Lágrimas em tempos de Guerra

É seguro dizer-se que Minecraft “fundou” um género e que massificou a experiência dos jogos de sobrevivência. Pessoalmente (e como já afirmei várias vezes anteriormente) Don’t Starve é a minha baseline pessoal de comparação com todos os jogos subsequentes, e é através das suas simples mas altamente eficazes mecânicas que me tornei um fã da “sobrevivência” nos videojogos.

Mas foram as primeiras horas deste This War of Mine que me trouxeram um ponto de vista completamente oposto à diversão “tim-burtoniana” de Don’t Starve e que me mostraram que poderei estar perante um novo padrão para o género. Se a genial criação da Klei Entertainment nos traz diversão inquestionável, em que temos de sobreviver ao que se esconde no manto nocturno: sejam coelhos sanguinários ou árvores que coleccionam humanos como decorações de Natal, na obra da 11 bit studios encontramos o extremo oposto do mundo recheado de humor negro de Don’t Starve.

Sabendo que poderei estar a entregar livremente a todos os opositores dos videojogos munição para os seus argumentos, mas sinto que existe uma pseudo-glorificação da guerra neste meio que tanto amamos. Não são assim tão poucas as vezes em que somos o soldado destemido de um qualquer exército (usualmente o dos EUA) e que toda a adrenalina dos campos-de-batalha crescentemente mais realistas nos correm pelas pontas dos dedos, enquanto pressionamos o gatilho sem pensar duas vezes, e em que quaisquer danos colaterais são apenas cenário na experiência bélica cinematográfica que vivemos.

Já antes tivemos alguns jogos brilhantes que nos colocaram o peso das escolhas toldadas pelo desespero humano na mão, e sem dúvida que a Season 1 de The Walking Dead o fez com toda a mestria. Mas e se um jogo trouxesse toda esta carga de semi-realismo emocional num ambiente desprovido do sobrenatural e do ficcional, em que tudo o que temos a temer são as falências típicas do Homem à beira do abismo? E é isso que This War of Mine nos traz de forma magistral: fazer-nos viver as nossas próprias falhas e defeitos, e de nos conduzir a escolhas demasiado difíceis para serem tomadas: e que extravasam os limites do jogo e do personagem, e nos afectam a nós, de forma pungente.

This War of Mine também não poderia ser mais semelhante e simultaneamente tão distante ao divertido The Sims. Os seus 2.5D não espalham a alegria histriónica dos sims, e da sua necessidade de decorar compulsivamente as suas casas como se vivessemos numa sitcom sobre os subúrbios norte-americanos. O seu visual soturno, rabiscado a lápis, não espelha a luminosidade dos diversos bairros do jogo da Maxis. O seu ambiente depressivo retrata outra inspiração bem menos virtual: a vida real.

Grande parte do tempo em que vamos estar em jogo teremos o corte de um prédio em destroços como cenário. Pouco sabemos dos seus habitantes antes da guerra, e a única certeza que temos é que se não fosse a sua existência e nenhum dos três personagens que nos são atribuídos teriam sobrevivido se não obtivessem refúgio. Os primeiros dias são passados a explorar todos os materiais e comida que ainda existem em casa, e tentando construir alguns elementos básicos para o nosso dia-a-dia. Enquanto os personagens vão andando cabisbaixos pela casa, lá fora os obuses vão caindo, quebrando o ritmo consecutivo dos tiros que vão enchendo o silêncio da cidade como uma orquestração que ninguém quer ouvir. De noite o silêncio conquista a cidade, cavalgando o manto negro da noite. E é aí que o cenário muda ligeiramente: temos de escolher um dos nossos personagens para procurar materiais e comida numa localização próxima. Com alguma sorte estas demandas nocturnas correm na perfeição, e o local que escolhemos para saltear está vazio, deixando-nos com todo o tempo do mundo e toda a calma para garantir a subsistência. Mas infelizmente, na maior parte das vezes, cruzamo-nos com outros sobreviventes que tudo farão para manter a sua condição, ou simplesmente encontraremos alguns grupos organizados que aproveitaram a anarquia para pilhar toda a cidade. Na maioria das vezes o encontro com outras pessoas será sinónimo do típico “lutar ou fugir” e como em tudo neste jogo desesperante de sobrevivência ambos acarretam riscos. Lutar significa que poderemos correr o risco do nosso personagem ser espancado até à morte, e fugir significa voltar a casa de mãos vazias, fadando de forma acentuada a sobrevivência do nosso grupo. Ainda assim, e muito raramente, iremos encontrar outros personagens que mantêm a chama de humanidade na sua alma e que tentarão ajudar-nos ou partilharão o que têm connosco. Mas infelizmente, essas situações são mesmo muito raras.

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À medida que os dias passam a sobrevivência vai ser cada vez mais difícil. Entre manter o grupo alimentado e descansado, vamos ter de lutar contra o frio, a tristeza, as doenças, as feridas, e até os assaltos de que poderemos ser vítimas durante a noite. É que enquanto levamos um personagem para saltear a cidade, em paralelo, e em off screen, poderemos ser alvos de assaltos. E que na pior das hipóteses poderá resultar em perdermos tudo o que temos e voltarmos de manhã para uma casa pilhada, destruída, e com os nossos companheiros mortos.

O grande peso emocional que This War of Mine nos coloca é que o jogo transpõe os limites do ecrã. Em muitos outros jogos este embate é minorado pelo ambiente em si: sobreviver a zombies ou a outras criaturas sobrenaturais não nos afectam per se. Esmagar o crânio a um zombie ou esventrar um vampiro para sobreviver não tem nada que nos possa afectar na “vida real”. Mas o que os seus criadores (também eles sobreviventes de um cenário de guerra) nos trouxeram foi a humanização da sobrevivência: quão  longe estaremos prontos a ir para garantir a nossa subsistência e a dos nossos? Quanta desumanidade estaremos dispostos a abraçar para viver mais um dia? Quanto sangue inocente derramaremos para por o pão na boca de quem protegemos? É que o slogan do jogo diz, e com toda a razão, que “na guerra nem todos são soldados”.

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Ao longo desta dura batalha pela sobrevivência vamos ter alguns personagens a baterem-nos à porta: uns vêm apenas para negociar, outros vêm pedir refúgio e oferecer mais um par de mãos para ajudar na defesa do grupo. Mas infelizmente um par de mãos adicional significa também mais uma boca para alimentar. E para além disso, transpondo o jogo para a vida real: abriríamos a nossa porta a um estranho? Teríamos confiança em alguém, ou seríamos humanos o suficiente para ajudar alguém que nos pede refúgio?

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Posso dizer que um dos momentos mais duros que vivi num videojogo (e nestes vinte e cinco anos de jogador já joguei largas centenas de jogos) existiu neste This War of Mine. E o momento foi tão emocionalmente penoso que fui compelido a desabafar sobre a situação com os meus amigos na chamada de Skype em que me encontrava. Numa das noites fui a uma casa na periferia da cidade. Lá estava um casal de idosos que detectaram a minha presença, e o senhor, lá veio rapidamente defender a sua casa. Naquele momento sabia que haviam apenas duas hipóteses: matar o pobre homem que defendia a sua casa, ou fugir, voltar de mãos vazias e correr o risco de encontrar os meus dois companheiros mortos à fome, nas suas camas. No calor do momento cliquei sobre o meu atacante e, visto o meu personagem ser um atleta universitário, acabei por cometer assassinato. A mulher, ao ouvir a comoção que ocorria na cave veio em auxílio e atacou-me em defesa do marido. E o segundo assassinato cometido pelo meu personagem aconteceu. Ainda com os corpos dos dois a jazer no chão do subsolo vasculhei toda a casa arrependido do que tinha feito. E aqui existe um duplo arrependimento: eu, o jogador, com um nó na garganta por me sentir submerso em todo o desespero que o jogo nos traz, e o personagem, destruído mentalmente pelas mortes que causou. Na manhã seguinte o personagem chegou a casa com uma depressão que o tornou quase disfuncional, e nem o apoio que coloquei os restantes membros do grupo a desenvolverem ajudou. Uns dias depois esse personagem suicidou-se por não conseguir conviver com o peso da culpa.

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This War of Mine é o jogo que eu não deveria jogar neste período da minha vida, por razões que ultrapassam largamente os limites desta análise. Mas não deixa de ser magistral na forma como nos mergulha em emoções tão fortes, tão pesadas, que conseguem transbordar os limites do videojogo para cá, para a nossa alma. É um jogo que trará tristeza e depressão em quase todos os momentos de jogo e raríssimas serão as situações em que sorriremos. O que no fundo, e apesar de (felizmente) não a ter vivido, nem a conhecer de perto, não é o mais eficaz retrato da guerra?

O melhor: a mensagem passada e a jogabilidade, o ambiente magistralmente bem-conseguido, a força de uma obra ímpar.

O pior: a depressão que paira sobre todos os instantes de jogo serão impeditivos para muitos jogadores.

Ainda sem o ano ter terminado posso facilmente afirmar que este This War of Mine figurará na minha lista de melhores jogos do ano. Como obra artística consegue trazer-nos para um ambiente e um desconforto emocional como apenas The Walking Dead conseguiu, apesar de que o afastamento ficcional nos garante um certo aconchego pós-jogo. This War of Mine é real, é o mundo de hoje, em algum lugar em guerra do nosso planeta. É a sobrevivência diária de pessoas normais que vêem todos os seus sonhos destruídos e a doce melodia das suas vidas substituída pelos gritos e pelos tiros. This War of Mine é o jogo que ninguém quer jogar mas que deveria ser obrigatório para todos. E revolver o estômago do maior número de pessoas possíveis. E fazer-nos levantar das cadeiras e exigir um mundo melhor. O pior é que sonhar é excessivamente fácil…

This War of Mine é um exclusivo PC.