Never Alone é um museu. Não esperem, deixem-me começar por outro comentário estranho, que precisa de contexto para fazer sentido: Never Alone é o anti-Limbo. A cor principal de Limbo é o preto. A cor principal de Never Alone é o branco.

[rimshot]

Estou a brincar, mas há mais: Limbo segue uma criança a viajar sozinha por cenários estéreis, hostis, cheio de inimigos letais. Never Alone conta-nos a história de uma criança, acompanhada por uma raposa, que viaja por um cenário vivo, que tem uma alma própria, que é-lhe por vezes um auxílio, e por vezes um obstáculo. Há poucos inimigos nesta história. Em Limbo não há diálogo ou narrador. É um jogo de puzzles, com puzzles geniais e sem foco narrativo quase nenhum, focando-se antes na mood e nas suas mecânicas para comunicar com os seus jogadores.

never_alone 03

Never Alone é narrado; os seus puzzles têm alguma elegância mas não são nada de especial, é um jogo que quer, acima de tudo contar uma história. Never Alone é um documentário. Os unlockables do jogo são vídeos. A qualquer momento, o jogador pode carregar numa tecla que abre um menu de vídeos. Essa ferramenta está construída dentro do próprio motor de jogo, e os vídeos não demoram tempo nenhum a carregar. Senti que estava num museu, com headphones nos ouvidos e um audioguide a explicar-me aquilo que via. E isto não é coincidência, porque Never Alone é mesmo um museu.

E quando digo que o jogo quer contar uma história, estou a ser simplista; o jogo quer contar muitas histórias ao mesmo tempo.
Never Alone chama-se também Kisima Inŋitchuŋa, (não encontrei tradução, mas é capaz de querer dizer o mesmo), do iñupiaq, um conjunto de dialetos falados pelos Inupiat. Os Inupiat são a personagem principal do jogo, embora à primeira vista não pareça – é uma coisa muito parecida com os Lusíadas, para o Povo Lusitano, que vistas as coisas, é mais uma aula de História de “mitologia Lusa”, contrastada com outras mitologias e com estruturas narrativas clássicas, para a altura. E em 2014, no medium mais rentável e inexplorado que a civilização já conheceu, qual é a “estrutura clássica”? O jogo de plataformas sidescroller.

never_alone 01

Assim por alto, já vimos a história que Never Alone apresenta pelo menos um milhão de vezes noutros jogos. Mas não desta forma. A “mitologia” é-nos familiar, mas está a ser contrastada com outra coisa. A história da miúda que procura a origem de uma tempestade que ameaça a sua tribo, não é sobre a tribo, nem é sobre os Inupiat, mas, explica-nos um vídeo, muito subtilmente, é sobre a própria essência do storytelling. As cutscenes iniciais parecem fitas de filme, ou quadrados de banda desenhada, mas não, na verdade, conta-nos outro vídeo, representam esculturas de marfim, típicas dos Inupiat. Os Inupiat, segundo o jogo, davam e dão uma enorme importância a contar histórias. Não só era um bom mecanismo afetivo e de integração social, era uma forma de passar conhecimento e sabedoria de umas gerações para outras.

A história de Never Alone, portanto, deixa de ser sobre a rapariga e a raposa, mas sobre todas as outras histórias que podia ter sido, e que representa. Como uma máscara representa todos os rostos que se podiam esconder atrás desta, e portanto, a própria essência do que é um rosto. Never Alone podia ser sobre tantas outras coisas, mas prefere falar de uma raposa branca, também contextualizada nos vídeos, e sobre uma miúda sobre-dotada, mas frágil, que quer perceber o que está a causar uma tempestade. As raposas “são como miúdos mimados”, são uns pequenos malandros que estão sempre a pregar partidas e a brincar connosco, diz-nos um homem velho, a falar para a camera. O ar, diz outro vídeo, o vento, o céu, e a temperatura são considerados como uma só entidade, que tem uma alma. Como se fosse uma pessoa, ou um animal. É um museu. Uma janela para uma cultura para a qual não há muitas janelas.

Um homem mau decide queimar a tribo. E eu consigo ver, enquanto ando com a raposa pela parede e salto de uma para outra à Prince of Persia – consigo ver, na minha cabeça, um ancião, à volta da fogueira, a conjurar um antagonista na sua história, e as pessoas mais novas a ouvi-lo. Um homem mau decide queimar a tribo; persegue a rapariga. Ele quer a arma dela. Mas a rapariga não lhe dá. A rapariga quer a sua arma para si, tal como o homem; e por causa disso o homem mau magoa a raposa, a sua amiga e companheira. E volto a acordar, e lá estou eu de novo, a jogar Never Alone.

never_alone 02

Em termos de gameplay, é um jogo mau? Parece que lá acima estava a sugerir isso, não é? Não. É só um bocado frustrante, aqui e ali. As colisões e a física nem sempre estão no ponto a que os puzzles exigem. Mas não é nada de grave. A inteligência artificial também faz umas burrices aqui e ali, e num puzzle ou outro prejudica mais do que ajuda. O jogo pode ser controlado por dois jogadores no PC (a versão que analisámos foi adquirida pelo Steam), ou com dois comandos, ou com um teclado e um comando, ou pode também ser jogado em single player, usando uma tecla para alternar entre personagens. A verdade é que achava que me ia divertir muito mais a jogar a dois do que sozinho. Mas estava enganado. A probabilidade de física de jogo não registar como é suposto duplica com dois jogadores, enquanto que, talvez pela precisão e invariabilidade dos seus movimentos, a inteligência artificial quase nunca erra. Para além disso – e isto é capaz de já ser demasiado subjetivo mas escrevo à mesma – os puzzles tornam-se mais divertidos a solo, porque exigem mais passos. Não é nada de grave, mas também não é nada de especial. Os puzzles existem para dar contexto à narrativa, e não vice-versa.

Não interessa que se a rapariga está numa plataforma ou não. Não interessa se há neve a empurrá-la para o sentido oposto. Interessa, sim, que a plataforma seja um espírito, e que a “alma da meteorologia”, apesar de estar a empurrá-la, está do seu lado. Interessa que para ativar a plataforma, a raposa tenha de estar por perto; que sem a raposa, a rapariga não pode sentir essa “alma”.

[drumroll]

O protagonista de Limbo é um rapaz. A protagonista de Never Alone é uma rapariga.

[rimshot]

Comprar Never Alone é uma questão de gosto e de gaming style. O meu primeiro playthrough demorou pouco mais de três horas. O jogo tentou-me fazer chorar pelo menos uma vez, numa “cena de chorar”, à filme, mas achei demasiado artificial; demasiado forçado. Como narrativa simples, à superfície, tem algum charme mas não é suficiente. As animações estão muito bem feitas, sobretudo no que toca à raposa, e os efeitos da tempestade de neve são fantásticos. Mas o jogo não é tão belo quanto podia ser. O cuidado que houve com que o pé da rapariga escorregasse delicadamente na neve, quando ela está a subir uma rampa, só serve para contrastar mais com a física ragdoll usada quando ela morre. Como narrativa de um povo, que se transcende a si mesma, acho que valerá a pena.

Nesse sentido, é um bicho raro. Que eu saiba, não existe mais nada de igual, ou parecido.