Pokémon e a Terra do Nunca
Prólogo: porque hoje em dia tudo precisa de um aviso prévio e para não magoar as mentes mais curtas e mais sensíveis, e porque é necessário especificar que a série Pokémon é uma das minhas favoritas de sempre, e que nos últimos 15 anos segui fielmente todos os jogos assim como os (demasiados) spinoffs que foram lançados.
A paternidade muda a nossa perspectiva do mundo. E muda tão profundamente que se na minha análise de X e Y não o referi, foi apenas porque o vírus parental ainda não tinha atacado “a valer”. Mas se me permitem a afronta: o mundo de Pokémon, e em específico a região Hoenn, onde tanto o jogo original como este “remake” decorrem” são o verdadeiro inferno parental.
Ora analisemos os primeiros minutos de jogo de Pokémon Omega Ruby/Alpha Sapphire (que é comum a quase todos os jogos da série): uma criança pergunta à sua mãe se pode sair de casa e ir pelo mundo para caçar animais. Resposta de um pai mentalmente são: “não.” Resposta de um pai no mundo de Pokémon: “Sim, é claro! Leva estas poções para curares o teu animal de estimação”. Das duas uma, ou os nossos protagonistas são umas verdadeiras pestes e os pais estão desejosos de os ver pelas costas e usufruir da paz doméstica, ou na realidade os pais deste mundo sempre sonharam em serem Treinadores de Pokémon famosos e projectam esse desejo nos seus filhos. De qualquer forma a minha máxima dever-se-ia aplicar a qualquer criança: “Tem idade para contrair um empréstimo bancário? Não? Então não vais partir sozinho pelo mundo em busca de fama e glória.”
A segunda é a total desresponsabilização que a sociedade tem em relação ao que uma criança deverá fazer. No mundo de Pokémon as crianças deveriam apenas ter o dever de se divertirem em lutas de rua com animais que no nosso mundo seriam ilegais*. Aquilo que deveria ser o maior pesadelo da PeTA é na realidade um desporto mundial e a grande fonte de diversão. Neste setting ninguém quer ser o Cristiano Ronaldo, o Messi ou a Cátia Palhinha. No mundo de Pokémon toda a gente quer ser o Mourinho das batalhas de animais ficcionais. Ora que belo mundo este é.
O terceiro e último contraponto ao setting de Pokémon é o facto de que o peso do mundo recai sempre sobre os nossos protagonistas, quais Atlas pueris com ombros demasiado estreitos para abarcar tanta responsabilidade. Com forças policiais, organizações de defesa dos Pokémon e afins, porque é que o mundo depende sempre de crianças para ser salvo? E porque é que crianças sozinhas conseguem derrotar gangues, células terroristas e organizações secretas que causariam vergonha aos Rosacrucianos? O mundo de Pokémon é uma espécie de Terra do Nunca onde as crianças fazem o que querem, não têm hora de dormir, nem escola para frequentar, nem tarefas para cumprir, nem ordens para acatar, nem educação para receber. De Poké-bolas na mão e lá vão elas, como donas do mundo, a conquistar cada humano com quem se cruzam. Deixo apenas uma pequena nota aos vilões da série: Se impedirem o nosso protagonista de invocar os seus Pokémon conseguem facilmente derrotar-nos com dois tabefes, um castigo que nos impeça de ver televisão por dois meses e irmos para a cama sem sobremesa. E aí já podem conquistar o mundo a seu bel-prazer, enquanto o menino-guerreiro*1 está em casa, trancado no quarto de castigo.
Esta total divagação por alguns conceitos base da série podem ser aplicados a todas as gerações. E aliás, a fórmula de Pokémon está tão afinada que é perfeitamente compreensível o pouco desvio que a série teve. É claro que as excepções existem, e o gigantesco salto que Pokémon teve com X e Y tornaram-nos obrigatoriamente um dos meus títulos favoritos da série.
Pokémon OR/AS é tudo aquilo que poderíamos esperar de um sucessor de X/Y cruzado com um remake dos clássicos Sapphire e Ruby: um excelente jogo. E é um excelente jogo especialmente porque em muitos aspectos se assemelha a um reskining de X e Y na região de Hoenn, trazendo de volta a animosidade com a Team Magma e a Team Aqua.
Em diversos aspectos Pokémon OR/AS é um jogo estrondosamente bem-conseguido, acima de tudo por ser excessivamente idêntico mecanicamente ao seu predecessor. O que automaticamente me traz para o único aspecto negativo que consigo encontrar: foi lançado com pouco tempo de intervalo de X/Y, e acredito que a Nintendo deveria ter aumentado o compasso de espera, para não “atropelar” com a diferença de um ano os dois lançamentos.
Ainda que as inovações sejam poucas quando comparadas com o jogo anterior, há pelo menos três pontos que merecem ser salientados. O primeiro é a introdução do PokéNav, uma app do nosso Pokédex que nos mostra quais as criaturas que já capturámos em dada área, e se existem ainda alguns para aumentar a nossa colecção. É curiosa este paralelismo com a utilização que damos aos smartphones na vida real, e percebo que ao nível de game design as potencialidades de adicionar novas apps (ou novas funcionalidades) é uma excelente arma criativa para os designers da Game Freak. O segundo ponto é o brilhantismo das animações em combate. Se o salto visual do jogo anterior foi tremendo, o actual exacerbou a qualidade dos ataques de cada Pokémon, deixando bem para trás da nossa memória os tempos em que cada ataque era uma tremelique de uma sprite. E o terceiro e melhor ponto mexe com uma grande ideia conceptual: a de capturarmos Pokémon apanhando-os de surpresa. É que até aqui éramos nós quem era surpreendido por random encounters (que obviamente persistem neste jogo), mas também nos é possível apanharmos criaturas “raras” de surpresa. No meio das ervas podemos ver uma agitação e uma ligeira silhueta (ao estilo do “Quem é este Pokémon?” do anime) e ao pressionarmos o Circle Pad suavemente o nosso protagonista vai andar, pé-ante-pé, sem fazer barulho até essa sombra. O que traz, acima de tudo, uma renovada dinâmica à captura clássica de Pokémon.
De ressalvar o momento Star Wars deste jogo: somos filhos de um dos líderes de ginásio. O que significa que uma batalha pelo equilíbrio da Força existirá e que oporá progenitor e prol, na mais apaixonante batalha com recurso a animais de estimação (leia-se Pokémon).
O melhor: cumprir com o melhor que X/Y introduziram, a excelência das animações e algumas das novas mecânicas que foram introduzidas.
O pior: lançamento com um ano de intervalo entre o anterior, muitos dos jogadores ainda estão a “curtir” X/Y e já vão ter de abraçar um novo jogo.
Pokémon OR/AS cumpre todas expectativas que podemos ter de um jogo da série: coleccionar Pokémon, derrotar uma organização terrorista, vencer oito ginásios, derrotar os treinadores de Elite e sagrarmo-nos campeões, trazendo pelo caminho algumas boas (e novas) mecânicas que trazem um novo sabor à série e que esperamos que passem a ser padrão-de-utilização. E é isto que eu, e qualquer fã da série estamos à espera que aconteça. Ainda a navegar a onda brutal de inovação de X/Y, OR/AS cumpre de forma inequívoca todas as expectativas que temos para a série, e garante-nos uma excelente iteração. Apenas não se encontra no mesmo patamar de X/Y, que avançou a série como nunca antes tinha sido feito.
* este paralelismo não é da minha autoria. Já tinha lido algures na internet alguém que comparava as batalhas de Pokémon com lutas ilegais de cães. E com algum humor reconheço a alegoria.
*1óbvia referência ao nosso ex-tudo Santana Lopes
Pokémon OR/AS é um exclusivo 3DS.