A Segunda-Feira de Schrödinger

Randal’s Monday é para a geek culture o que Trainspotting é para a drug culture. É bem-humorado, mas feio – punk, absurdista, a roçar ao niilismo. Envenenei oito pombos (parte de um puzzle) e apareceu-me isto no ecrã:

Important notice – these pigeons are not asleep, they’re DEAD! But, who cares about those damn winged rats anyway? Besides, they’re just a drawing…

Um pouco antes de matar oito pombos, matei um padre. Envenenei-o também, mas fi-lo primeiro engolir uma lâmina de navalha.

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Quando escrevi “bem-humorado”, quero deixar muito claro que estava a falar de humor negro. Não recomendo este jogo a jogadores cuja sensibilidade é ferida facilmente.

Alguns minutos depois, não tendo abre-caricas, usei a cara de um cadáver para abrir duas cervejas, e ofereci-as a dois polícias, em serviço. Sentaram-se, e a primeira coisa que saiu da boca de um deles, antes de brindarem com as garrafas, foi: “here’s to all the poor bastards who make January the best month of the year, with their mass suicides”.

Mesmo para os que não se ofendem com facilidade, também não recomendo a quem não está dentro da pop e geek culture, e especialmente da gamer culture. Randal’s Monday é uma metralhadora de referênicas, nos diálogos, nos cenários – Clockwork Orange, Halo, Iron Giant, Bioshock, Pulp Fiction, Dragon Ball, Game of thrones, Resident Evil, Futurama, Megaman, Zelda, The Big Lebowski, Half Life, Godzilla, Portal, Sonic, Limbo – um pequeno objecto escondido numa estante, um poster, ou quando Doc de Regresso ao Futuro aparece para dar-nos um pedaço de plutónio que roubou a terroristas da Líbia – ou mesmo na própria história, que um mashup entre Groundhog Day e O Senhor dos Aneís.

Randals monday 03

Randal, o protagonista, está a viver a mesma segunda-feira todos os dias, por causa de um anel por qual toda a gente anda obcecado. E cada segunda feira é um bocadinho diferente da anterior.

Antes de falarmos de gameplay, deixem-me explicar-vos uma coisa. Mesmo que não se ofendam, e mesmo que “percebam” as pop-references, o humor neste jogo é como o gato de Schrödinger, que está morto e vivo ao mesmo tempo – só que vezes dois.

Deixem-me explicar a minha explicação: eu tinha decidido, depois de umas horas de jogo, que não achava piada ao estilo de humor. Mas a piada é uma questão de gosto; se o jogo tem muita piada ou nenhuma, como em tudo, depende do jogador: “quem sou eu para dizer que o jogo não tem piada?”. Só podia escrever que não tinha achado, e era isso que ia fazer.

E depois, desliguei o som. Já não me lembro porquê, se calhar foi um acidente. O que interessa é que deixou de ser irritante, e passei a rir-me.

Com o som ligado, ou jogo tanto pode ser engraçado como não ter piada nenhuma; em mute, essas duas possibilidades duplicam-se. O som do jogo é péssimo. O problema principal é que não tem piada. A inexpressividade das animações faciais nas personagens e a forma com que os atores leram o guião estão desenquadradas uma da outra, mas pior ainda, os atores não acharam piada nenhuma ao que leram. E por cima disso ainda há a música genérica tipo-elevador.

A “praia” dos criadores de Randal’s Monday é a imagem e a cor, tanto que o grafismo do jogo é o seu aspeto mais rico. O jogo está desenhado e colorido “ao estilo” Newgrounds, mas num traço mais detalhado, mais elegante, mas que também parece mais “sujo”. De vez em quando o ecrã de jogo parece saído de uma banda desenhada, outras vezes parece que saiu da Cartoon Network. E nada disso é por acaso. Os autores do jogo sabiam exatamente o que queriam, tinham uma visão, e atingiram-na de modo impecável, (pelo menos visualmente).

Falemos então de gameplay. Se não fosse pelo hint-system, o diria que é um desastre.

O primeiro puzzle que Randal’s Monday (spoiler altert, mais ou menos; acreditem que não faz muita diferença) é o seguinte: combinar um cabide com uma cabeça de pato de borracha e uma vassoura, que resulta numa espécie de alicate de metro e meio (um cabo de vassoura com cabeça do pato), para desbloquear uma escada de emergência.

“…?”

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Compreendo que não compreendam. Eu também não percebi a lógica do puzzle; pensei que pudesse ser uma piada inicial – o jogo é um point & click tradicional, daqueles com inventário, de apanhar itens e combiná-los com outros itens ou objectos no cenário – e esse puzzle podia ser uma piada, uma referência ao quão ilógicas as soluções de certos point & clicks são; e talvez fosse essa a intenção, mas se era, há um problema: o jogo está cheio de soluções ilógicas.

O puzzle da vassoura de cabeça de pato (“extendable duck hanger) não é um spoiler nenhum, porque pela altura que os jogadores chegam à escada de emergência, e já terão apanhado todos os itens que há para apanhar, e como são poucos (esse nível é pequeno), combinar o cabide e a vassoura é uma coisa bastante natural e fácil de acontecer, apesar de ilógico. Também não houve spoiling quando mencionei acima o puzzle do padre, por exemplo: sim é suposto pôr-se uma lâmina e veneno no copo dele, mas o resto já não é fácil, nem natural, e o nível é gigante… boa sorte para deduzirem os restantes ingredientes desse “cocktail”. Aliás, esqueçam: boa sorte para encontrá-los.

Os puzzles e itens deste jogo foram desenhados por artistas gráficos; nota-se que quem os concebeu não tinha noção do tamanho que, por exemplo, um buraco, ou um pin, ou um tubo de cola, iam ter no nível, depois deste ser “montado”.

Mas puzzles ilógicos e pixel-hunting significam que o gameplay é mau?

A resposta é: Schrödinger. Não é mau, depende dos jogadores.

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O hint-system de Randal’s Monday é, na verdade, um walkthrough detalhado, e excelentemente concebido; em vez da solução do nível ser desbloqueada toda de uma vez, o jogador desbloqueia a solução aos pedaços, passo a passo.

Tenho a certeza que a ferramenta foi acrescentada ao jogo a posteriori, quando os autores começaram a fazer testes com outras pessoas, e perceberam a obtusidade dos puzzles. O gameplay deixou de ser “já percebeste como é que isto se resolve?” e torna-se “deixa ver se consegues chegar sozinho(a) à nossa solução parva que imaginámos”.

O jogo custa neste momento 22,99€ no Steam – há gente quem o recomendaria, e a outros a quem não. É como atirar uma moeda ao ar.

Para ajudar, deixem-me resumir: Randal’s Monday é um jogo ideal para quem gosta de humor negro e transgressivo, para amantes de referências geek e pop – para quem dá valor a post-its que dizem “Tyler Durden isn’t real”, ou sinais de trânsito onde se pode ler “YOU SHALL NOT PASS”, com o símbolo de um feiticeiro por debaixo – recomendo para fãs de point & click de dificuldade extrema – para os que gostam (e conseguem) chegar a conclusões como: é preciso enfiar um arame numa ‘trituradora 1-2-3’ e combiná-lo com pedaços de um rádio para criar um lockpick, e abrir uma fechadura do outro lado da cidade – ou (sobretudo) para aqueles que não se importam de não chegar lá, e que se contentam com ir tentando até desistirem.

Recomendo também para aqueles procuram algo no espírito da palhaçada, como Surgeon Simulator ou Octodad.