dada a possibilidade de construir a nossa facção escolhendo o nosso patrocinador, o equipamento que a nossa nave carrega, o tipo de pessoas que seleccionamos para a nossa tripulação, etc. Estas escolhas exponenciam a re-jogabilidade já elevada da franquia, sem no entanto permitirem a criação de facções obstrusas ou ineptas.
Aterramos no planeta que escolhemos colonizar, e rapidamente qualquer veterano de Civ despacha os primeiros 10 turnos com as habituais actividades de fundar a primeira colónia, eXplorar as redondezas, iniciar as essenciais investigações científicas e começar a planear a eXpansão. Pelo caminho, apercebemo-nos que o planeta possui não só flora mas também fauna própria. E nós não somos bem-vindos. A componente de eXterminação assume uma nova preponderância em Beyond Earth, tornando-se mais literal: temos mesmo de exterminar insectos gigantes. Aqui o jogo tem o seu primeiro soluço. As criaturas nativas são francamente desinspiradas ou “emprestadas” de outras franquias (Alien e Dune vêm à mente). Mas nada de grave. Afinal precisávamos de algo para substituir os bárbaros de Civ.
Continuamos a pressionar o botão de “End Turn” mais umas 20 ou 200 vezes, e chegamos ao ponto do jogo onde alianças entre as várias facções se começam a cimentar e o espaço para expansão livre esgotou-se. Começamos a eXploitar (já expliquei antes que tive de criar a palavra) os nossos vizinhos e viramos a nossa exterminação para os menos simpáticos deles. Estão completos os quatro X.
Referi que os nativos eram desinspirados. A verdade é que me pareceram chapados com os de Pandora, um título independente com uns anitos que tentou ser o descendente espiritual de SMAC. Perdoem-me a comparação, mas SMC:BE parece o clone rico de Pandora… são essencialmente o mesmo jogo, sendo que Beyond Earth teve um orçamento algumas vezes maior que Pandora (já para não falar dos direitos sobre a franquia e de Sid Meier e sua equipa). Mais, em Beyond Earth perdemos duas das coisas mais interessantes de SMAC e que o diferenciavam de Civilization. Já não podemos construir as nossas unidades a partir de componentes que vamos desbloqueando com tecnologias, e o antigo Concelho das Nações deu um sumiço tão grande que nem com Warp-Gates o conseguimos encontrar. Uma pena que tenham optado por não reimplementar estas duas características.
Por outro lado, e num esforço óbvio colmatar este retrocesso é-nos apresentado o sistema de Afinidades. Análogo às Religiões, Regimes e Ideologias de Civ 5, temos ao nosso dispor três Afinidades. Mas não as “escolhemos”, pelo menos não com um clique. As Afinidades têm um nível que vai aumentando consoante as nossas decisões, escolhas e tecnologias que priorizamos, e em determinados patamares destrancamos habilidades, edifícios e outras vantagens mecânicas. Eventualmente vamos definir a nossa Afinidade principal e consequentemente os nossos exércitos e cidades vão reflectir essa identidade. Podemos optar por terraformar o planeta para ser uma Nova Terra através da Pureza. Podemos optar por nos adaptarmos ao novo ambiente e tornarmo-nos parte do novo ecossistema através da Harmonia. Ou finalmente podemos escolher um novo rumo, da Supremacia pela tecnologia e afastarmo-nos da nossa ancestralidade terráquea e impor os novos valores ao planeta que nos recebeu. Todo o jogo muda consoante a nossa Afinidade. As nossas unidades são moldadas pela nossa escolha, as tecnologias de que dispomos, os recursos a que damos valor, etc. Até as nossas relações com as restantes facções dependem em muito da nossa Afinidade (e a deles).
Tudo isto é abundantemente regado com o habitual flavour text dos jogos de Sid Meier, presenteando-nos com o habitual humor e cultura que sempre caracterizaram a franquia. No entanto, à medida que ia avançando pelo jogo ia-me gradualmente apercebendo que estava de facto a jogar Civ 5 com texturas espaciais, e sentia-me algo defraudado. Quinze anos haviam drenado toda a identidade de Alpha Centauri e o resultado era uma expansão standalone glorificada de Sid Meier’s Civilization 5.
E quase quando me preparava para dar o caso por encerrado, algo aconteceu.
Enquanto eu me preparava para tomar uma cidadela de assalto, juntamente com um dos meus aliados, uma outra facção interveio e não só me privou do meu prémio, tomando-a para si, como ainda teve a audácia de invadir e conquistar uma das minhas cidades no mesmo turno! Velhos instintos vieram ao de cima, pus a minha impressionante máquina de investigação a trabalhar a dobrar e numa manobra algo inspirada e que nunca antes tinha tentado, transportei todas as minhas tropas por um portão de teleporte, ao longo de vários turnos, enfraquecendo a minha posição com cada envio, e usando todas as minhas, agora desprotegidas, cidades como isco aos restantes abutres, terminando o jogo através da conquista da Velha Terra. Foi uma manobra precipitada, arriscada e estupidamente recompensadora. Entretanto eram sete da manhã e tinha de ir trabalhar em breve, mas isso são outros quinhentos.
O ponto deste relato? Como é que após vinte e três anos a jogar Civs a Inteligência Artificial me consegue surpreender e aplicar tácticas que nunca tinha visto? A resposta: porque é simplesmente um excelente jogo, criado com atenção ao detalhe e dedicação. Apesar do motor ser reciclado, nota-se o esforço dispendido em melhorar e progredir.
O melhor: o estilo e qualidade irrepreensíveis de Sid Meier, as escolhas que nos são dadas desde a criação da facção até à forma como queremos vencer, a beleza gráfica dos vários biomas, a capacidade de nos surpreender.
O pior: a perda da identidade de Alpha Centauri, tornando-se quase um Civ 6. Utilização excessiva de clichés da ficção científica.
Tinha a fasquia muito elevada quando iniciei este jogo. Joguei-o com um olhar de fã que espera a perfeição. Senti-me algo desapontado com as escolhas que tomaram, eliminando coisas que eu esperava e trazendo outras que não queria. Vim à procura de Alpha Centauri 2, e encontrei Civilization 5.5. Estive perto de não gostar. Mas qual Fénix mitológica, Sid Meier consegue que este Civilization: Beyond Earth se erga das suas próprias cinzas e se eleve para junto dos seus antecessores como referência do género. Obrigatório para fãs de 4X. Recomendado a todos os outros.
Mas antes que disparem para as lojas: amanhã será lançada a minha análise a outro 4X muito diferente. Se é certo que a galinha madrugadora come a minhoca, a galinha paciente fica com o milho, e talvez prefiram esperar para ver. Depois não digam que não avisei.