No infinito, à espera do mais além
Uma das narrativas mais usadas nas primeiras aulas de filosofia na escola é a Alegoria da Caverna, a partir de “A República” de Platão. Esta alegoria é apenas mais uma entre muitas histórias que nos foram sendo passadas ao longo dos séculos, desde a maça do jardim do Éden até textos budistas em Sânscrito, sobre as quais muitos académicos queimaram fusíveis cerebrais mas que se podem todas resumir a uma expressão: Ó palhaço, abre a pestana!
Na célebre alegoria, as pessoas estão aprisionadas numa caverna, viradas para a parede, onde observam apenas as sombras do mundo e acreditam que estas sombras são a realidade. Quando um dos presos consegue libertar-se e sair para o mundo real descobre o que lá existe, incluindo o Goat Simulator, as canções do Gunther, e as meias de descanso em cor de pele. Ao regressar à caverna, o iluminado tenta explicar o mundo que os outros desconhecem mas estes troçam dele por essa invenção absurda e recusam-se a acreditar que as sombras na parede não são a realidade. Resta-nos saber quem são os homens na caverna: os que não jogam Destiny, ou os que o jogam.
Para analisar Destiny é preciso separar o jogo em duas partes. Antes do end-game e depois do end-game. É que cada um é uma versão do mito de Platão.
Antes do “fim” a.k.a. arriscar perder o jogador, ou a malta da caverna.
500 milhões de dólares é muito dinheiro para arriscar, mas a Bungie faz exactamente isso durante as primeiras horas de jogo e ao longo da história de Destiny, sendo que chamar história à narrativa de Destiny é um eufemismo para um palavrão que prefiro não escrever. A Bungie não é propriamente conhecida por ser boa a contar histórias e quando vejo as odes ao cânone de Halo sinto arrepios na espinha, tal é a quantidade de estereótipos e preguicites narrativas nessa criação sci-fi, culminando numa personagem principal chamada o Chefe Mestre.
A história de Destiny é um napperon: algo que a dona da casa insiste em pôr em cima da televisão e que não só não faz falta como enerva. Personagens sem qualquer personalidade, a comporem um conjunto de protagonistas e antagonistas esvaziados de qualquer dimensão ou profundidade, inseridos numa narrativa boçal em que o nosso objectivo é salvar uma entidade que é uma espécie de planeta branco que está a ser destruído pela escuridão. Como diria Kevin Butler: “Come on!“. A Bungie consegue ainda a proeza de nos entregar a pior performance de sempre de Peter Dinklage, desde aquela peça na primária em que insistiu ficar com o papel de pé de feijão gigante, e que aqui dá voz a um pequeno gadget inteligente que nos acompanha e que vai lançando linhas de diálogo escritas por um fiscal das finanças que fez um workshop de escrita criativa. Ressalva: nada contra os workshops de escrita criativa.
No entanto, se a Bungie é conhecida por não ser grande contadora de histórias é no entanto conhecida por ter inventado algumas das melhores mecânicas de jogo da história dos FPS e as ter afinado até à exaustão para atingir o ponto máximo de diversão. E é isto que vai aguentando os jogadores ao longo da história de Destiny: as mecânicas de jogo que são das mais recompensadoras até hoje num FPS. Não há arma que não seja um deleite, tanto visualmente como no feedback da sua utilização.
Para muitos, as primeiras horas de jogo podem ser confusas. Em todas as missões o objectivo é ir até um ponto, matar x inimigos, seguir para o próximo e matar mais x, e no final da missão enfrentar um boss. Até aqui tudo bem e o regresso das boss fights ao jogos é de aplaudir. A confusão pode derivar do facto de se voltarmos atrás os inimigos reaparecerem e de em muitas missões repetirmos áreas e inimigos que já aniquilámos. É aqui que entra a novidade. Destiny não é linear on-rails. É um MMO, e para quem está habituado ao género, os respawns, a repetição ou o regresso ao mesmo cenário são algo perfeitamente natural. E o público que chega ao Destiny não é maioritariamente o dos MMO mas sim o dos shooters. Se bem que Destiny não é um MMO. Mas já lá vamos.
Destiny permite a escolha das 3 classes mais habituais no género mas é certo que no entanto não existe uma grande diferença entre elas. Todas podem utilizar as mesmas armas independentemente da classe que escolhem e as diferenças centram-se nos dois ataques especiais recarregáveis que cada classe pode ter. Na verdade, não ganhamos vantagem especial em escolher esta ou aquela classe enquanto estivermos a jogar sozinhos. Isso só se mostra útil em equipa quando uns podem escolher uns especiais que protegem outros. Mas comparando com a maior parte dos MMO, as diferenças de classe neste jogo são mínimas e quase estéticas na maior parte da jogabilidade.
Destiny é também um falso mundo aberto e isso é algo bom no jogo. Estão três planetas e um satélite (lua) disponíveis (para já) e cada um com o seu ambiente distinto e detalhado. Os mundos de Destiny são um locais exuberantes e credíveis de nova geração, com pouca repetição de cenários e com uma abertura suficiente para que exista uma sensação de liberdade mas contida na proporção certa para que nunca tenhamos que fazer jornadas longas de deslocação de um local para o outro. Existe também um sistema inteligente de caminhos no desenho dos mapas que permite alternar rapidamente entre zonas (o que permite a rapidez de cruzar o mapa se um amigo nos avisar que começou um evento de jogo noutra área). Mas o melhor em Destiny não é a arquitectura variada dos seus interiores, nem a recriação credível dum deserto em marte ou de uma selva tropical em Vénus. É a luz, a coroa de Destiny. Para onde quer que olhemos, do mais claro ao mais escuro, a iluminação no jogo é sexo com os olhos.
Ao longo das missões de história, patrulhas (side-quests) e strikes (masmorras) o nosso personagem vai evoluindo o seu nível, assim como as suas capacidades e armas que vai ganhando por terminar missões ou por drops de inimigos. Quando chegamos ao final da história, quando fazemos tudo o que temos para fazer, chegamos a nível 20 e parece que atravessámos um jogo mediano se bem que, mais uma vez, com algumas das mecânicas de tiro e deslocação mais afinadas de sempre, e com inimigos inteligentes e desafiantes (embora muito parecidos com os de Halo). Mas depois de todo o hype criado pela Bungie e Activision fica uma sensação de vazio e de desilusão. O nível mantém-se em 20, jogar já não nos dá experiência para evoluir, o jogo acabou, nada nos é explicado. E muitos, aqui, foram embora. Pior ainda, muitos, aqui, escreveram as suas análises ao jogo. Mas assim como na caverna, o melhor estava lá fora.
Depois do “fim” a.k.a. um dos melhores jogos do ano.
Destiny voltou a tornar-me um ser social. Conhecido como o Dalai Gamer ou o Lone Ranger dos videojogos, é famosa a minha aversão a jogar com mais pessoas online. No entanto, sem a ajuda dos outros, Destiny acaba mesmo no nível 20. Nada nos explica, e tem de ser a pesquisa ou uma voz amiga a mostrar-nos o caminho (assim como Jesus, mas se ele tivesse uma armadura exótica, uma auto-rifle badass, fosse nível 30 e fizesse tea-bagging aos inimigos mortos no chão). A partir daí, a única forma de evoluir até ao cap de 30 é através da descoberta e utilização de armadura lendária ou exótica e do seu upgrade. Isto vai subindo o nosso nível de “Light” que passa a ser o novo cap. No entanto e ao contrário de outros jogos, os drops são coisa muito rara, o que é tão irritante como viciante ao mesmo tempo.
Num parágrafo anterior escrevi que Destiny não é um MMO. E não é. Destiny é um Dungeon Crawler. Destiny é o Diablo dos FPS. Dungeon, loot, voltar à base, dungeon, loot, voltar à base, dungeon, loot, voltar à base. Com a diferença que os drops no Diablo são o 80 e no Destiny são o 8. As idas às masmorras são com equipas de três amigos ou com matchmaking automático e todas as existentes são desafiantes e originais. É neste sistema de jogo que podemos começar a evoluir seriamente a personagem e onde começarmos a entrar na componente mais perigosa do jogo, a social. Quando ligo a PS4, 80% da minha lista de amigos (que não é pequena) está a jogar Destiny. O novo da Bungie é um dos jogos mais viciantes de sempre e muitas pessoas, eu inclusive, não resistem a lá voltar diariamente. Mas porque, se este é um jogo tão repetitivo, continuamos diariamente a repetir os mesmos strikes, missões e patrulhas? Mais uma vez: Diversão. E ainda outra coisa que podia ser vendida à parte:
Vault of Glass, a.k.a. só isto dava um jogo
O primeiro raid de Destiny mostra que a Bungie estudou a lição e observou o melhor e o pior dos restantes MMO e MMORPG. O Vault of Glass (Vog) está limitado a uma equipa (fireteam) de 6 pessoas e são todas precisas para o completar. Para além do mais, nada nos é explicado (a primeira equipa demorou 30 horas a descobrir como terminar). Isto faz com que tenha que existir uma estratégia e uma conversa constante entre os seis elementos, mas não provoca a confusão de dezenas de pessoas a falar ao mesmo tempo como em outros jogos. Também significa que têm de existir pastores, já conhecedores da estratégia e que ensinam os novatos. O VoG é também uma descida literal aos confins de Vénus com uma verticalidade nunca experimentada no género em que descemos “quilómetros”. Entre as zonas que chegam a incluir plataformas a lembrar o Super Mario, o combate, o controlo e a estratégia (que inclui separar a equipa em grupos de três, várias vezes de forma random durante certas fases) obriga a treinar o mesmo até ao sucesso. Quando este acaba, vêm normalmente os melhores drops, as melhores armas e armaduras, ou então não. E é aqui que está outra genialidade. No então não. Resta-nos esperar uma semana para que possamos voltar a ganhar algo no VoG, quando o jogo faz “reset”, ou então tentar no quase impossível modo hard para ganhar mais algo.
O reset do jogo diária e semanalmente é também o que nos agarra. Todos os dias podemos repetir uma nova missão de história em modo heróico, e todos os dias temos bounties para completar. Já semanalmente temos strikes heróicos, e nightfall que são strikes em que se todos morrerem voltamos ao início, para além de um vendedor de elementos exóticos que só aparece às sextas e sábados. Todos estes sistemas que se tornam repetitivos ao fim de um tempo não deixam no entanto de nos prender e, mesmo que seja para fazer tudo o que já fizemos, voltamos lá todos os dias. Passaram 140 horas, e eu continuo a ir lá.
Outra forma de evoluir é ir para o Crucible (PvP) onde os modos de jogo são similares ao que já se fez até hoje, sem grandes novidades, e onde são as habilidades e poderes especiais que introduzem alguma frescura ao género. Mas não esperem nenhuma revolução ou inovação face ao últimos avanços de Halo ou CoD neste campo. Para quem gosta do género, tem diversão garantida e uma forma alternativa de fazer upgrade ao cap. Para quem não gosta do género, um péssimo sistema de matchmaking baseado no nível PvE acaba por conduzir à frustração e desistência.
O melhor: As mecânicas de FPS viciantes; o sistema diário e semanal; a inteligência artificial dos inimigos variados; o Vault of Glass; As armas. A forma como nos vicia.
O pior: (Ainda) poucos strikes e apenas um raid; História e personagens dispensáveis; o farming de materiais não estar associado a actividades. A forma como nos vicia.
Destiny não é um MMO. Destiny é um Dungeon Crawler. É o Diablo dos FPS com a quantidade inversa de loot. Destiny é também um grande risco da Bungie. Com uma história inexistente e com personagens dispensáveis, no final da campanha muitos podem abandonar o jogo. Mas é a partir daí que Destiny mostra que é um dos melhores FPS de sempre, um dos mais viciantes, e uma das melhores e mais prometedoras experiências online no género. Falta-lhe muito conteúdo (ainda) e para além das duas expansões a caminho resta-nos perceber como vai a Bungie continuar a expandir o jogo mantendo a compatibilidade com o que está para trás. Falta o mais além, falta aquilo que todos estamos à espera. Porque quem continuou a jogar Destiny ficou na caverna mas a olhar lá para fora. E todos percebemos que é muito fácil este jogo tornar-se inesquecível. Para quem o abandonou entretanto, chegou o momento de lhe dar outra hipótese. Nós lá estaremos à espera.
Versão testada: PS4. Também disponível para Xbox One, Xbox 360 e PlayStation 3.