Uma análise a Endless Legend
O leitor mais atento terá seguramente reparado que apelidei de 8X a minha última análise (e esta também). Isto porque num espaço de tempo muito reduzido tive de injectar dois 4X no meu calendário. Obrigado aos meus editores por lincharem a minha vida social, também gosto muito de vocês. Verdade seja dita que me pus a jeito, já que é um dos meus géneros favoritos. E a minha vida social nem assim tão importante, certo?
Adiante. Como vos disse ontem Sid Meier é a referência dos jogos de estratégia por turnos. No entanto nem todos os bons títulos do género são da sua autoria, e nem todos tratam da humanidade e da sua viagem pela história. Na verdade, existem 4X’s para todos os gostos em termos de ambiência e sabor. Civilization é pseudo-realista, Alpha Centauri e Beyond Earth pegam na ficção científica. Outra temática muito explorada no género é a fantasia. E se SMC:BE veio lançar um poderosíssimo foguete no meio, ofuscando tudo em seu redor, nós no galinheiro não nos deixamos levar por tais embustes.
Assim, não posso deixar de vos falar de Endless Legend do estúdio independente que nos trouxe Endless Space e Dungeon of the Endless. Notam o padrão? Nós também. Aparentemente os nossos amigos parisienses da Amplitude Studios estarão a criar um Metaverso nos seus jogos, em redor de uma misteriosa “raça” interminável. Mas isto não é para agora.
Endless Legend é um jogo de estratégia 4X por turnos passado num mundo de fantasia (magia, espadas e raças estranhas). Mal ligamos o jogo notamos-lhe a raça. A iconografia, menus e Interface Gráfico remetem-nos imediatamente para Endless Space e à medida que vamos explorando as mecânicas de Legend deparamo-nos com um reaproveitamento de vários recursos e mecânicas de Space. Sei que muitas vezes critico a reciclagem de motores de jogo e recursos, mas no caso dos independentes sou mais leniente. Não porque pense que devam ser preguiçosos, mas porque não dispõem dos recursos das grandes companhias. Faz sentido que utilizem as ferramentas que já criaram.
Ainda com o reaproveitamento mencionado, Legend rapidamente nos dá o ar da sua graça e nos mostra que é o seu próprio jogo. Mal iniciamos um mapa somos inundados por um estilo gráfico completamente distinto de Endless Space. O mapa é um modelo tridimensional com curvas de nível demarcadas por socalcos, mas à medida que fazemos zoom para vistas mais panorâmicas muda completamente para um estilo “mapa em pergaminho” com os marcos geográficos desenhados, e os ícones de jogo em primeiro plano. A transição é limpa e fluída, nunca havendo aquele momento embaraçoso em que a imagem “salta” de um modelo 3D para uma imagem 2D.
As mecânicas de jogo base são as típicas do género: fundamos a nossa primeira cidade, definimos a investigação tecnológica que queremos e o que deve a nossa cidade produzir e começamos a explorar o mapa. Algumas das peculiaridades da Amplitude começam a surgir, nomeadamente dispomos de heróis que podemos usar como comandantes dos nossos exércitos ou governadores das nossas cidades, e temos uma certa capacidade de equipar os nossos exércitos com diferentes equipamentos. E ainda bem, já que cada facção apenas dispõe de quatro unidades base (incluindo o colono), mesmo destrancando a árvore tecnológica por completo. Parece muito pouca variedade, mesmo com os vários equipamentos, e é mesmo.
Mas para colmatar isto, temos sim a possibilidade de “anexar” as facções menores. O mapa divide-se em regiões, e em cada região existem algumas aldeias de uma facção menor, que geram unidades hostis. Podemos simplesmente espancá-los até à submissão ou entrar em diálogo com eles e após algumas quests eles ficam pacificados e juntam-se alegremente à nossa facção. Após estarem pacificados e de serem membros produtivos da nossa sociedade podemos então torná-los parte integrante do nosso império assimilando-os na nossa cultura. Desta forma ganhamos não só alguns benefícios por toda a nação, mas também a capacidade de produzir a unidade dessa facção menor. É uma novidade para mim, esta mecânica de anexação, e confesso que adorei a implementação da mesma. É diferente, temática, equilibrada e a variedade de raças e quests é tal que dificilmente terão dois jogos iguais (não vi nenhuma quest ser repetida em jogos diferentes). Ainda pasmo quando vejo os meus exércitos de Vaulters (uma das facções principais, que são essencialmente a Brotherhood of Steel medieval) com as suas divisões de Demónios, Wargs e Orcs Arqueiros. Não sou nada senão inclusivo e xenófilo (já sinto as “bocas” sobre Alien e Kama Sutra).
Outra das coisas que me surpreendeu extraordinariamente neste título foi o sistema de combate. Normalmente em 4Xs o combate resume-se a um encontro matemático entre duas ou mais unidades. A série Total War implementou a hibridização entre um 4X de turnos e um RTS. Mas após ter percebido que Endless Legend era criação dos responsáveis por Endless Space, estava convencido que ia ter novamente as batalhas cinemáticas em que cada lado “lança cartas” num embate de três ou quatro turnos. É um estilo muito próprio de Endless Space e recheado dos seus prós e contras. Mas fui surpreendido no primeiro confronto. Quando duas ou mais unidade inimigas embatem, temos a tradicional opção de resolução automática, a opção cinemática em que assistimos ao combate ou a opção manual. Esta opção manual faz com que as unidades envolvidas se espalhem pelo mapa e se inicie uma ronda de 6 turnos de combate táctico por turnos. Quando digo que se espalham pelo mapa, é mesmo pelo mapa. O mapa que usamos para gerir o império. Os dois exércitos embatem, e todas as unidades individuais espalham-se por um raio limitado (de forma organizada) e podemos ajustar o seu ordenamento. Quando iniciamos a batalha, definimos as ordens de cada unidade individualmente e a postura que a mesma deve adoptar se a ordem não for possível e quando pressionamos “Ready” todas as unidades agem por ordem de iniciativa tentando completar as ordens que lhes foram dadas ou assumindo o seu comportamento definido. Repetimos o processo num total de seis turnos e o combate terminou. Pode resultar em vitórias, derrotas ou empates. Requer planeamento e utilização do mapa e topografia do mesmo. Temos de adivinhar os movimentos do nosso adversário e ele os nossos. É lindo. É estratégia no seu melhor, e muitas vezes não é o exército com os “números” maiores que sai vencedor, mas sim o que melhor aplicou as regras de Sun Tzu. Um rasgo de génio.
Cada uma das oito facções principais é distinta e jogada de maneira muito diferente e dispõe da sua própria quest central que nos leva ao culminar do jogo. Como se não bastasse podemos criar de raiz a nossa própria facção através de um sistema de compra de pontos. Infelizmente temos de manter a base de umas das facções “oficiais” (que nos vai dar algumas das características da mesma, incluindo a quest principal e os modelos das unidades base). O valor de re-jogabilidade é ainda assim enorme.
No geral, Endless Legend é uma aposta segura e uma sólida adição ao panorama dos 4X. Distinto e com uma identidade muito própria e demarcada, é uma alternativa muito interessante a Beyond Earth. Se não gostarem de ficção científica (por algum motivo que me escapa), mas adorarem fantasia.
Infelizmente agora que terminei está na altura de falarmos sobre o Elefante ali na sala… o jogo estatela-se. Com frequência. Sensivelmente a cada 10 ou 20 turnos no momento de passagem do turno surgia-me uma mensagem de erro, com botões para continuar ou sair. Foleiro, mas se posso continuar a jogar, então sem stress. Feliz e contente da vida lá “pagava o imposto” do erro, de tempos a tempos. Mas inevitavelmente havia uma das vezes que o erro ia surgir e o jogo simplesmente estatelava-se para o ambiente de trabalho, e enviava um relatório aos criadores. Não! Não num título que já se encontra para venda. Não num título que custa 32€ no Steam. Nem pensar. Tudo bem que o jogo gosta de autosaves e nunca perdi sequer um turno de progresso ao reiniciar o jogo. Mas não tenho de estar constantemente a fazê-lo.
O melhor: os visuais do mapa, a diversidade de culturas principais e secundárias, o flavour que permeia o mundo. O sistema de combate simplesmente brilhante.
O pior: a instabilidade e os erros que forçavam à repetição de algumas acções e constante reiniciar do jogo, o interface demasiado funcional e pouco estético em alguns menus.
Endless Legend é como um porco agri-doce. Ninguém sabe muito bem o que lá está dentro e se é certo que o sabor é agradável e iremos certamente repeti-lo no futuro, também não deixa de ter um travo algo pungente e desagradável que nos leva a duvidar sobre a qualidade da carne. É um bom jogo? Será, no dia que corrigirem o que quer que seja que o leva a espalhar-se mais que os adolescentes às 5 da manhã quando saem do Bairro Alto. Mas como dizia Abraracurcix “amanhã não será a véspera desse dia”.
Visto ter analisado dois jogos do mesmo género em tão curto espaço de tempo, impõe-se que responda à questão “Qual dos dois recomendas?”
Infelizmente tenho de recair sobre Beyond Earth, não pelo meu fanboy-ismo mas pelas falhas técnicas de Endless Legend. Vi mais potencial no segundo, mas melhor execução no primeiro. É uma experiência mais completa, equilibrada e rica.
E assim cacareja a galinha…
Endless Legend é um exclusivo PC.